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domingo, 23 de março de 2008

Crítica ao livro Um Judeu Marginal

Crítica ao livro Um Judeu Marginal

por Charles Coffer Jr., graduando em História

Possuo tanto críticas positivas quanto a críticas negativas ao livro Um Judeu Marginal. Na verdade, é uma série de livros cujo no Brasil até agora só foram traduzidos 6.

Lí os três primeiros livros dele e tenho alguns apontamentos a fazer, nada grande e sistematizado, pois não fiz anotações sobre isso.

1) O livro parte do pressuposto de que nem tudo o que está escrito nos evangelhos canônicos biblicos remota a Jesus, incluindo relatos de seus feitos e suas falas. Os cristãos poderão inquirir: "Prove que a biblia inventou essas coisas sobre Jesus!", mas essa pergunta não tem relevancia nos estudos históricos, o qual trata todos os textos antigos, eu disse TODOS, SEM EXCESSÃO, como documentos históricos.

Se os evangelhos foram escritos a partir dos anos 70, ou seja, 40 anos após os eventos que narram, existe um alto grau de certeza de que os relatos e ditos de Jesus tenham sido:

Ser criados espontaneamente;• Sofrer metamorfoses e transformações;

• Sofrer mudanças e alterações brandas ou profundas;

• Ser expandidos e/ou exagerados;

• Ser retidos;• Ser corrigidos;

• Ser desenvolvidos e mais elaboradao;

• Crescer;

• Evoluir;• Ser ampliado por acréscimos;

• Ser embelezados;

• Ser adequadas e adaptados a novas situações, necessidades e exigências;

• Ser distorcidas e deturpadas;

• Ser subtraída, ao ponto de diminuir ou mesmo desaparecer;

• Ser assimilada ou sofrer assimilação por outra tradição;

• Ser combinada a outros elementos originalmente não presentes na tradição;

• Ser simplificada;

• Ser fatiada, fragmentada e selecionada;

• Sofrer cortes e ser excluída parcial ou totalmente;

• Desaparecer parcial ou completamente, temporariamente ou para sempre. Etc.

Meier (1992) afirma que:

"Como estes [quatro Evangelhos Canônicos] estão impregnados da fé pascal da Igreja primitiva e foram escritos entre 40 a 70 anos após os eventos narrados, fica a pergunta: Como podemos distinguir o que vem de Jesus (Estágio I, aproximadamente de 28 a 30 A.D.) do que foi criado pela tradição oral da Igreja primitiva (Estágio II, aproximadamente de 30 a 70 A.D.) e o que foi produzido pelo trabalho de montagem (redação) dos evangelistas (Estágio III, aproximadamente de 70 a 100 A.D)?"

Concordo plenamente com esse pressuposto, e que o mesmo não precisa necessariamente ser provado. É óbvio, natural e comum que o material tradicional seja alterado.

Nesse sentido, Meier não prova que o material foi alterado em momento algum. Apenas parte desse pressuposto para realizar uma pesquisa histórica. Acho isso muito salutar e proveitoso. Para evidencias da alteração do material original de Jesus, ver o livro As Várias Faces de Jesus, de Geza Vermes.

De fato, esse problema é há muito tempo conhecido no campo da pesquisa histórica e neotestamentária:

Mark Goodacre o post Why is the Historical Jesus Quest so difficult? Escrevendo em seu NT Gateway Weblog, este especialista em Novo Testamento da Universidade Duke, USA, diz que, na sua opinião, o estudo do Jesus Histórico é bastante difícil por 7 razões:

• Faltam dados, ou seja, existe pouca coisa sobre Jesus antes do ano 30;

• Os dados existentes são prejudicados pelo viés cristão;

• As fontes são controvertidas, com diferentes avaliações dos especialistas;

• As fontes são, às vezes, contraditórias, dificultando a sua interpretação;

• Nossa distância dos dados é tão grande que projetamos nos textos nossos preconceitos;

• Há uma enorme literatura moderna sobre o assunto, dificultando ainda mais o estudo;

• Jesus é um personagem fundamental para muita gente e tudo o que se fala dele tende a se tornar objeto de controvérsia.


CRÍTICA NEGATIVA

Uma crítica negativa que faço sobre os seus critérios metodológicos que ele usa ao longo de todos os seus volumes para determinar o que vem e o que não vem de Jesus.

Seus principais critérios são três, os quais são:

1) O Critério do Constrangimento.

O Critério do Constrangimento possui como pressuposto a seguinte idéia: "[...] a igreja em seus primórdios dificilmente teria se afastado de sua linha para criar material que pudesse constranger seu criador ou enfraquecer sua posição nas discussões com adversários" (MEIER, 1992, p. 170).

