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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA QUESTÃO DA PECABILIDADE DE JESUS: UMA DISCUSSÃO ACERCA DA HIPÓTESE DO ARREPENDIMENTO / CONFISSÃO COLETIVO


Considerações iniciais

Inicialmente, gostaria de agradecer ao Informador de Opinião pela ênfase dada a esta questão e pelo interesse em discuti-la: a questão da confissão, ou arrependimento, dos pecados coletivos.

Também ressaltamos não ser nosso objetivo esgotar o assunto, nem parecermos os “donos da verdade”: nossa concepção de verdade dentro de um contexto argumentativo é meramente coerentista e não metafísica. O objetivo é alcançar um consenso, o qual poderá ser modificado em qualquer época, inclusive abandonado por completo, através de novas descobertas e da própria evolução do conhecimento. Portanto, as conclusões apresentadas nesse texto longe estão de configurar-se a “verdade última” acerca da questão abordada.

Lembramos que o presente texto foi escrito “às pressas” (decorrente das várias ocupações que inquietam o autor) e que, portanto, trata-se muito mais de uma síntese do que uma abordagem abrangente.

Pois bem, como já afirmamos noutras ocasiões, o batismo de João Batista constitui o ponto axial da tradição de Jesus, o que certamente indica que significou um momento decisivo na vida de Jesus. Jesus, tendo nascido em Nazaré na Galileia, por razões ainda obscuras, faz uma caminhada para o sul rumo ao Jordão com a finalidade de ser batizado por João Batista.

O batismo de João Batista tinha várias funções. Além de um caráter escatológico que ultrapassava a esfera individual, entre essas funções destacava-se a seguinte: sinalizar o arrependimento, purificar o ser dos pecados, incidir no processo total de expiação e iniciar o neófito dentro do movimento.

Contudo, a submissão de Jesus ao batismo de João Batista é uma questão que gera polêmica, pois pode levar a interpretações que comprometem a integridade da cristologia tradicionalista a qual concebe Jesus como um ser imaculado e que, portanto, não precisava submeter-se a um ritual de purificação e expiação de pecados.

1) Assim, de um lado existem aqueles que, mesmo aceitando que Jesus foi batizado em um batismo para “perdão dos pecados”, acreditam que Jesus submeteu-se ao batismo por razões distintas a essa, já que, como a encarnação da divindade hebréia, não possuía pecados a serem remidos. Esta é a posição dos evangelistas, que apresentam diversas justificativas para o fato de Jesus ter se submetido ao batismo.

2) Por outro lado, existem aqueles que não veem dificuldade em associar as intenções pessoais de Jesus à finalidade intrínseca do batismo, que é a obtenção do perdão dos pecados. Assim, chegam à conclusão lógica de que Jesus era ou se considerava um pecador e, por este motivo, precisou submeter-se ao batismo de João.

3) Por último, também existem aqueles que, ainda que não admitam, por razões históricas, que Jesus era a encarnação da divindade hebréia e que por isso não possuía pecados a serem remidos, afirmam que a submissão de Jesus ao batismo não é indicativo de sua consciência pessoal sobre a necessidade de obter remissão de seus pecados. Estes proponentes alegam que o batismo de João possuía um caráter escatológico que ultrapassava a esfera individual, sendo um símbolo do arrependimento coletivo nacional de Israel. Ao alegarem isso, afirmam que qualquer indivíduo (incluindo Jesus) poderia acessar o batismo pautando-se não em uma consciência particular voltada ao perdão de seus pecados individuais, mas visando sinalizar a necessidade de redenção coletiva de Israel.

A hipótese do arrependimento coletivo

J. P. Meier, entre outros, é o principal defensor da terceira vertente, que defende a chamada hipótese do “arrependimento ou confissão coletivo”. De acordo com Meier, João Batista dirigiu-se a toda a nação de Israel, chamando-os para uma reconstituição radical de Israel à luz da sua iminente futuro escatológico. Desse modo, o chamado era para que as pessoas respondessem como uma nação, não exatamente como indivíduos.

