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sábado, 7 de novembro de 2009

O IMPÉRIO E A CRUZ: REFLEXOS DA TEOLOGIA IMPERIAL ROMANA NA CRISTOLOGIA DA IGREJA PRIMITIVA

Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de História das Religiões, v. 2, p. 259-276, 2009.
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O IMPÉRIO E A CRUZ: REFLEXOS DA TEOLOGIA IMPERIAL ROMANA NA CRISTOLOGIA DA IGREJA PRIMITIVA (parte 02)
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Prof. Vieira Lima Jr.
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Assimilação intercultural e os evangelhos bíblicos
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Os documentos cristãos cuja autoria tradicional tem sido atribuída a certo “Lucas” e que compõem quase a metade do Novo Testamento, se caracteriza de forma bastante peculiar. São documentos diferentes de qualquer outro encontrado dentro ou foram do cânon. Sua principal marca é a personalidade distinta, culta e cativante do autor, bem como sua preocupação com a informação e com a ordem dos acontecimentos narrados, fazendo-o, de acordo com diversos comentaristas, equiparar-se a outros escritores talentosos da época clássica, inclusive com historiadores como Josefo, Tácito e Tucídides.
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A preocupação desse evangelista com a missão gentílica e diversos aspectos do mundo mediterrâneo faz de seu evangelho o “Evangelho dos Gentios”, e de seu Atos dos Apóstolos a primeira tentativa de se criar uma “historia das origens cristas” de que temos noticia – ambos constituindo uma unidade documental que, no presente trabalho, será tratada dessa maneira.
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É nesse contexto que começam a surgir dentro de sua narrativa evangélica paralelos entre Jesus e outros personagens importantes da historia pagã, principalmente os imperadores romanos.
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O Jesus que o “Evangelho dos Gentios” apresenta é um Jesus helenizado, elaborado de acordo com as ideologias e imperativos da igreja primitiva e de acordo com as intenções literárias desse evangelista. Os elementos helênicos existentes nesse evangelho são gritantes, todos revelando o antagonismo existente contra o império romano e as atribuições lendárias à memória cristã decorrentes desse antagonismo.
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A infância de Jesus, relatada por Lucas, corresponde a um período, do ponto de vista histórico, bastante problemático, mas também bastante rico em atribuições do imaginário.
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Meier (1993, p. 208, grifo nosso) comenta que:
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Pouco ou nada se pode dizer com certeza ou alto grau de probabilidade sobre o nascimento, a infância e os primeiros anos da vasta maioria das figuras históricas do antigo mundo mediterrâneo. Em casos excepcionais de personagens proeminentes, como Alexandre, o Grande, ou o Imperador Otávio Augusto, alguns fatos foram preservados, embora frequentemente entremeados de elementos míticos e lendários. O mesmo padrão é encontrado no Antigo Testamento [...] A tendência à expansão desses elementos “midráshicos[1]” continua para além das Escrituras Canônicas e em várias “recontagens” das narrativas do Antigo Testamento, como por exemplo em Antiguidades Judaicas, de Josefo, e na Vida de Moisés, de Fílon, assim como nos midrashim posteriores rabínicos. Considerando-se este fenômeno de histórias de nascimentos ou infância prodigiosas, compostas para celebrar antigos heróis, judeus e pagãos igualmente, devemos encarar com cautela as Narrativas da Infância de Jesus incluídas nos Capítulos 1 e 2 de Mateus e Lucas.
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De fato, no que se refere às narrativas da infância de Jesus não se pode identificar quaisquer traço de historicidade que possa oferecer informações confiáveis (MEIER, 1993, p. 211). A criação de ficções e a assimilação de elementos lendários são comuns nesse tipo de relato. Isso porque a existência de lacunas nas tradições de Jesus que precisavam ser preenchidas era imensa. Existem lacunas em praticamente todas as dimensões do conhecimento histórico sobre Jesus, transmitidas pelas fontes antigas: nos ensinamentos, relatos, mensagem, atos, ditos, infância, puberdade, nascimento, caráter, personalidade, etc.
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Um dos diversos exemplos que podem ser tomados para ilustrar esse fato se consiste nas estórias bíblicas sobre o nascimento e infância de Jesus. Segundo Brown (2005), toda a tradição herdada sobre Jesus se limita ao tempo de duração de seu ministério[2], o que significa que não existiram materiais tradicionais antigos sobre a infância de Jesus.
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Essa ausência de materiais antigos sobre a infância de Jesus possibilitou a elaboração de materiais que foram assimilados pela tradição e passaram a fazer parte da memória de Jesus. A criação dessas lacunas ajudou no processo de metamorfose da imagem de Jesus, a qual começou antes desses documentos terem sido escritos:
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Não se deve perder de vista que a redação final dos evangelhos não foi feita sem antes ter passado por um complexo período oral, havendo, portanto, uma seleção natural dos relatos que estavam sendo redigidos. Esse processo, longo e gradual, influenciou o rumo teológico que estava em formação nas comunidades cristãs (SCARDELAI, 1998, p. 299).
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Essa fase de metamorfoses da imagem de Jesus anterior aos escritos bíblicos é denominada de “fase oral” das tradições cristãs primitivas. Foi nessa fase que criaram diversas concepções e estórias sobre Jesus – muitas das quais oriundas da imaginação popular e não da memória recebida.
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Tradições populares são elementos constantes de todas as culturas, caracterizadas pela “oralidade” e se metamorfoseiam de acordo com a imaginação individual ou coletiva. São características básicas e bastantes presentes na história da cultura de todas as civilizações.
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A redação dos Evangelhos bíblicos se deu uma etapa mais avançada da história do cristianismo primitivo, cujo intuito foi “oficializar” as tradições recebidas “populares” que mais tarde se tornaram o núcleo da fé cristã ocidental.
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Tradições orais possuem características bastante específicas. De acordo com Arens (2007, p. 71-72), “pelo fato mesmo da comunicação ao longo do tempo, em toda comunicação oral se produz uma série de alterações”.
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De fato, o período oral das tradições de Jesus foi o bastante para que várias lendas e acréscimos se desenvolvessem na tradição popular sobre a imagem de Jesus – a qual acabou se tornando uma “imagem de culto” elaborada pela imaginação coletiva. Por isso, Meier (1998, p. 150), de forma honesta, comenta que: “É preciso levar em conta a criação de lendas na tradição do evangelho”.
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A influência da cultura helenística e romana na formação da identidade cristã
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Duas das mais importantes matrizes para a criação e assimilação de material a tradição de Jesus foi a cultura helenística e a romana. Sendo que: “[...] os camponeses judeus, inspirados por esperanças apocalípticas, não admitiam ser privados da sua liberdade do domínio opressivo estrangeiro e nacional” (HORSLEY, HANSON 1995, p. 63), era inevitável que houvesse antagonismos ao poder imperial regente na Judéia, muitos dos quais se deu através da violência armada, e que se cristalizaram sob a forma de “movimentos messiânicos” cujos principais objetivos era “a restauração da justiça socioeconômica” (HORSLEY, HANSON, 1995, p. 115).
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O próprio Jesus de Nazaré, fundador do movimento que deu origem ao cristianismo, foi violentamente perseguido e sumariamente executado através da crucificação porque as suas reivindicações sob a forma de pregação também negavam enfaticamente os poderes imperiais romanos e os poderes oligárquicos judaicos como legítimos.
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Desse modo, alguns judeus e cristãos poderiam adotar uma política de luta agressiva e direta contra os romanos, enquanto outros judeus e cristãos poderiam adotar outras estratégias, talvez menos explícitas.
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O “culto ao imperador” é um exemplo básico. Tão logo que o império disseminasse esse por todo o território subjugado (incluindo a Palestina judaica), culto este que concebia o imperador como “divino”, “senhor”, “salvador” e “conquistador do universo”, protestos vindo de vários movimentos messiânicos judaicos foram se tornando cada vez mais comuns, pois para os judeus seria impossível reverenciar outra divindade senão Yahweh (Deus).
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Uma das formas usadas pelo cristianismo primitivo para protestar contra o império foi equiparar (ou sobrepujar) Jesus a César como o “Senhor do Universo”. Pelo fato desse protesto ter se dado somente nos âmbitos da mentalidade e do discurso (pois não havia formas de se concretizar na realidade, mas apenas na crença), pode-se encontrar vestígios desse protesto em vários textos bíblicos e principalmente nos Evangelhos.
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Desse modo, um sincretismo religioso, em que elementos helênicos e atribuições lendárias romanos foram assimilados pela memória cristã primitiva, foi motivado pelo do antagonismo existente contra o Império Romano.
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Termos como “evangelho”, “salvador”, “fé”, “senhor”, “assembléias” (igrejas), foram termos cunhados pelo culto imperial e tomados pelo cristianismo primitivo como termos de praxe. De fato, vários atributos de César foram relacionados à figura de Jesus Cristo nas comunidades cristãs primitivas por causa da influência negativa que a visão imperial do mundo romano exerceu na mente dos primeiros cristãos. Era uma forma de “desafiar” o poder imperial romano.
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Continuando, Horsley (ibid., p. 29) lembra que:
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As cidades erigiam monumentos com inscrições que expressavam o credo do florescente culto ao imperador. Uma inscrição procedente da Assembléia Provincial da Ásia (Ásia Menor ocidental) datada do ano 9 a.C. oferece uma expressão vívida das honras divinas e do culto dedicado ao imperador como o salvador que trouxera paz e realizações:
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“Ó diviníssimo César... devemos considerá-lo igual ao Princípio de todas as coisas...; pois quando tudo caía [na desordem] e pendia para dissolução, ele restabeleceu a ordem e deu ao mundo inteiro uma nova aura; César... a boa fortuna comum de todos... O início da vida e da vitalidade... Todas as cidades adotam unanimemente o aniversário do divino César como o novo início do ano... Enquanto a Providência, que regulou toda a nossa existência... levou a nossa vida ao ápice da perfeição ao nos dar [o imperador] Augusto, a quem ela [Providência] encheu de força para o bem-estar dos homens, e que sendo enviado a nós e a nossos descendentes como Salvador, pôs fim à guerra e colocou todas as coisas em ordem; e [por isso,] tendo se tornado [deus] manifesto (phaneis), César realizou todas as esperanças de tempos anteriores... ao superar todos os benfeitores que o precederam..., e enquanto, finalmente, o aniversário do deus [Augusto] se tornou para o mundo inteiro o começo de boas-novas (euangelion) com relação a ele [portanto, que uma nova era comece a partir de seu nascimento]. (OGIS 2.#458)”.

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Crossan (2004, p. 450) afirma que: “Isso não é, já se vê, apenas uma série de coincidências acidentais”, e complementa: “Esse paralelismo fundamental é, portanto, antagonismo profundo: dois programas escatológicos que se chocam um com o outro. O cristianismo sabia disso desde o início e de maneira clara. Roma sabia disso desde o início, mas de maneira obscura” (CROSSAN, 2004, p. 451).