Exemplo: No caso do batismo de Jesus por João, Méier (1992, 170) afirma que sua historicidade foi estabelecida mediante o Critério do Constrangimento, sendo que dificilmente a igreja inventaria um relato que implique a inferioridade de Jesus a João, ou que trouxesse dificuldades teológicas posteriores. De modo que “é bastante improvável” que a igreja tivesse intentado os relatos de João Batista (MEIER, 1992, p. 171).

2) O Critério da Multipla-atestação.

Esse critério alega que um material oriundo de tradições multiplas (ex.: Paulo, Marcos, Evangelho Q, João, Flavio Josefo, Tácido (esses dois últimos a grosso modo), e em diferentes estilos redacionais (parábola, frase, etc.), é bem mais provável ser histórico. (MEIER, 1992, p. 181).

Por exemplo:

A mensagem do REINO DE DEUS; os milagres e exorcismos de Jesus, etc.

3) o Critério da Continuidade.

Esse critério alega que os ditos e feitos de Jesus que se adequam em outros ditos e feitos já corroborados, tem mais chances de ser históricos do que ser ficcionais. (op. cit.).

Esses critérios foram especialmente criados para compensarmos a TOTAL AUSENCIA de evidencias sobre o desenvolvimento das tradições cristãs antigas que culminaram nos evangelhos bíblicos.

Se tivessemos alguma evidencias, com certeza não usariamos tais critérios. Fazem parte dos estudos chamados "Crítica das Tradições" e são razoáveis na pesquisa histórica.

No entanto, tais critérios são falhos.

Crossan afirma que:

“[...] esses critérios já existem há algum tempo e seu emprego não criou consenso a respeito de nada”. (2004, p. 188).

De fato, no que se refere ao critério do Constrangimento, o próprio Meier admite que possui “limitações”, de modo que “não deve ser empregado de forma descuidada e isoladamente” (p. 173).

Meier admite que o que para nós é entendido como "constrangimento" para os cristãos antigos havia um motivo. Ele cita o caso do Lamento na Cruz de Jesus, o qual para os cristãos antigos não seria compativel com a figura do messias para os cristãos posteriores e que por isso deve remontar ao Jesus Histórico. No entanto, o lamento na cruz foi feito a luz das passagens do Servo Sofredor dos salmos e Isaias, de modo que há chance do material ter sido criado pela igreja.

No caso de José de Arimatéia, Raymond Brown, usando esse critério, afirma que é “improvável” que José de Arimatéia seja uma invencionice cristã, desde que é “quase inexplicável” por que os cristãos inventariam uma história sobre um Sanhedrista judeu que faz o que é certo por Jesus.

No entanto, Brown se esquece dos motivos internos para Marcos criar tal personagem: O professor André Chevitarese, da UFRJ, afirma que:

"Camponeses como os seguidores de Jesus não teriam como se dirigir a Pilatos para exigir o corpo. Assim, os evangelistas [e primeiramente o de Marcos] têm o problema de explicar o sepultamento de Jesus e usam a figura de José de Arimatéia, que praticamente cai de pára-quedas na narrativa - sua única função na história é essa."

Crossan (1995. p. 202) ratifica esse argumento, ao afirmar que:

"Considero José de Arimatéia como uma total criação de Marcos em nome, lugar e função. O problema de Marcos é claro: aqueles com poder estavam contra Jesus; aqueles que estavam com ele não tinham pode. Nenhum. Nem para fazer, para pedir, para implorar, nem mesmo para subornar. O que é necessário é um personagem intermediário, alguém de alguma forma ao lado do poder e de alguma maneira ao lado de Jesus. O que é necessário, de fato, é uma pessoa que nunca existiu".

De fato, a julgar o evangelho de Marcos como aquilo que ele realmente é, isto é, uma obra literária que, tal como nas demais obras literárias, o autor se debruça e se fadiga diante de problemas de coerência na narrativa que escreve, é mais do que provável que José de Arimatéia seja um personagem fictício criado por Marcos para cumprir um determinado papel, sem o qual haveria problemas muito maiores do que o argumento do Constrangimento foi capaz de perceber.

Desse modo, fica claro que o Critério do Constrangimento desmorona como critério para estabelecimento de historicidade quando analisado isoladamente, ou seja, sem o conhecimento de certos detalhes que motivariam o autor a narrar uma estória fictícia mesmo que a mesma trouxesse problemas para a igreja em geral.

Ou seja, ainda que um relato trouxesse constrangimentos para a igreja (somando a tudo isso, não se pode estabelecer o grau de constrangimento, o que também pode influenciar a permanência, a criação ou a omissão de certas narrativas!), se o autor achasse que tal relato fosse necessário para estabelecer o seu programa teológico, o mesmo não seria omitido, mas acrescentado e até mesmo ampliado.