Assim, ainda que respondessem como indivíduos para terem seus pecados individuais perdoados, muitos poderiam responder por um senso pessoal de responsabilidade para com o estado de Israel. Por isso, muitas das pessoas em Israel que seriam consideradas fiéis poderiam responder a partir de uma crença e desejo de João reconstituído Israel. Desse modo, Jesus poderia submeter-se ao batismo não para receber o “perdão de seus pecados” individuais, mas para reconhecer o pecado de Israel e comprometer-se a fazer o que pôde para que isso acontecesse.

Ao argumentar desta forma, Meier apresenta alguns indícios:

1) Existe um abismo cultural e religioso que separam o batismo moderno, de caráter unicamente individual (ou seja, voltado à purificação do que ele chama de “pecadilhos”, atos ou unidades de condutas recordáveis que transgridem as leis de Deus) do batismo antigo, de caráter coletivo;

“A confissão dos pecados no antigo Israel não significava um longo rol de pecadilhos pessoais, o que faria a adoração a Deus transformar-se em uma reflexão narcisista sobre o indivíduo” (MEIER, 1996, p. 156).

Desse modo, seria anacrônico afirmar que a submissão de Jesus ao batismo voltava-se ao perdão individual, já que a preocupação soteriológica em sua época incidia sobre povos inteiros, diferente da “perspectiva posterior”, agostiniana e luterana, de aquisição de perdão individualista.

2) Um argumento dependente do exposto acima é o de que na Israel pronunciada por Meier, cada indivíduo é considerado pecador apenas por fazer parte desse povo, tendo ou não cometido pecados na esfera individual.

Nesse sentido, Meier afirma que: “Mesmo independente da questão dos pecados pessoais do indivíduo, cada um era parte dessa história de pecado apenas por pertencer àquele povo” (p. 156).

3) Em seguida, Meier expõe, com o fim de corroborar essas ideias, passagens das Escrituras judaicas e do grupo de Qumrã em que a confissão individual dos pecados visava a apresentação dos pecados à nível coletivo do povo de Israel. Para isso, apresenta as preces confessionais de Esdras (Esd. 9.9-15; Ne. 9.6-37) e no ritual de entrada da comunidade de Qumrã (1QS 1,18-2,2).

Ambos os textos falam sobre a confissão dos pecados da nação como um todo, incluindo os pecados ancestrais e hodiernos, sem a preocupação de expor falhas e pecados pessoais, mas em confessar que pertencem a um povo pecador, de modo que o pedido de perdão dos pecados seja dado por Deus a todos, coletivamente.

Desse modo, Meier afirma que o simples fato de Jesus ser batizado não indica que se considerava um pecador, no sentido de ter consciência individual de seus pecados pessoais, já que este batismo está sujeito a uma série de interpretações que não permite adentrar a consciência de Jesus sobre se ele se considerava um pecador ou não (MEIER, p. 159).

Analisando a hipótese do arrependimento coletivo

Em primeiro lugar, deve-se abordar o grau de abrangência ou relativização da hipótese do arrependimento coletivo. Ressalta-se, desde logo, que o objeto da argumentação é relativo, já que a coletividade do perdão era apenas uma possibilidade, não uma regra. O próprio Meier reitera isso ao afirmar que “muitas vezes...” (p. 156) a confissão dos pecados era vista sob uma perspectiva coletiva, o que significa que “algumas vezes” ou “outra vezes”, ou ainda “outras muitas vezes”, a confissão dos pecados era vista sob uma perspectiva individual. Meier também usa a expressão “em alguns casos..”, “talvez...”, entre outros termos relativizantes, para fazer referência a hipótese da confissão dos pecados coletivos do povo, o que indica que a ocorrência da mesma não é uma regra.

Em segundo lugar, deve-se ressaltar que a confissão individual não torna, necessariamente, uma “reflexão narcisista sobre o indivíduo”. Ao contrário do que afirmou Krister Stendahl, a “consciência introspectiva” não é uma invenção ocidental, mas já estava presente no antigo Israel. É exatamente esta consciência que fez (entre os antigos hebreus) e ainda faz com que cada um, individualmente, sinta-se responsável por suas ações e queiram, particularmente, trilhar os caminhos das leis divinas.