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O simbolismo do discurso antiimperialista nos anúncios sobre o nascimento de Jesus no Evangelho de Lucas
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De acordo com alguns pesquisadores, essa relação de antagonismo entre o Cristianismo e o Império Romano encarnou-se em narrativas simbólicas nos relatos da infância de Jesus nos evangelhos bíblicos – principalmente no Evangelho de Lucas.
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De fato, como a obra lucana é dupla – o terceiro evangelho e o Atos dos Apóstolos – podemos também perceber um duplo objetivo que vez por hora se entrelaçam em todas as narrativas: descrever a expansão do cristianismo como acontecimento de importância cósmica, pondo-a na estrutura cronológica do mundo, da historia e dos governantes seculares, os quais, todos, serão afetados por eles.
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Desse modo, Lucas tentou traçar a rota que mudaria o curso do mundo mediterrâneo – a rota do cristianismo. Por isso, coloriu suas narrativas com detalhes exatos – ou melhor, “vivos” – do mundo mediterrâneo, na medida em que narrava o processo de expansão missionária crista.
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O discurso de Paulo no Areópago, em Atenas, narrado em Atos 17, ilustra muito bem isso: era o cristianismo entrando e agitando o mundo secular dominado pelo Império Romano. Em Atos dos Apóstolos, Lucas dedica em atenção especial em citar, apuradamente, governantes e instituições políticas de varias polis e regiões da Ásia Menor e do Mediterrâneo, incluindo Instituições religiosas: Os “Neokoros” (Guardiões do Templo de Ártemis), os ouvires de Efeso, o procônsul Sergio Paulo, Gálio o procônsul da Acaia, os procônsules da Ásia, os “litores”, os “politarcas”, o Areópago (onde se faziam discursos políticos), o “homem principal de Malta”, “estratopedarca”, os tetrarcas, Quirino, etc.
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Um exemplo desse sincronismo artificial lucano entre o cristianismo e o mundo greco-romano pode ser ilustrado quando o autor do Evangelho de Lucas (3.1,22) introduz sua narrativa sobre o ministério terreno de Jesus da seguinte forma:
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No ano décimo quinto do império de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judéia, Herodes tetrarca da Galiléia, seu irmão Filipe tetrarca da Ituréia e da Traconítide, e Lisânias tetrarca de Abilene, sob o pontificado de Anás e Caifás, [...] o Espírito Santo desceu sobre [Jesus] em forma corporal, como pomba. E do céu veio uma voz: “Tu és o meu Filho; eu, hoje, te gerei”.
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A atenção enfática dada por esse evangelista aos governantes locais – e principalmente romanos – é ressaltada no relato sobre o nascimento de Jesus, que se deu, segundo o autor lucano, nos dias em que Quirino era governador da Síria, quando César Augusto promulgou um edito determinando que todo o mundo sob o jugo romano fosse recenseado (Lucas 2.1,2).
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Scardelai (1998, p. 131), ao observar o encadeamento existente no Evangelho de Lucas entre os acontecimentos que envolvem Jesus e os acontecimentos imperiais, como o recenseamento, exclama: “Não se sabe qual teria sido o interesse particular de Lucas em ligar o nascimento de Jesus ao censo”.
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Brown (2005, p. 496), por outro lado, afirma que o interesse particular de Lucas em ligar o nascimento de Jesus a esses acontecimentos romanos não é de todo desconhecido, e que não somente o nascimento, mas também seu ministério é colocado em uma consonância cronológica com o tempo romano, numa forma deliberada de justapor Jesus ao império:
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Lc 3,1-2 descreve o início do ministério [de Jesus] como acontecimento de importância cósmica, pondo-o na estrutura cronológica do mundo e dos governantes locais que, em última instância, serão afetados por ele. Do lado romano da lista de governantes, há Tibério César, o imperador, e depois Pôncio Pilatos, o governador local da Judéia – Lucas e seus leitores sabem que as ondas provocadas pela imersão de Jesus no Jordão vão finalmente começar a mudar o curso do Tibre[3]. E, assim, não é surpreendente que, quando retrocede o momento cristológico para a concepção e o nascimento de Jesus, Lucas dê ao nascimento também um lugar na estrutura cronológica dos governantes mundiais e locais, ao mencionar Augusto César, o imperador romano, e, em seguida, Quirino, o legado local da Síria. Ironicamente, o imperador romano, a figura mais poderosa do mundo, serve ao plano de Deus, promulgando um edito para o recenseamento de toda a terra. Ele proporciona o cenário apropriado para o nascimento de Jesus, o Salvador de todas aquelas pessoas que estão sendo registradas.
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Desse modo, os relatos lucanos seria uma resposta à propaganda imperial romana e a sua ideologia imperial e cultual.
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De acordo com Bonz (apud Koester, 2005, p. 55), o autor do Evangelho de Lucas (que foi o mesmo autor de Atos dos Apóstolos) não estava alheio aos meios propagandísticos do culto imperial: “o modelo literário da obra de Lucas foi a antiga epopéia grega recriada na obra latina de Eneida, de Virgilio”. A Eneida, de fato, trata sobre as origens de Roma e realiza elogios publicitários a César Augusto.
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Desse modo, o Evangelho de Lucas apresenta justaposições explícitas entre Jesus e César Augusto, em um jogo claro de contraposições em que a figura de Jesus Cristo não apenas assimila atributos e designações augustianas, mas também é colocado em um nível superior ao imperador romano.
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Em Lucas 2.1,9-11 (grifo nosso) consta o seguinte:
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Naqueles dias [do nascimento de Jesus], apareceu um edito de César Augusto [Καίσαρος Αὐγούστου], ordenando o recenseamento de todo o mundo habitado. [...] O anjo do Senhor apareceu-lhes [a José, Maria e aos pastores] e a glória do Senhor envolveu-os de luz; e ficaram tomados de grande temor. O anjo, porém, disse-lhe: “Não temais! Eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor, na cidade de Davi”.
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De acordo com Brown (2005), a intenção de Lucas, nessa passagem, é proporcionar ao nascimento de Jesus um lugar na estrutura cronológica de governantes mundiais e locais, ao mencionar Augusto César, o imperador, e em seguida, Quirino, o legado local da Síria.
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Na referida passagem, o autor do Evangelho de Lucas usa a palavra Αὐγούστου [Augoustou] para designar o César Augusto. Esse uso específico, que se caracteriza pela transliteração grega de um nome latim (e não em grego), não é comum. Em Atos 25.21-25, o autor usa a palavra grega Sebastos, equivalente grego do latim, como título. Desse modo, o autor de Lucas usa o nome individual de César com o objetivo de contrapô-lo ao nome de Jesus, também apresentado de forma individual (BROWN, 2005, p. 793).
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Essa contraposição entre Jesus Cristo e César Augusto é ainda mais acentuada pelo uso lucano do termo “hoje” (“Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor”), que denota o nascimento de Jesus e o contrasta às celebrações do dia do nascimento de César Augusto:
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A hipótese de que “neste dia, nasceu [...] um Salvador”, de Lucas (2,11) é alegação cristã contrária à propaganda imperial associada à celebração do aniversário de Augusto é realçada pelas descobertas em Roma que mostram o cuidado empregado na observância do dia do imperador: os cálculos da direção dos raios do Sol naquele dia tinham um papel importante no alinhamento dos monumentos relacionados a Augusto na cidade, a saber, o obelisco em Montecitorio, o Ara Pacis e o mausoléu (BROWN, 2005, p. 793).
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De acordo com Brown (2005, p. 497), a asserção na inscrição Priene de Augusto – “O nascimento do deus marcou o início da Boa-Nova para o mundo” – é reinterpretada por um anjo do Senhor com o brado heráldico: “[...] eu vos anuncio a Boa-Nova de uma grande alegria que será para o povo todo: Para vós, neste dia, nasceu na cidade de Davi um Salvador, que é Messias e Senhor” (Lc 2,10-11). De fato, essa passagem deixa clara a contraposição deliberada efetuada pelo autor do Evangelho de Lucas entre o César Augusto e Jesus Cristo.
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Desse modo, podemos afirmar que a narração lucana do nascimento de Jesus apresenta um “desafio implícito a essa propaganda imperial, não negando os ideais imperiais, mas proclamando que a verdadeira paz do mundo foi trazida por Jesus” (BROWN, 2005, p. 497).
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Brown (2005, p. 497) também comenta que as alusões lucanas a “paz” (cf. Lc 1.79; 2.14) também se enquadram nesse quadro de antagonismos fomentado pelo cristianismo antigo em relação ao culto imperial, pois enquanto os exércitos romanos proclamavam a “pax Augusta”, os exércitos celestiais proclamavam a “paz Christi”.
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A demonstração de extrema sabedoria precoce de Jesus enquanto ainda menino também faz parte do modelo bastante comum do imaginário da época de colocar o herói ou imperador romano como portador da sabedoria divina desde a infância:
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É criação comum em muitas culturas e literaturas fazer do menino o pai do homem, criando histórias da meninice de grandes figuras, que antecipam a grandeza do protagonista. Com freqüência, essas histórias caracterizam um conhecimento surpreendente demonstrado em uma idade entre dez e quatorze anos; por exemplo, histórias de Buda na índia, de Osíris no Egito, de Ciro, o Grande, na Pérsia, de Alexandre Magno na Grécia e de Augusto em Roma. [...] O propósito dessas histórias é mostrar a grandeza do protagonista desde o início de sua maturidade (BROWN, 2005, p. 576).
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De fato, nem César Augusto e nem Jesus de Nazaré escaparam de serem caracterizados como “prodígios” em suas infâncias: o primeiro motivado pela propaganda imperial que rondava em todo o império romano; o segundo motivado pela oposição à teologia imperial, pelo desejo de equiparar (ou mesmo superar) Jesus a César e pelo intento de mostrar a grandeza e a ascendência divina do messias desde o início de sua infância.
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Considerações finais
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Desse modo, torna-se clara a existência de um forte conflito ideológico entre primeiros cristãos e o culto imperial romano, mais especificamente do primeiro em relação ao segundo. Apesar da atitude anti-beligerante do cristianismo primordial em relação ao Império Romano, os cristãos primitivos não aceitaram de bom grado as propostas teológicas do culto que os dominadores traziam, e não se calaram diante da exigência de se prestar reverência e adoração a imagem do imperador.
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O marco desse trabalho foi demonstrar que discursos antiimperialistas estão presentes, ainda que de forma simbólica e camuflada, nos escritos do Novo Testamento cristão, que se constituem os primeiros escritos da religião cristã.
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As influências extra-cristãs na formação do imaginário cristão primitivo foram marcantes, sendo que, enquanto os cristãos primitivos não aceitavam as propostas teológicas do culto a imagem do imperador, utilizavam os elementos desse mesmo culto imperial para construir a imagem de culto a Jesus Cristo. Por isso, podemos concluir que a teologia imperial exerceu um importante papel na construção da cristologia e teologia cristã.