Mais do que isso, um fato vem depor contra esse critério:

DIFICILMENTE A IGREJA PRIMITIVA INVENTARIA UM MATERIAL FICCIONAL QUE VIESSE A CONSTRANGER A ELA MESMO POSTERIORMENTE. Por isso, varios materiais que passam pelo Critério do Constrangimento podem, ainda assim, serem meras criações da Igreja.

O Critério da Multipla-atestação.

O Critério da Multipla-atestação é um dos melhores, no entanto, ele cai diante de várias dificuldades:
.
1) Não dispomos de muitas fontes;

2) Não há concenso de que João seja independente de Marcos;

3) Várias fontes independentes pode muito bem usar uma criação fictícia antiga em seu conteudo; Existem vários outros problemas, além do fato de que uma mentira pode muito bem ser atestada por inumeras fontes.

Há também a "ilusão das multiplas fontes", como no caso do relato do Túmulo Vazio. Os estudiosos contemporaneos chegaram a conclusão de que o Túmulo Vazio seja uma criação marcana, e que os demais evangelistas (inclusive João) apenas usaram e modificaram da fonte marcana esse relato. Por isso, fica dificil estabeler o que realmente é uma "Multipla-atestação", sendo que não temos testemunhos suficientes no que se refere aos relatos evangelisticos, muito menos testemunhos de qualidade.

O Critério da Continuidade.

Só tenho uma palavra contra o Critério da Continuidade. Além das críticas que Crossan faz em O Nascimento do Cristianismo, como se pode saber que a igreja primitiva não inventaria um relato e/ou um dito de Jesus fosse de acordo com seus principais e corroborados ensinamentos?

Ademais, Jesus inovou em muitas coisas, trazendo novas concepções à tradição judaica. Na mesma medida, ele seguia muitas coisas da tradição judaica. Por isso, fica dificil usar esse critério como fonte para se determinar o que é histórico e o que não é.

O pior é que Meier usa esses critérios em todos os seus livros. Apesar da seriedade e rigor cientifico de Meier, creio que muitas conclusões serão equivocadas.

Prefiro o método do Crossan, especialmente o que se trata de Crítica Literária. Acredito que se voce determina as intenções do autor e seus motivos por trás das narrativas, comparando com outras fontes, temos mais chances de determinar o que é mito e o que não é.

É isso o que implicitamente faz Geza Vermes em As Várias Faces de Jesus.

É claro que esse método também tem lá as suas limitações. No entanto, o correto é se usar uma boa gama de metodos consideraveis dentro da pesquisa. É por isso que ainda prefito Crossan e Vermes à Meier, o qual, por outro lado, não fica atrás de nenhum outro estudioso do Jesus Histórico. Tenho mais elogios e críticas a obra Um Judeu Marginal, mas por enquanto ficarei somente nessas aqui.

Uma última consideração sobre a obra de Meier. Meier frequentemente critica livros contemporaneos de Jesus por afirmaram que "Jesus fez isso" e "Jesus disse aquilo" com base apenas no texto evangelico.

Ele afirma que essa atitude acrítica prejudica muito a pesquisa histórica. Devemos, por outro lado, analisar e determinar se o texto realmente vez de Jesus antes de afirmar que Jesus disse ou fez isso e aquilo.

Fico pensando naqueles livros esdroxulos que saem nas livrarias, tai como "Jesus, O Maior Psicologo que já existiu", ou "O Modelo de Liderança de Jesus", ou "Jesus, a maior pessoa que já existiu", etc.

Esses livros, sem sombra de duvidas, baseiam suas conclusões (e seus títulos do livro!) não no que Jesus realmente disse ou fez, mas nas criações tanto da igreja primitiva, incorporadas à tradição, como na pena teológica dos evangelistas, que tinham motivos de sobra para retratar Jesus de acordo com suas pressunções - o que realmente fizeram.

Por isso, é essencial - como Meier muito saliente - que para se determinar com mais acuidade algo sobre o Jesus Histórico, se deva primeiramente fazer um levantamento sobre quais fontes e/ou quais conteudos dessa fonte realmente remontam ao Jesus Histórico, e quais são meras criações da igreja primitiva e dos evangelistas.

Um comentário:

fredmorsan disse...

Qualquer um dos critérios citados, inclusive os de Crossan e de Vermes, possuem problemas em si mesmo, já que carregam pressupostos dos próprios autores. A minha visão é que os critérios na verdade são estruturas metodológicas para se organizar o pensamento, a interpretação de um autor. Nada mais que isso. Então, se o autor partir do pressuposto que tudo na bíblia é verdadeiro, vai se valer de critérios que confirmem seu ponto de vista. Caso o autor tenha problemas com algum texto bíblico, utilizará algum critério para tirar seu crédito. Enquanto utilizarmos critérios específicos para o texto bíblico, ao invés de usarmos os mesmos critérios utilzados para obras históricas da mesma época, ficaremos sempre girando em círculos, com cada um tentando impor seu ponto de vista.