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Referências bibliográficas
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BROWN, Raymond E. O Nascimento do Messias: comentário das narrativas da infância nos evangelhos de Mateus e Lucas. São Paulo: Paulinas, 2005 (Coleção bíblia e história).
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_____________. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: Milagres. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Vol. II, livro III.
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SCARDELAI, Donizete. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus: Jesus e outros messias. São Paulo: Paulus, 1998.

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Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de História das Religiões, v. 2, p. 259-276, 2009.
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[1] Midrash, ou Midraxe, é o termo usado para se designar um gênero literário bastante comum entre os judeus na época de Jesus, em que passagens do Antigo Testamento são usadas em um novo contexto com um novo sentido. Através do Midrash, pode-se criar narrativas fictícias e tomá-las como verdadeiras, sendo que sempre se poderá alegar que a correspondente passagem no Antigo Testamento foi “profética” (Brown, 2005, p. 663).
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[2] O ministério de Jesus durou 1 (um) ano, segundo os Evangelhos sinópticos, e 3 (três) anos, segundo o Evangelho de João, do ano 29 d.C. a 31 d. (Meier, 1993).
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[3] O Tibre é um rio no território italiano, com nascente na Toscana, cujas margens passam por Roma (cf. GIORDANI, 1985).

O IMPÉRIO E A CRUZ: REFLEXOS DA TEOLOGIA IMPERIAL ROMANA NA CRISTOLOGIA DA IGREJA PRIMITIVA

Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de História das Religiões, v. 2, p. 259-276, 2009.
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O IMPÉRIO E A CRUZ: REFLEXOS DA TEOLOGIA IMPERIAL ROMANA NA CRISTOLOGIA DA IGREJA PRIMITIVA (parte 01)
Prof. Vieira Lima Jr.
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Considerações iniciais
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O presente trabalho propõe a existência de um forte antagonismo cristão ao Império Romano no primeiro século e de um conflito ideológico em relação ao culto imperial romano que pode ser rastreado nos textos do Novo Testamento a partir de novas abordagens hermenêuticas e histórico-exegética, revelando que o cristianismo começou como uma religião de protesto e resistência ideológica, essencialmente de cunho antiimperialista e consolidou diversas formas de protesto em seus discursos. Porém, foi um protesto velado: simbolismos que degradavam o imperador na mesma medida em que elevava a figura de Jesus, declarações de que Jesus era o “Senhor” do mundo, que implicava ser ele o verdadeiro imperador e não César, narrativas parabólicas sobre a expulsão dos romanos das terras judaicas, e a criação do epíteto “Besta” para designar todo o Império.
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No entanto, para que se possa analisar tal realidade histórica, é necessário que comecemos a partir da situação dos judeus da Palestina do século I. Subjugados por um império estrangeiro (Roma) e possuindo uma rica tradição político-religiosa e nacional, os judeus lembravam-se amargamente da época em que foram subjugados e deportados pelo Império Babilônico, no século VII a.C., até que um rei libertador (Ciro, o Grande, da Pérsia) concedeu-lhes a liberdade que tanto aspiravam, sendo proclamado “ungido” (messias) (SCARDELAI, 1998).
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A memória do chamado “Cativeiro Babilônico” ficou gravada para sempre nas tradições judaicas como símbolo da opressão, da desgraça e da vergonha. Por isso, era inevitável que tais lembranças se associassem a situação presente, e que o povo judeu visse no Império Romano uma nova “Babilônia” , um novo símbolo da opressão, da desgraça e da vergonha.
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De acordo com Horsley e Hanson (1995, p. 43):
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Depois do governo duramente opressivo dos reis dependentes de Roma (Herodes e seus filhos), seguiu o governo direto dos governadores do império estrangeiro, algo que os judeus não tinham experimentado desde a conquista babilônica e persa inicial.
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A presença romana representou um choque na mente dos judeus da Palestina da época de Jesus, pois simbolizava não somente a escravidão, mas também a distância do povo em relação a Deus.
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O presente trabalho, ao propor a existência de um forte antagonismo cristão ao Império Romano no primeiro século e de um conflito ideológico em relação aos primeiros cristãos com o culto imperial romano que pode ser rastreado nos textos do Novo Testamento, começa, contraditoriamente, enfatizando a impossibilidade de tal idéia.
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Novas abordagens hermenêuticas e histórico-exegéticas tem revelado que o cristianismo começou como uma religião antiimperialista e consolidou diversas formas de protesto em seus discursos. Porém, foi um protesto velado: simbolismos que degradavam o imperador na mesma medida em que elevava a figura de Jesus, declarações de que Jesus era o “Senhor” do mundo, que implicava ser ele o verdadeiro imperador e não César, narrativas parabólicas sobre a expulsão dos romanos das terras judaicas, e a criação do epíteto “Besta” para designar todo o Império.
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O objetivo do presente trabalho é apresentar indícios, ainda que indiretos (mas nem por isso inconclusivos) da existência de um discurso antiimperialista nas narrativas dos Evangelhos bíblicos e de outros escritos neotestamentários.
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A partir da constatação desses indícios, propomos que a influência da ideologia e propaganda imperiais romanas foi decisiva para a formação da imagem de culto a Jesus Cristo, que se moldou na medida em que os escritos do Novo Testamento eram escritos.
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O trabalho parte de uma abordagem historiográfica e comparativa, onde se analisa o material bibliográfico contemporâneo e se faz uma análise na documentação textual antiga, principalmente de antigos documentos cristãos e romanos. Esperamos com isso trazer novas luzes sobre as origens do cristianismo e seu lugar no mundo mediterrâneo e judaico do qual nasceu e floresceu.
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Cristianismo, circularidade cultural e o conceito de transformação intercultural
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Carlo Ginzburg (2006, p. 10), ao fazer alusão a “circularidade” da cultura na Europa pré-industrial, afirma que: “Entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas [...] [existe] um relacionamento circular feito de influencias recíprocas, que se move de baixo para cima, bem como de cima para baixo”.
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Uma das formas de circularidade da cultura reside no processo de transformação de determinado elemento cultural sofre no decorrer das influencias recíprocas. De fato, pode-se observar que diversos elementos culturais, mesmo aqueles que sofrem resistência e rejeição, não são ao todo “abandonados”, mas, ao invés disso, são transformados e assim penetram no âmago cultural de diferentes classes, sejam elas dominantes ou subalternas, constituindo um jogo de metamorfoses dialéticas.
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Uma forma de transformação é realizada no processo de sincretismo religioso, como acontece com a religião cristã. De fato, é notório que o imaginário mágico-taumaturgico do cristianismo traz consigo diversos paralelos com outras formas de manifestação do imaginário mágico em geral, principalmente o pagão. Principalmente em nível popular, se observa que diversos elementos pertencentes ao âmbito extra-cristão, ao invés de serem eliminados, são simplesmente transformados, absorvidos e assimilados as formas de culto populares, influenciando até mesmo as formas normativas da religião cristã – constituindo um “sincretismo religioso”.
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O antiimperialismo no livro de Apocalipse de João
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O Apocalipse de João descreve, de modo metafórico, as experiências de perseguição, opressão e violência que as comunidades cristãs sofreram no último quarto do primeiro século, exercidas pelo império opressor. A referência ao sangue dos mártires e do cordeiro degolado (Apoc. 1.5,7; 5.6,9,12; 7.14; 12.11; 19.7,9,13), do qual Deus “toma vingança” (6.10; 19.2), o testemunho do próprio autor, denominado João, que havia sofrido perseguição, razão para ter sido exilado na ilha do Patmos (1.9), sendo que um de seus companheiros, chamado “Antipas”, havia sofrido destino pior, sendo martirizado (2.13), mostra como as perseguições aos cristãos eram comuns no final do primeiro século e quanto a comunidade cristã ansiava por denunciar esses crimes do império.
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Na ocasião da abertura do quinto selo, são vistas debaixo do altar as almas de pessoas degoladas por causa do testemunho dado a Cristo (6.9-11). Do mesmo modo, as duas testemunhas de Deus são assassinadas em Jerusalém, em peleja contra a “Besta” (Roma) (11.7-8). O “dragão”, símbolo do império romano, guerreia injustamente contra os filhos da mulher (a igreja) (12.17). Apocalipse 13 realiza uma descrição detalhada acerca dos mecanismos econômicos de opressão e violência que caracterizaram ao império romano (13.16-17). Os capítulos 17.18 descrevem em detalhe a riqueza obscena da “Babilônia” (Roma), a “grande prostituta” que se conluia com os reis da terra.
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Desse modo, o tema do martírio cristão imposto pelo Império Romano e sua denuncia é central para o autor desse livro.
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Na época em que o livro de Apocalipse de João foi escrito, o imperador Domiciano se conclamava “Senhor e Deus” (dominus et deus) (KOESTER, 2005, p. 269), e portanto foi o principal inspirador da repulsa ao culto imperial apresentado de forma explícita porém simbólica ao longo de todo o livro de Apocalipse.
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No ano 112 d.C., Plínio II, governador romano da Bitínia, província da Ásia Menor, envia uma carta ao imperador Trajano a respeito dos “cristãos”, os quais estavam sendo acusados de vários crimes: negavam-se a dar culto ao imperador, mas somente cantavam hinos a “Cristo como único Deus” e observavam certos preceitos como não furtar, não roubar, não cometer adultério e não enganar. Desse modo, fica claro que a repulsa cristã ao culto imperial era constante no começo do século II d.C. e no final do primeiro século.
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Inúmeras são as referências antiimperialistas no livro de Apocalipse. No entanto, nos concentraremos em somente uma: o simbolismo da besta. De acordo com Koester (2005, p. 271), da época em que o Apocalipse de João foi escrito “era necessário encontrar uma resposta que desse sentido à experiência da igreja cristã aflita e temerosa. O profeta João se propõe a dar essa resposta e a fortalecer a visão de que Cristo e não César era o governante predestinado do mundo”.
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Koester (2005, p. 274, 275) comenta que, para o autor do livro de Apocalipse, o Estado romano (13.1-10) e seu governante (13.11-18) são os verdadeiros inimigos do reino divino na terra, como um poder oposto a Deus:
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Este inimigo de Deus exerce seu poder maléfico por meio da adoração, o culto ao imperador, que perverte e destrói todas as nações (13.6-10,15-17). A única alternativa é fidelidade ao Cordeiro (14.1,5). João não censura o mal no mundo em geral, mas atribui esse mal a uma única causa: o culto ao imperador. [...] Nas afirmações sobre Roma, e especialmente na lamentação dos mercadores depois da queda de Roma, a crítica ao poder econômico que domina o mundo, consubstanciado em Roma, é o ponto central.
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A justaposição entre Cristo e a Besta e seu falso profeta por João reflete claramente a oposição do cristianismo e de seu Messias ao poder imperial personificado na figura de César. Segundo Koester (2005, p. 275), a simbologia numérica do Apocalipse retrata César Nero, que seria concebido pelos seus adoradores como “um messias pagão”:
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É admissível que o número 666 (13,18), o número 8 (17,11) e também a interpretação do animal (13,3;17,10-12) se refiram ao retorno esperado do imperador Nero, o Nero Redvivus. 1 + 2 + 3 +...+ 8 = 36 e 1 + 2 + 3 +...+ 36 = 666, o que é o equivalente das letras CAESAR NERON no sistema numérico grego. O Nero Redvivus, que é rejeitado por João, não é o perseguidor cruel dos cristãos , mas a figura amada de crenças populares disseminadas, uma espécie de figura messiânica pagã.
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Já Knohl (2001, p. 46) afirma que o simbolismo da Besta é anterior a Cesár Nero, remontando a Augusto César, sendo que a descrição da narrativa apocalíptica se enquadra de forma mais adequada no contexto desse imperador romano:
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Ao longo da história do cristianismo, todos os tipos de interpretações foram sugeridos para a visão das duas bestas, mas ao que consta até agora nenhuma explicação realmente convincente foi dada. Em minha opinião, a chave para o entendimento da visão é nos conscientizarmos de que João, que parece ter escrito o livro da Revelação (ou Apocalipse) por volta de 80 E.C., se valeu de uma composição mais antiga, redigida no início do século I E.C., durante o reinado de Augusto.
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Para demonstrar que o simbolismo apocalíptico da Besta remonta a Augusto César, Knohl (KNHOL, 2001, p. 46. Cf. SUETÔNIO, 2006, p. 135) afirma que existe uma relação muito próxima entre as características da Besta de dois chifres e o símbolo imperial de Augusto, a saber, o signo de Capricórnio:
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A segunda besta é descrita com dois chifres como os de um cordeiro e com fala de dragão. Essa estranha combinação de dragão com chifres de cordeiro pode ser devidamente explicada pela propaganda com relação à origem divina de Augusto. A figura de um cabrito ou um bode com dois chifres – o Capricórnio – ocupava um lugar destacado no mito da divindade de Augusto, pois era o signo do mês de sua concepção.
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De fato, a figura de um Capricórnio, um tipo de bode com corpo de peixe e dois chifres sustentando o globo do mundo, aparece em moedas romanas da época sob a inscrição “Augustus” (CRAWFORD, 1983, p. 52).
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Já a alusão apocalíptica ao dragão pode também remontar ao imperador Augusto. De acordo com Suetônio e Cássio Dion (CASSIO DIONE, 1998. cf. 45.1,2), a Átia, mãe de Augusto, afirmou ter mantido relações sexuais com um dragão (serpente, segundo outras versões), enquanto dormia no templo de Apolo e que naquele momento concebia Augusto, que nasceria nove meses depois.
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O dragão simbolizava o deus Apolo (o deus protetor ou o “pai”, segundo o imaginário da época, de Augusto), cujo título “Apolo Pítico” havia recebido depois que matou Píton, um terrível dragão que vivia na caverna de Delfos (Cf. COLLINS, 2001) . Por isso, Augusto também foi representado como Apolo, como um dragão.
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Desse modo, o simbolismo da besta de dois chifres que falava como um dragão representava o imperador Augusto. Os dons proféticos de Apolo, que inspirada os oráculos de Delfos, foram atribuídos a Augusto, sendo que:
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O autor da visão do Apocalipse argumentava contra a propaganda de Augusto, sustentando que este não era um verdadeiro, mas sim um falso profeta, que falava como um dragão. [...]. Enquanto Augusto usava o mito de Apolo com o fim de conferir a divindade deste a si mesmo, o autor da visão usou o mesmo mito para representá-lo como um terrível dragão (KNHOL, 2001, p. 48).
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Desse modo, ao associar a figura do imperador com um dragão e uma besta selvagem (principalmente com a besta de Daniel) o autor de Apocalipse contrapõe, de modo simbólico, o cristianismo e seu messias ao império romano e seu imperador, numa forma de protesto ao culto e a hegemonia romano do mundo – cujo verdadeiro imperador não é outro senão Jesus Cristo.
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A imagem da primeira besta, por sua vez, que foi adorada pelos habitantes da terra a mando do falso profeta (13.12), representa Roma, cuja uma das cabeças foi “ferida mortalmente” por um golpe desferido contra ela. De acordo com Knhol (2001, p. 48, 49):
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O golpe na cabeça foi desferido pelos conspiradores que assassinaram Júlio César, mas o império romano se recuperou e continuou a dominar o mundo. Portanto, a imagem da primeira besta, que o falso profeta havia convencido todos os habitantes da terra a adorar, era a estátua representando o Império Romano. O fato é explicado por Suetônio, que registra a ordem de Augusto para a colocação de uma estátua da deusa Roma, símbolo do Império Romano, junto à estátua do imperador nos templos erigidos em sua honra. Augusto era o falso profeta do culto imperial à estátua de Roma.
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Para Knohl (2001, p. 52), o indício mais certo de que Augusto e seu culto imperial é o foco no capítulo 11, 12 e 13 de Apocalipse consiste na declaração sobre o átrio externo do templo de Jerusalém: “Foi-me dada uma vara semelhante a uma vara de agrimensor, e disseram-me: Levanta-te! Mede o templo de Deus e o altar com seus adoradores. O átrio fora do templo, porém, deixa-o de lado e não o meças: foi dado aos gentios” (Apocalipse 11.2,3).
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Na ocasião da Guerra Judaica contra Roma, que se deu entre os anos 66 e 70 d.C., os romanos capturaram tanto o átrio quanto o templo. Por isso, a descrição apocalíptica não se enquadra com estes eventos. No entanto, durante a revolta dirigida pelos judeus contra o sucessor de Herodes Magno, Arquelau, no ano 4 a.C., os soldados romanos entraram no átrio do Templo e saquearam o tesouro, ateando fogo às câmaras externas do pátio, mas não entrando nos recintos interiores do Templo. De acordo com Knohl (2001, p. 52, 53), a realidade histórica do ano 4 a.C. se enquadra na passagem de Apocalipse 11.1-2 bem mais que a realidade histórica do ano 70 a.C.:
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A revolta de 4 a.C, foi brutalmente esmagada por Quintílio Varo, legado de Augusto para a Síria. Varo chegou da Síria com duas legiões e outras forças. Os soldados de seu exercito semeavam a destruição por onde passavam e violavam as mulheres; Varo crucificou dois mil dos rebeldes e outros foram feitos prisioneiros e vendidos como escravos. Os judeus consideraram Augusto, o César romano, responsável pela brutal repressão da revolta e pelo incêndio do pátio do Templo. [...] Aos olhos dos judeus, ele foi responsável pelas ações de seu legado Varo e seus soldados. À luz desse pano de fundo, podemos entender por que Augusto é pintado com tanto ódio nas fontes que temos examinado.
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Portanto, de uma forma ou de outra, fica claro o lugar central de Roma na crítica antiimperial do Apocalipse de João. Por isso, a contraposição acalorada para com Roma a transforma, nesse apocalipse, em uma Babilônia, a mãe das prostitutas, embriagada com o sangue dos santos e mártires (17.5-6). É a partir desse viés que João espera nada menos que sua destruição total e a restituição do reino da terra para seu verdadeiro senhor: “O sétimo anjo tocou a trombeta. Ressoaram então no céu altas vozes que diziam: O império de nosso Senhor e de seu Cristo estabeleceu-se sobre o mundo, e ele reinará pelos séculos dos séculos” (Apocalipse 11.15).

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Continua...
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terça-feira, 27 de outubro de 2009

LUCAS: PROPAGANDA CRISTÃ COM ROUPAGEM HISTORIOGRÁFICA: O “Evangelho dos Gentios” e o romance da veracidade histórica (Parte 02)

LUCAS: PROPAGANDA CRISTÃ COM ROUPAGEM HISTORIOGRÁFICA:
O “Evangelho dos Gentios” e o romance da veracidade histórica
(Parte 02)
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Prof. Vieira Lima Júnior
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Além dos erros históricos, geográficos e de estruturação, a obra lucana apresenta uma série de problemas que impedem os especialistas contemporâneos de considerá-lo uma verdadeira obra historiográfica. Primeiramente, deve-se enfatizar que, até mesmo para historiadores da Antiguidade Clássica e romana, o uso e explicitação de critérios e metodologia eram centrais. Momigliano (2004, p. 19) destaca a importância da questão metodológica na historiografia ao fazer o seguinte comentário: “[...] em cem pessoas que podem explicar um acontecimento apenas uma ou duas têm a habilidade técnica – o equipamento do historiador – para decidir se aquele acontecimento foi de fato um acontecimento, se realmente existiu”.
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Por exemplo, nos historiadores gregos existia uma grande preocupação sobre a confiabilidade dos dados que utilizam em seus trabalhos. Até o século 6 a.C., nenhum escritor se preocupou com a questão da análise crítica dos acontecimentos passado. A crítica histórica foi uma invenção grega. Um dos primeiros critérios objetivos desenvolvidos pelos gregos para separar fatos de fantasias foi à comparação entre tradição. Deve-se a Heródoto o título de “Pai da História” por causa de sua iniciativa nesse sentido.
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O que Momigliano (2004, p. 63) chama de “exame cruzado de testemunhos” constitui a primeira característica do historiador. Lucas, por seu turno, jamais cita nem sequer discute as fontes que utiliza. Sabemos – não por Lucas – que ele copiou (as vezes integralmente) grande parte de seu evangelho do Evangelho de Marcos – sem dar o devido credito a essa fonte, nem sequer fazer uma discussão sobre isso.
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Lucas se cala diante de métodos e critérios, apenas se limitando a dizer que, como outros antes dele, apresentaria um relato ordenado sobre os fatos que “investigou”, fazendo isso possivelmente sem levar em conta critério algum, não crivando qualquer material que se posse em sua frente – de conteúdo verdadeiro ou falso.
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Richard Carrier, especialista em história greco-romana, ao fazer considerações sobre a confiabilidade de Lucas, o compara com outro historiador da época, Arrian, para testar a alegação crista de que Lucas é confiável. Carrier (2009 [online]) afirma que Arrian relata a história de Alexandre o Grande quinhentos anos após os fatos. Mas o faz explicitamente oferecendo um método seguro.
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Arrian diz que ignorou todas as obras não escritas por testemunhas. Em vez disso, confiou somente em antigos textos disponíveis de testemunhas oculares da campanha de Alexandre. Eles os nomeia e discute suas conexões com Alexandre. Ele então diz que, sobre cada ponto onde eles concordam, simplesmente registraria o que eles disseram, mas onde discordam de modo significativo, ele citaria ambos relatos e identificaria as fontes que discordam [...] se Arrian fez o que disse, ele é quase tão bom quanto a fonte de uma testemunha ocular (de fato, argumentavelmente melhor).
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Lucas, por outro lado, nem chega perto de Arrian quanto aos procedimentos utilizados. De forma alguma Lucas traça um método a ser seguido. Também não determina e nem discrimina suas fontes, como um bom historiador faz. Por isso, Carrier (2009 [online]) conclui sua análise afirmando que:
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Lucas não pode ser associado a Arrian (Ário) como historiador crítico. Ele consegue ser ainda pior quando comparado como Polybius (Políbio) ou Thucydides (Tucídides). Nem mesmo alcança o nível de historiadores inferiores como Tácito e Josefo – que apesar de não oferecerem uma clara discussão dos seus métodos, frequentemente nomeiam suas fontes e explicitamente mostram um senso crítico ao escolher entre relatos divergentes e confusos.
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Além disso, existem outros grandes defeitos de caráter historiográfico na obra lucana: em nenhum momento Lucas procura conhecer os aspectos históricos e geográficos da região narrada (como Heródoto e outros historiadores do passado fizeram) – como fica patente em suas narrativas sobre a Palestina judaica da época de Jesus, as quais apresentam grandes equívocos tanto históricos quanto geográficos (Lucas só acerta quando se refere ao mundo do Mediterrâneo).
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Lucas também altera suas fontes de modo considerável – não por motivo de veracidade histórica, mas por mera questão de conveniência, ideologia e gosto. Suas omissões em relação a sua principal fonte – o Evangelho de Marcos – são as mais características e as que mais ajudam a traçar seu perfil. Por exemplo, Lucas omite a história da “mulher siro-fenícia” narrada em sua fonte marcana porque nesse relato Jesus atesta a exclusividade judaica de sua missão – coisa incompatível para o programa teológico de Lucas, o autor do “Evangelho dos gentios” (VERMES, 2006, p. 259. Cf. Mc 7.24-30//Mt 15,21-28) Lucas também omite, convenientemente, a “oposição aberta” que Paulo tomou contra Pedro no Concílio de Jerusalém, já que os dois “heróis” de sua narrativa não poderiam se chocar um contra o outro (comp. Gálatas 2.11-17 com Atos 15). Outro é o do “Jesus irado”, o qual Lucas, não querendo que seus leitores concebam Jesus dessa forma, omite a passagem em que Marcos afirma que Jesus se encheu de ira. Lucas também omite a afirmação marcana de que a família de Jesus o havia considerado “louco” (cf. Mc 1.41; 3.5,21).
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Geza Vermes (2006, p. 261) comenta: “O desempenho imperfeito das curas de Jesus é revisado e melhorado por Mateus e por Lucas: em vez de ‘muitos’ doentes foram curados (Mc 1.34; 3.10) [...] Lucas afirma que ‘todos os que estavam enfermos’ foram curados (Lc 4.40)”. Enquanto a passagem de Marcos – que afirma que Jesus não foi capaz de fazer milagres em Nazaré – é mudada para: “Jesus não fez ali muitos milagres” em Mateus (Mt 13.58), Lucas, envergonhado, simplesmente omite essa passagem marcana.
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Lucas omite todas as passagens (presentes tanto em Marcos quanto em Mateus) em que Jesus proíbe os discípulos de visitarem os gentios e os samaritanos – pelo fato de Lucas ser um cristão gentio. Lucas também omite a primeira proclamação de Jesus de que o reino de Deus estava próximo (Mc 1.15; Mt 4.17, 10.7 comp. Com Lc 10.11), porque sabia que já havia passado muito tempo e reino ainda não havia chegado.
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Além das omissões, Lucas transforma o relato marcano da cura da sogra de Pedro em um exorcismo [Lc 4.38-39). Lucas, não gostando do relato marcano em que João Batista batiza Jesus (por implicar superioridade), o modifica, fazendo João Batista ter sido preso antes e não mencionando quem batizou a Jesus (Lc 3.19-22). Marcos afirma que “todos do synedrion” (Mc 14.64) declararam que Jesus era digno de morte e, para livrar a cara de José de Arimatéia, afirma que ele era membro de outro conselho – o bolê. Lucas, não gostando disso, afirma que Arimatéia era “membro do synedrion”, mas que “não concordou com o desígnio dos demais”.
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Além de Lucas não oferecer nenhuma das marcas de um historiador crítico e cuidadoso, e de retalhar o material que lhe serviu de fonte, investe em intensas pregações e propaganda, sendo que implicitamente serve uma agenda ideológica ao invés de uma objetiva investigação em direção a verdade. Muitas vezes Lucas se mostra um investigador tendencioso, procurando fundamentar idéias preconcebidas sobre o que ele e sua comunidade eclesiástica acham que tenha ocorrido, ao invés de tentar buscar a veracidade histórica.
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Atualmente, o bojo da pesquisa histórica sobre os documentos do Novo Testamento tem percebido Lucas não como um historiador, mas como aquilo que ele realmente se propôs a ser: um evangelista. Desse modo, os aspectos retóricos e ideológicos de Lucas estão sendo colocados em relevo para que se possa determinar o quanto este autor influenciou sua narrativa. Como evangelista, o intuito de Lucas era, antes, convencer seu leitor acerca da veracidade da fé crista, do que apresentar uma narrativa isenta de imposição ideológica. Como o núcleo da fé crista era a crença na Ressurreição de Jesus, Lucas eleva essa crença à categoria de prova incontestável, ao afirmar que: “E a eles [Jesus] se manifestou vivo depois de sua Paixão, com muitas provas incontestáveis [τεκμηρίοις], aparecendo-lhes durante quarenta dias e falando das coisas do Reino de Deus. E comendo com eles...” (Atos 1.3,4a).
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No que consistiam essas provas incontestáveis não fica claro, mas analisando a narrativa parece que Lucas quer que o período bastante longo, de aproximadamente 40 dias, em que o Jesus ressuscitado interagiu fisicamente com os discípulos (mas que somente ele e mais nenhum evangelista narra) seja visto como uma prova incontestável de que Jesus realmente ressuscitou. Como termo “tekmêrion” é derivado do grego “tekmor”, que significa “conjectura” – daí o termo “tekmairesthai”, que significa “conjecturar” (GINZBURG, 2002, p, 155. cf. RUSCONI, 2003, p. 452), o que Lucas pretendia era que seus leitores raciocinassem da seguinte maneira: “Se Jesus apareceu e interagiu fisicamente com seus discípulos por mais de quarenta dias – mesmo depois de morto – a única explicação para isso é de que realmente ressuscitou”
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Afirmar que existiram “provas incontestáveis” de algo que não pode, no presente, ser incontestavelmente provado constitui uma forma retórica e literária cuja função psicológica é meramente convencer, não demonstrar objetivamente (já que as provas não podem ser apresentadas).
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Lucas, possivelmente, sabia que seu leitor, a certa altura da história cristã, não poderia ter acesso físico e perceptual direto aos acontecimentos que ele considerava verídicos. Por isso, utiliza um artifício retórico bastante comum em sua época e muito interessante: a “prova narrativa”. Ou seja, o relato, por si só, seria capaz de fornecer todos os motivos para o leitor se convencer e depositar sua crença nela.
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Qualquer pessoa poderia chegar a conclusão de que Jesus realmente havia ressuscitado, caso aceitasse os pressupostos básicos da narrativa apresentada por Lucas, entre os quais se destacam a interação física dos apóstolos com Jesus e os quarenta dias em que o ressurrecto passou entre eles. O uso de Lucas pelo termo retórico “tekmêrion” deixa clara a necessidade que os antigos cristãos gentios tinham de defender a ressurreição de Jesus mediante argumentos retóricos poderosos e convincentes, para que pudessem mostrar à mente inquiridora pagã e versada na dialética e na filosofia evidências concludentes e inegáveis de que Jesus havia ressuscitado, e que por isso se deveria confiar na mensagem cristã.
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Além dos objetivos retóricos e apologéticos, a teologia e narrativa da obra lucana são enveredados pela importância de proporções cósmicas que Lucas concede ao cristianismo ao descrever a expansão do movimento cristão dentro do encadeamento cronológico do mundo, da história e dos governos seculares, em especial do Império Romano.
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Isso significa que o principal objetivo de Lucas, ao relacionar a própria narrativa com o contexto mais amplo da história gentílica e, principalmente, romana, era apresentar um intenso e chocante quadro, para seus leitores gentios, sobre a inserção do cristianismo no mundo romano – preparando a mente de seus leitores para o advento da igreja-matriz.
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O encadeamento da história do então pequeno mas crescente cristianismo nascente dentro da história maior do mundo gentílico e do império e a conseqüente idéia de que esse mundo será afetado pela nova religião emergente não se limita a narrativa de Atos dos Apóstolos; podemos percebê-la logo no inicio da narrativa do Evangelho de Lucas sobre o nascimento de Jesus, quando Lucas (3.1,22 ) o situa dentro da história romana:
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No ano décimo quinto do império de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judéia, Herodes tetrarca da Galiléia, seu irmão Filipe tetrarca da Ituréia e da Traconítide, e Lisânias tetrarca de Abilene, sob o pontificado de Anás e Caifás, [...] o Espírito Santo desceu sobre [Jesus] em forma corporal, como pomba. E do céu veio uma voz: “Tu és o meu Filho; eu, hoje, te gerei” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2006).
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Diversos autores modernos têm comentado que o fato de Lucas ter acrescentado os detalhes históricos apresentados em 3.1 que incluem a alusão ao ano exato do império de Tibério, bem como ao nome do governador da Judéia na época, Pôncio Pilatos, e o nome dos tetrarcas e dos pontífices religiosos do judaísmo deve-se a sua suposta perícia como pesquisador e a uma preocupação cronológica e historiográfica que somente um historiador é capaz de ter.
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No entanto, uma análise mais coerente e abrangente da obra lucana, enfatizando seus objetivos como evangelista, demonstra que a razão para esse detalhismo histórico deve-se ao objetivo literário de Lucas em situar Jesus no contexto histórico dos grandes personagens e magistrados de sua época, sejam eles judeus ou romanos. Esses dois povos, com efeito, constituíram os principais obstáculos para o movimento cristão nascente e, ao mesmo tempo, os meios sem os quais o cristianismo jamais teria alcançado sucesso no mundo mediterrâneo.
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Por isso, Raymond Brown (2005, p. 496) afirma que o interesse peculiar de Lucas em ligar o contexto particular do nascimento de Jesus aos grandes acontecimentos da história romana a nível global trata-se de uma forma deliberada de justapor Jesus e o cristianismo ao império romano e a César:
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Lc 3,1-2 descreve o início do ministério [de Jesus] como acontecimento de importância cósmica, pondo-o na estrutura cronológica do mundo e dos governantes locais que, em última instância, serão afetados por ele. Do lado romano da lista de governantes, há Tibério César, o imperador, e depois Pôncio Pilatos, o governador local da Judéia – Lucas e seus leitores sabem que as ondas provocadas pela imersão de Jesus no Jordão vão finalmente começar a mudar o curso do Tibre[5] E, assim, não é surpreendente que, quando retrocede o momento cristológico para a concepção e o nascimento de Jesus, Lucas dê ao nascimento também um lugar na estrutura cronológica dos governantes mundiais e locais, ao mencionar Augusto César, o imperador romano, e, em seguida, Quirino, o legado local da Síria. Ironicamente, o imperador romano, a figura mais poderosa do mundo, serve ao plano de Deus, promulgando um edito para o recenseamento de toda a terra. Ele proporciona o cenário apropriado para o nascimento de Jesus, o Salvador de todas aquelas pessoas que estão sendo registradas.
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Lucas objetivou traçar a rota que mudaria o curso do mundo mediterrâneo – a rota do cristianismo. Por isso, coloriu suas narrativas com detalhes exatos – ou melhor, “vivos” – do mundo mediterrâneo, na medida em que narrava o processo de expansão missionária cristã.
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O discurso de Paulo no Areópago, em Atenas, narrado em Atos 17, ilustra muito bem essa questão: era o cristianismo entrando e agitando o mundo secular dominado pelo Império Romano.
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Em Atos dos Apóstolos, Lucas dedica em atenção especial a citação detalhada de governantes e instituições políticas de várias pólis e regiões da Ásia Menor e do Mediterrâneo, incluindo Instituições religiosas com o fim de aproximar: Os neokoros (Guardiões do Templo de Ártemis), os ouvires de Éfeso, o procônsul Sergio Paulo, Gálio o procônsul da Acaia, os procônsules da Ásia, os litores, os politarcas, o Areópago (onde se faziam discursos políticos), o “homem principal de Malta”, estratopedarca, os tetrarcas, Quirino, etc.
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Desse modo, Lucas relaciona sua própria narrativa sobre a vida de Jesus e os Apóstolos ao o contexto mais amplo da história, apresentando a inserção do cristianismo no mundo romano. Esse fato explica porque Lucas, em Atos dos Apóstolos, se empenha tanto em fazer alusões a governantes e políticos de cada região em que Paulo e os demais missionários cristãos transmitem a mensagem crista. Isso também se coaduna ao propósito lucano de estabelecer um “Evangelho dos gentios”.
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Por isso, na mesma medida que Lucas se mostra um acurado conhecer de diversos aspectos – principalmente os políticos – do mundo mediterrâneo, também se mostra inapto e desleixado ao descrever o mundo judaico da Palestina da época de Jesus, apresentando erros geográficos grosseiros e falta de conhecimento histórico e topográfico dessa região.
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Lucas não realiza uma acurada descrição do mundo judaico da época de Jesus exatamente porque seu objetivo não é apresentar o cristianismo aos judeus. Vivendo na época da expansão gentílica do cristianismo, seu interesse visava informar e convencer os leitores e cristãos gentios sobre o percurso da fé cristã, de Jerusalém a Roma.
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Em outras palavras, a obra lucana trata-se de uma introdução histórica ao cristianismo romano que mais tarde se transformaria, com Constantino, na Igreja Romana. Portanto, trata-se de uma obra elitista, desenvolvida no objetivo de popularizar e fazer apologia a crenças as principais tradições sobre os fatos que antecederam o surgimento do cristianismo proto-ortodoxo ao público cristão.
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NOTAS:
[1] Para uma análise mais abrangente acerca da identidade do autor da obra Lucas-Atos, cf. FITZMEYER, Joseph A. The Gospel According to Luke. New York: Doubleday, the Anchor Bible, 1981 Vol. 1.
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[2] O uso do nome "Lucas" é apenas convencional. De fato, não sabemos quem era o autor do terceiro evangelho/Atos dos Apóstolos, já que tais escritos são anônimos. A tradição crista impôs a “Lucas, o medico” citado por Paulo em Cl 4.14. No entanto, não existe qualquer indicio de que essa atribuição seja genuinamente histórica.
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[3] Para uma análise mais abrangente acerca de alguns dos diversos cristianismos que não chegamos a conhecer, cf. EHRMAN, Bart. Evangelhos perdidos. Rio de Janeiro: Record, 2008, e KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento: História e literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2005. Vol. II.
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[4] No Brasil. o título desse livro foi “...E a Bíblia tinha razão”, livro bastante difundido entre o público leigo e cristão.
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[5] O Tibre é um rio no território italiano, com nascente na Toscana, cujas margens passam por Roma.



LUCAS: PROPAGANDA CRISTÃ COM ROUPAGEM HISTORIOGRÁFICA: O “Evangelho dos Gentios” e o romance da veracidade histórica (Parte 01)

LUCAS: PROPAGANDA CRISTÃ COM ROUPAGEM HISTORIOGRÁFICA:
O “Evangelho dos Gentios” e o romance da veracidade histórica

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Prof. Vieira Lima Júnior
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Comentário inicial:
O presente artigo tenta responder a uma questão que há muito tempo tem despertado a minha curiosidade:
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Por qual motivo Lucas demonstra ser um escritor acurado ao citar de passagem diversas características locais, administrativas e geopolíticas do mundo mediterrâneo oriental com certa exatidão, ao mesmo tempo em que se apresenta como um pesquisador descuidado e incompetente ao descrever (de forma não tão passageira) diversas características locais, sociais e políticas da Palestina judaica da época de Jesus de um modo tão confuso, desleixado e inexato?
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A resposta para essa pergunta reside em seus objetivos literários como cristão e sua agenda ideológica: apresentar o cristianismo adentrando no mundo greco-romano, de um modo que, pelo menos a nível simbólico, viesse a suplantar o Iluminismo grego - razão para Paulo viajar pelas cidades dos grandes filósofos socráticos e pré-socráticos do Mundo Antigo.
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Por isso, longe dos detalhes relativamente exatos que Lucas apresenta em suas descrições sobre o mundo mediterrâneo apontarem para a suposição errônea de que este evangelista deva ser consdierado um "grande historiador", indicam, em contramão, que Lucas era um grande propagandista da religião cristã no mundo greco-romano, e que seu interesse não era histórico, mas sim ideológico, propagandista e religioso.
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Os documentos cristãos cuja autoria tradicional tem sido atribuída a certo “Lucas” e que compõem quase a metade do Novo Testamento, se caracterizam de forma bastante peculiar. O Evangelho de Lucas e o Atos dos Apóstolos constituem documentos diferentes de qualquer outro encontrado dentro ou foram do cânon. Sua principal marca é a personalidade distinta, culta e cativante do autor, bem como sua preocupação com a informação e com a ordem dos acontecimentos narrados, fazendo com que possa – de acordo com alguns comentaristas – equiparar-se a outros escritores talentosos da época clássica, inclusive com historiadores como Josefo, Tácito, Políbio e Tucídides.
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A preocupação desse evangelista com a missão gentílica e diversos aspectos do mundo mediterrâneo faz de seu evangelho o “Evangelho dos Gentios”, e de seu “Atos dos Apóstolos” a primeira tentativa de se criar uma “história das origens cristãs” que temos notícia – ambos constituindo uma unidade documental que, no presente artigo, será tratada dessa maneira. No entanto, ambos os documentos “lucanos” apresentam traços de obscuridade diante dos olhos de seus leitores.
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Primeiramente, a identificação do autor é bastante problemática, cheia de lendas e suposições. Porém, acredita-se que o autor era um judeu helenizado ou mesmo um grego com boa educação – ou até mesmo um magistrado[1].
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Segundo, a data de composição de ambos os escritos não pode ser estabelecida com certeza. Sendo que a narrativa de Atos dos Apóstolos termina com o cativeiro de Paulo em Roma (61-63 d.C.) e que utiliza o Evangelho de Marcos como fonte principal (70 d.C.), é bastante provável que a data correta de sua composição corresponda às décadas de 80 e de 90 d.C.
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Terceiro, suas relações com outras fontes canônicas e não-canônicas (em especial o Evangelho de Marcos e Evangelho das Fontes de Dito Q) são bastante peculiares e problemáticas. As transposições, omissões e alterações que o autor lucano cria em relação ao material marcano deixa óbvia a liberdade com que utilizava suas fontes.
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Quarto, as intenções do autor lucano não são, ao todo, definidas. À primeira vista, parece que seu objetivo é meramente informativo e historiográfico. Os Atos dos Apóstolos, por exemplo, compõe uma narrativa sobre a expansão cristã no mediterrâneo em meados do século I d.C., relatando diversos episódios situados em variegadas áreas do mediterrâneo. No entanto, diversos aspectos retóricos, criativos e ideológicos podem ser identificados com clareza no decorrer de toda a narrativa.
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De fato, não sabemos o quanto de seu envolvimento ideológico afetou não somente a construção da narrativa, mas também a forma como selecionou e modificou as tradições e materiais que lhe serviram como fonte ao escrever sua “historia das origens cristãs”. Atualmente, os pesquisadores reconhecem que o cristianismo primitivo não era tão homogêneo quanto o autor lucano gostaria que fosse, muito menos tão centralizado. O historiador Paul Johnson (2001, p. 45), ao comentar sobre o inicio do cristianismo, afirma que:
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Infelizmente, o conhecimento que [do movimento de Jesus no início] temos é limitado e distorcido pela inabilidade da parte inicial dos Atos dos Apóstolos. Lucas, imaginando-se que ele tenha escrito esse documento, não se encontrava em Jerusalém na época. Não era uma testemunha ocular. Era membro da missão aos gentios e produto do movimento da diáspora. Não nutria simpatia cultural nem, na verdade, doutrinal para com os apóstolos pentecostais; nesse contexto, não só era um forasteiro como estava mal-informado.
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Além disso, o autor lucano se silencia sobre as diversas frentes cristãs missionárias que se espalharam pelo mundo afora. Nem sequer o apóstolo Pedro escapa, pois sua narrativa é interrompida para narrar a vida de outro (e talvez maior) herói do cristianismo primitivo: o ex-perseguidor do cristianismo e apóstolo Paulo de Tarso.
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O cristianismo que Lucas[2] descreve é o proto-cristianismo romano e, por isso, longe está de constituir um relato abrangente e imparcial das origens cristãs, pois se limita apenas a narrar a trajetória do pequeno (se comparado aos demais) e restrito cristianismo histórico de Paulo. Outros tipos de cristianismo, como a Comunidade Q (cujo evangelho foi perdido, mas ainda assim foi usado como fonte por Lucas), o cristianismo egípcio, o cristianismo judaico, etc. são simplesmente omitidos[3].
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Por isso, seu relato se caracteriza muito mais como uma narrativa de confirmação e legitimação de um tipo de cristianismo já oficializado do que um verdadeiro testemunho histórico das origens do cristianismo em termos gerais. Trata-se não somente de um relato informativo-descrito, mas de um instrumento de criação de opinião e fundamentação de crença. Resumindo, o objetivo básico de Lucas é fazer apologia e propaganda de um tipo de proto-ortodoxo de cristianismo, não de relatar abrangentemente as origens do cristianismo.
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No entanto, tal observação sobre o caráter geral da obra lucana tem sido posta em guerra por proponentes da idéia de que Lucas tenha tentado compor uma verdadeira obra de historiografia comparável as de Tucídides, Heródoto, Políbio, Tácito ou Josefo.
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Isso porque em Atos dos Apóstolos, que compõe a primeira narrativa que temos conhecimento sobre a expansão do cristianismo no mediterrâneo em meados do século I d.C., Lucas se apresenta, pelo menos na aparência, como um acurado conhecedor da realidade cultural, geográfica, social e política de sua época ao relatar episódios situados em variegadas áreas do mediterrâneo – muitas das vezes fazendo alusão a detalhes específicos desconhecidos pela literatura clássica, mas confirmados pelas descobertas arqueológicas.
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Os relatos das viagens de Paulo, por exemplo, refletem com certa exatidão e amplitude o mundo mediterrâneo – em especial a parte oriental – do primeiro século cristão, principalmente no que se refere aos aspectos da administração romana e de cidades gregas, sobre cultos, rotas, geografia política e topografia local.
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F. F. Bruce (1999, p. 105-119), nos apresenta alguns exemplos de seu acurado conhecimento que fez Lucas ser considerado um “exímio historiador”:
· A alusão em Atos 13.7 a Sérgio Paulo, procônsul de Chipre, inexistente na historiografia romana, mas supostamente confirmada por uma inscrição;
· A menção a Gálio, em Atos 18.12, como procônsul da Acaia, confirmada por uma inscrição de Delphos;
· As passagens de Atos 17.6,9 fazem alusão a “politarcas”, título não encontrado na literatura clássica, mas confirmado por uma inscrição em Tessalônica;
· Em Atos 14.1-6, Lucas coloca Listra e Derbe no território da Licaônia, deixando implícito que Icônio pertencia a outro território. Escritores romanos como Cícero referiram-se a Icônio como sendo parte do território de Licaônia. No entanto, certo monumento descoberto em 1910 mostra que Icônio era considerada como sendo uma cidade da Frígia, ao invés de da Licaônia;
· a referência a Públio como o “homem de destaque” (pró·tos) de Malta (At 28:7) emprega o título exato a ser usado, conforme indicado pela sua ocorrência em duas inscrições maltesas, uma em latim e a outra em grego, etc.
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Tal conhecimento levou William Ramsey (apud BRUCE, 1999, p. 118), da escola histórica germânica do inicio do século XX, a afirmar que “Lucas é um historiador de primeira grandeza [...] este autor deveria de ser colocado junto dos maiores historiadores”.
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No entanto, diversas dessas supostas confirmações não possuem qualquer fundamento ou a relevância pretendida. O caso do suposto procônsul Sérgio Paulo, por exemplo, é um dos mais peculiares. Apesar das suposições levantadas por Ramsey e tomadas com entusiasmo por Bruce, arqueólogos contemporâneos como Richard Horsley e Neil Asher Silberman (1999, p. 141) afirmaram que “não se encontrou nenhuma prova conclusiva para a presença em Chipre de um procônsul chamado Sérgio Paulo por ocasião da visita de Paulo (At 13,7)”. O próprio F. F. Bruce utiliza uma linguagem bastante vaga ao citar o caso da confirmação externa desse procônsul ao texto lucano (cf. BRUCE, 1999, p. 108).
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Sobre a questão de Lucas colocar Listra e Derbe, e não Icônio, no território da Licaônia, não deve ser de surpreender. Cícero foi um escritor romano que viveu quase cem anos antes de Lucas, em uma situação geopolítica diferente. Além disso, se por um lado Lucas existem evidências arqueológicas que mostram que Lucas foi correto em situar Icônio fora do território de Licaônia, por outro lado, inexiste qualquer evidência sobre uma comunidade judaica em Icônio tal como relatada por Lucas: “em Icônio, Paulo e Barnabé entraram juntos na sinagoga judaica e falaram de tal modo, que veio a crer grande multidão, tanto de judeus como de gregos” (At 14.1). De acordo com Horsley e Silberman (1999, p. 141), ao contrário do que Lucas relata, “faltam provas arqueológicas diretas da presença de comunidades judaicas em Antioquia da Pisídia e em Icônio antes do século II ou III d.C.”.
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De fato, o que de fato fez Lucas ser considerado um apurado historiador não foi tanto seu conhecimento abrangente do mediterrâneo, mas o efeito de admiração causado pela reversão de expectativas nas mentes de pesquisadores como Ramsey. Iluministas e críticos liberais do século XIX haviam argumentado, com base no conhecimento existente na época, que a narrativa de Lucas era historicamente imprecisa. Com o fim de responderem a essas objeções, inúmeros pesquisadores e arqueólogos vinculados ideologicamente à fé cristã dedicaram suas carreiras e vidas a fornecerem respostas positivas a essas e outras objeções sobre a inexatidão histórica dos escritos que compõem o Antigo e o Novo Testamento judaico-cristão.
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Foi a partir de tal iniciativa, no final do século XIX e adentrando no decorrer do século XX até os anos 90, que o “romance da veracidade histórica da Bíblia” se desenvolveu, constituindo-se uma tendência religiosa – embora disfarçada de acadêmica e científica – caracterizada pela busca arqueológica e historiográfica por evidências confirmativas do relato bíblico e, por conseguinte, da fé cristã. O resultado dessa grande empreitada patrocinada pelas igrejas católicas e protestantes de todo o mundo (principalmente dos Estados Unidos) foi a interpretação parcial e tendenciosa de várias descobertas arqueológicas que iam sendo encontradas, de modo que as mesmas passassem a corroborar os textos bíblicos e consequentemente fundamentar a fé cristã.
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Desse modo, a ideologia religiosa comandou os resultados da pesquisa científica no século XX, fazendo com que até mesmo a atual disciplina de Arqueologia do Oriente Médio nascesse vinculada ao compromisso religioso de confirmar e testificar os documentos oficiais da Igreja.
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Por isso, até os anos de 1950, e indo, no máximo, ao inicio dos anos de 1990, a concepção “romântica” da arqueologia em face à Bíblia Sagrada era predominante. Não eram poucas afirmações como a seguinte:
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[...] a arqueologia confirmou inúmeras passagens que tinham sido rejeitadas por críticos como não-históricas ou contraditórias a fatos conhecidos. No entanto descobertas arqueológicas mostraram que estas acusações críticas [...] estão erradas e que a Bíblia é confiável justamente nas afirmações pelas quais foi deixada de lado por não ser confiável. Não sabemos de nenhum caso no qual a Bíblia foi provada errada (FREE, 1950, p. 134, tradução nossa).
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Desse modo, foram supostamente confirmados diversos detalhes dos escritos bíblicos, e a “investigação apurada” que o evangelista lucano atribui a sua obra se transformou em um “ícone” dessa nova tendência. Lucas passa, então, a ser considerado como o escritor cristão que mais se aproxima de um historiador antigo, cheio de credibilidade e veracidade.
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Porém, felizmente, essa “era do romance” entre a arqueologia e a Bíblia já teve seu término. Análises mais rigorosas e mais fundamentadas sobre diversas descobertas arqueológicas colocaram em xeque esse “Romance da Arqueologia Bíblica”, trazendo uma ruptura que, apesar de ter transformado por completo a visão acadêmica sobre as narrativas bíblicas, ainda não foi sentida pelo mundo evangélico. No início do século XXI, Israel Finkelstein e Neil A. Silberman (2003, p. 16) comentaram sobre a mudança no consenso sobre a confirmação externa das narrativas dos documentos bíblicos em geral da seguinte forma:
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O consenso arqueológico, pelo menos até o ano de 1990, era de que a Bíblia poderia ser lida basicamente como um documento histórico confiável. [...] Agora, é evidente que muitos eventos da história bíblica não aconteceram numa determinada era ou da maneira como foram escritos. Alguns eventos famosos da Bíblia jamais aconteceram inteiramente.
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Desse modo, a visão da arqueologia como disciplina legitimadora e confirmatória da confiabilidade histórica das Escrituras Sagrada – cuja tendência consistiu em colocar a Bíblia como “chave” para interpretar os achados arqueológicos – foi perdendo espaço, o que vez com que essa disciplina ganhasse mais independência e objetividade: “Estamos vivendo um processo de liberação da arqueologia de uma leitura muito conservadora e ingênua do texto bíblico” (FINKELSTEIN apud A HEBRAICA (2005 [on line]).
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No entanto, deve-se enfatizar que enquanto o Romance da Arqueologia Bíblica subsistia, informações erradas, omitidas e até mesmo fraudulentas foram difundidas entre o público leigo e especialmente entre o público cristão, fomentando assim o mito de que a arqueologia realmente confirmava a Bíblia (FOX, 1993).
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A mídia e a indústria editorial exerceram um papel fundamental nesse ínterim – principalmente a indústria editorial cristã protestante, que publicavam (e ainda continuam a publicar) apenas os livros que “edificam a fé dos leitores” – não dando a devida importância aos erros e defasamento dessas obras. A mídia, por sua vez, simplesmente cuidou de selecionar informações distorcidas ao divulgar notícias sensacionalistas que supostamente confirmavam a narrativa Bíblica, e assim ajudando a disseminar a idéia ao público amplo.
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Robin Lane Fox (1993) logo no início dos anos 90 do século XX, apontou um dos grandes divulgadores da idéia de que a arqueologia corroborava a Bíblia – um livro que se tornou um grande Best Seller no Brasil e no mundo e que ainda hoje é um dos livros mais lidos no meio cristão: “E a Bíblia Tinha Razão”, de Werner Keller:
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Em 1956, um jornalista alemão, Werner Keller, demonstrou a força da crença do público na ligação entre as escrituras, as escavações e as viagens. Seu livro, A Bíblia como História, foi inicialmente publicado com o título A Bíblia está de fato correta, e o seguinte subtítulo: “A arqueologia confirma o Livro dos Livros”[4]. [...] seu livro foi adotado em escolas e traduzido em 24 línguas, tendo vendido mais de 10 milhões de exemplares nos vinte anos seguintes [...] o mais estranho em relação a seu sucesso é que, se o lermos cuidadosamente, veremos que nada do que afirma emerge diretamente de qualquer indício arqueológico que confirme qualquer aspecto significativo do Livro dos Livros (FOX, 1993, p. 203, 204).
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Algum tempo depois, Wolfgang Hinker e Kurt Speidel publicaram uma réplica, intitulada “Se a Bíblia Tivesse Razão”, que poderia nivelar o debate, mas que, no entanto, não teve igual disseminação (cf. ARENS, 2007, p. 227).
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Muitas das supostas confirmações arqueológicas sobre o texto bíblico partiram de excessos do tipo apresentados na obra de Ramsey e de Keller, que decorriam muito mais de uma interpretação exagerada sobre os fatos (meta-factual) do que dos próprios fatos em si.
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Até mesmo o próprio F. F. Bruce, que ainda hoje é um pesquisador muito popular nos círculos apologéticos, admite que a ênfase de Ramsey no estabelecimento da historicidade de diversas narrativas bíblicas (incluindo as lucanas) era exagerada, pois estava tão ansioso para provar a historicidade da Bíblica que “imprudentemente danificou sua bem-fundada reputação como um grande estudioso” (GIER, 1987 [online], tradução nossa).
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Do mesmo modo, as descobertas arqueológicas que confirmam alguns detalhes citados da narrativa de Atos dos Apóstolos foram e continuam sendo interpretadas erroneamente, como se fossem capazes de estabelecer, genericamente, a fidelidade, confiabilidade e a veracidade de toda a obra lucana.
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O próprio alarde em rotular Lucas de historiador por causa das confirmações arqueológicas sobre lugares e detalhes políticos e administrativos do mundo mediterrâneo no final do século I d.C. pode ser visto como um truque emocional: se existem um pouco mais que meia dúzia de detalhes sobre o contexto social e político das províncias romanas mencionados Lucas, mas silenciosos em toda a literatura da época, isso se deve a um conjunto de fatos que, com efeito, não possuem qualquer relação com a credibilidade de Lucas como historiador, pelas seguintes razões:
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1) Não possuímos toda a literatura escrita no final do século I e século II d.C.. A maior parte foi destruída por cristãos piedosos na Idade Medieval que queriam purificar o mundo cristão dos supostos perigos do paganismo. Somente os escritos cristãos legitimados pela Igreja (como as obras lucanas) e os escritos que poderiam trazer algo de positivo para fé eram preservados. Apenas uma pequena parcela das milhares de obras literárias e historiográficas escritas entre os anos 60 d.C. e 325 d.C. chegaram até nós;
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2) A realidade histórica sempre é muito mais complexa que qualquer reconstrução e narrativa do passado. Por isso, não é de se admirar que um autor antigo faça alusão a um detalhe enquanto outro o omita deliberadamente ou mesmo por desconhecê-lo – sendo que nenhum escritor ou historiador é onisciente e pode saber de todos os dados administrativos e topográficos da região que narra;
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3) O status elevado com que representam Lucas é fruto de uma racionalização anacrônica de nosso tempo. Para qualquer habitante do antigo mundo Mediterrâneo do final do século I d.C., – principalmente para os bem versados nas áreas de conhecimento disponíveis da época – nenhum dos detalhes lucanos confirmados pela arqueologia nos dias de hoje constituiria algo digno de admiração. Era comum até mesmo para autores trágicos (como Sófocles, Eurípides, Cícero, etc.) e ficcionistas (como Petrônio) respaldarem suas narrativas com detalhes históricos legítimos;
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4) Grande parte dos detalhes lucanos “confirmados” pela arqueologia não são capazes de contribuir para estabelecer a veracidade da narrativa. Muitas vezes, o detalhe de confirmação é citado em Atos apenas “de passagem”, como em Atos 18.12, por exemplo, que ao relatar que os judeus se levantaram contra Paulo e o levaram ao tribunal, afirma que isso se deu “quando Gálio era procônsul da Acaia”. A narrativa de Atos 17 também se enquadra nesse perfil: trata-se de uma narrativa vaga, a qual apresenta apenas três termos específicos: Tessalônica, Casa de Jasom e poliarcas. Se retirássemos os dois últimos termos, e substituíssemos “Tessalônica” por qualquer outra cidade, a narrativa continuaria a ser coerente, como se fosse um molde aplicável a qualquer contexto narrativo e histórico;
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5) Não é porque um escritor acerta com precisão detalhes históricos e topográficos que sua narrativa deverá ser considerada histórica. Diversas obras de ficção da antiguidade não apenas apresentam uma riqueza de detalhes históricos e topográficos autênticos sobre a época narrada, mas também estão cheios de minúcias capazes de tornar o relato coerente;
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6) Deve-se ressaltar também que Lucas, embora demonstre ser apurado em topografia, geografia, política e outras características genéricas do mundo mediterrâneo, apresenta-se como um pesquisador inepto, confuso e ignorante em relação a historia, geografia e características genéricas da Palestina judaica da época de Jesus – região que, diferente do Mediterrâneo, provavelmente nunca conheceu.
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Por exemplo, de acordo com o Evangelho de Lucas 9.10b, “[Jesus e seus discípulos] retiram-se à parte para uma cidade chamada Betsaida [eis pólin bêthsaida]”, seguidos por uma multidão. De acordo com o arqueólogo Rami Arav (2006), a definição que Lucas faz de Betsaida como “Pólis” está correta, pois no ano de 30 d.C. Filipe honrou a cidade de Betsaida proclamando-a “pólis”. No entanto, Arav (2006, p. 149) também afirma que a descrição oferecida por Lucas da cidade de Betsaida está simplesmente errada: “Lucas refere-se à Betsaida como uma polis (Lc 9.10), e parece que ele não foi cuidadoso na sua definição do local”.
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Isso porque, a despeito do uso desse termo, a narrativa de Lucas, contraditoriamente, apresenta Betsaida não como uma verdadeira pólis, mas como um lugar deserto e rupestre. Lucas 9.12 afirma que os apóstolos pediram a Jesus que despachem a multidão, para que “fossem as aldeias e campos vizinhos, se hospedassem e comprassem alimentos” – o que significa que, na Betsaida descrita por Lucas, não havia alimentos nem moradia. Por isso, não poderia se tratar de uma pólis, cuja caracterização dada por Arav (2004, p. 147) admite a existência de “ginásio, prédios governamentais, teatro” e, com certeza (e principalmente) áreas urbanas e moradias, hospedarias e casas de refeições (desjejum e ceia).
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Lucas faz o mesmo ao chamar todas as demais aldeias – como Nazaré, Belém, Cafarnaum, etc. – de “polis”. Nisso, Lucas não foi um escritor cuidadoso, já que faz generalizações inadequadas sobre aspectos regionais que ele não buscou conhecer com mais detalhes (REED, 2000, p. 169).
Além disso, Lucas foi anacrônico em sua descrição de Cafarnaum ao narrar, em Lucas 5.19, o episódio em que um paralítico é descido pelo “telhado” (keramon) de uma casa para que Jesus pudesse curá-lo. No entanto, a arqueologia demonstrou que os tetos das casas de Cafarnaum não possuíam telhado de cerâmica; eram feitos com madeira e palha (cf. HORSLEY; SILBERMAN, 1999, p. 55, e REED, 2000, p. 159).
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A descrição lucana, em Lucas 4.15-20, sobre uma sinagoga muito bem estruturada administrativamente em Nazaré é um anacronismo. Nazaré era um pequeno e pobre povoado, sem condições de apresentar uma sinagoga tão suntuosa e bem estruturada como Lucas desejou que fosse (REED, op. cit.).
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A confusão com que Lucas realiza suas descrições fica ainda mais evidente quando se lê a passagem de Lucas 17.11, onde se diz que Jesus “de caminho para Jerusalém, passava pelo meio de Samaria e da Galiléia” (diercheto dia meson Samareias kai Galilaias = [literalmente:] “passava através do meio de...”). Meier (1998, p. 237, 289) afirma que “não faz sentido dizer que Jesus estava passando através do meio de Samaria e da Galiléia em sua subida para Jerusalém” e que Lucas apresenta uma “geografia confusa”.
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Os descuidos de Lucas são bastante evidentes. Lucas também afirma que, quando Maria Madalena e as outras mulheres voltam do sepulcro para contar aos demais que o mesmo estava vazio, Pedro “levantou-se e correu ao sepulcro. Abaixando-se, viu as faixas de linho e nada mais; afastou-se e voltou para sua casa [pros eauton], admirado com o que acontecera”. (Lc 24.12).
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A palavra grega heautou é usada para se referir a casa da pessoa ativa em uma narrativa, como Lucas atesta em 11.21, ao usar essa palavra para denotar “palácio”, e Paulo em 1Co 16.2, ao denotar “casa”. Xenofonte, entre outros escritores do período clássico, também usa a expressão “pros heautou” com o sentido de “para sua casa” (BLUE LETTER BIBLE, 2009 [online]).
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De acordo com Lucas 4.31,38, a casa de Pedro ficava em Cafarnaum, cidade da Galiléia distante aproximadamente 150 quilômetros de Jerusalém. Segundo Gênesis 31.23, uma jornada de um dia equivale de 30 a 40 quilômetros, de modo que Pedro levaria no mínimo 3 (três) dias para ir a sua casa e mais 3 (três) dias para voltar. No entanto, a mesma narrativa de Lucas coloca Pedro, algumas horas mais tarde, de volta a Jerusalém – como se fosse capaz de percorrer quase 300 quilômetros em poucas horas.
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Por outro lado, esse erro (ou desleixo) geográfico se deve pela forma como Lucas usa, recorta e manipula o material de suas fontes e por seu programa teológico. Por exemplo, sobre essa mesma narrativa, deve-se notar que, de uma forma bastante estranha, Lucas se limita a dizer somente que Jesus havia aparecido a Pedro no versículo 34, omitindo uma descrição cristofânica de suma importância para seus leitores. Mas por que Lucas não narra como se deu tal aparição?
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De acordo com Raymond Brown, Joseph Fitzmyer e J. P. Meier (1998, p. 457) Lucas narra, sim, tal aparição, mas a desloca para o começo de seu evangelho, no relato da chamada de Pedro narrado em Lucas 5.1-11, que na realidade constitui um relato de cristofania pós-ressurreição a qual Lucas tratou de retroceder ao início do ministério público de Jesus. Desse modo, ao se deparar com duas tradições diferentes de epifania, uma que narrava a aparição do Jesus ressuscitado na Galiléia e outra que narrava a aparição do Jesus ressuscitado em Jerusalém, Lucas escolhe mutilar as tradições, retrojetando a aparição de Jesus a Pedro na Galiléia, mas deixando um resquício dessa tradição na frase “Pedro voltou para sua casa”.
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O recenseamento de toda a Judéia e Galiléia pelo governador da Síria Quirino na época de Augusto constitui a imperícia histórica de Lucas mais conhecida. Tanto Raymond Brown (2005, p. 792) como Geza Vermes (2006, p. 225) afirmam que além de não existir qualquer prova ou registro de qualquer censo geral na época de Augusto, o primeiro recenseamento realizado de fato por Quirino como governador da Síria não abrangia a Galiléia, mas somente a província romana da Judéiam, e que isso aconteceu apenas em 6 d.C. ou seja, cerca de dez anos depois da morte de Herodes Magno. Além disso, mesmo que tenha havido um censo na época do nascimento de Jesus, José não seria obrigado pelas leias romanas a viajar para a terra ancestral da sua tribo, e tampouco Maria teria sido obrigada a acompanhá-lo. O censo seria realizado no próprio local de moradia. Desse modo, Lucas realiza uma confusão que, certamente, lhe serviu para o desenvolvimento de seu roteiro teológico.