Muitos pensadores juristas da atualidade são incisivos em afirmar que o modelo orgânico funcional dos tribunais, em que cada indivíduo é responsabilizado, individualmente, por seus próprios atos, tem fortes raízes judaico-cristã, existindo de modo independente na Antiguidade Oriental (povos do antigo Oriente Próximo) e Clássica (Grécia e Roma).

Além disso, pode-se argumentar em prol de uma concepção individual dos pecados no antigo Israel. Diversas passagens enfatizam a responsabilidade individual sobre o pecado, sejam neotestamentários (Rm. 5.12, 6.23; 1Jo. 1.10), entre outras, ou veterotestamentárias. Por exemplo, para o autor do livro de Ezequiel a ideia da individualidade do pecado estava clara quando escreveu que:

“A alma que pecar esta morrerá. O filho não levará a iniquidade do pai, nem o pai a iniquidade do filho; a justiça do justo ficará sobre ele e a perversidade do perverso cairá sobre este” (Ez. 18.20).

Portanto, os judeus da Antiguidade possuíam uma ideia clara de que a responsabilidade do pecado era individual e, portanto, intransferível. A confissão coletiva do pecado em nada invalidava ou desarticulava o caráter individual do pecado. Até mesmo porque a formação coletiva do pecado depende, inteiramente, da prática individual do pecado.

Vale lembrar que a noção de pecado surgiu na consciência israelita não da coletividade para a individualidade, mas sim a partir da individualidade para a coletividade. Portanto, a bipolarização da questão, em “coletividade = antiguidade” e “individualidade = modernidade”, não condiz com a realidade histórica e não resolve os problemas levantados pela questão.

O sentido do batismo para remissão e da confissão dos pecados

Em terceiro lugar, não se pode confundir duas categorias distintas, quais sejam “a confissão dos pecados” e o “ritual para purificação dos pecados”. De acordo com o texto de Marcos 1.5:

“E apareceu João Batista no deserto // pregando batismo de arrependimento [baptisma metanoias] // para remissão de pecados [eis aphesin amartiôn]”.

Logo em seguida é dito que:

“E eram batizados no rio Jordão por ele [baptizonto up’ auton] // confessando seus pecados [exomologoumenoi tas armatias autôn]...”.,

Vê-se então a presença de quatro elementos:

a) O batismo (o ato)
b) O perdão/remissão dos pecados (o fim)
c) O arrependimento (elemento interno)
d) A confissão (elemento externo)

O batismo constitui um ato físico; o arrependimento, um ato interno. Já a confissão constitui um ato de exteriorização. A finalidade é alcançar o perdão/remissão, ou seja, o efeito mágico.

Em geral o arrependimento é pré-requisito para o batismo, necessitando deste para gerar efeitos, já que o mero arrependimento não é capaz de por si só remir pecados. Contudo, não basta apenas a combinação entre arrependimento e batismo: a confissão é necessária para firmar o novo estado do ser e comprometimento diante das demais pessoas submetidas a este processo.

Por outro lado, a confissão por si só é inerte, sem o arrependimento e, principalmente, sem o batismo. Assim, verifica-se que cada elemento exerce um papel holístico, isto é, harmônico, integrando todo o processo, do início ao fim.

O elemento central desse processo é o batismo. É através dele que a purificação pode ser alcançada. Trata-se, portanto, de um ritual batismal, não de um mero ato confessatório.

Por isso, o argumento de Meier pautado no poder analógico de seus exemplos acerca de confissão de pecados coletivos é inconclusivo, pois se referem a momentos ou unidades de confissão dos pecados desvinculados da prática batismal que envolve um processo que começa no arrependimento e se finaliza na confissão. Na confissão dos exemplos dados por Meier (ou seja, sem vínculos a rituais expiatórios como o batismo), era lógico que os pecados da coletividade, de Israel como um todo, fossem ressaltados, já que se trataram de momentos em que um indivíduo intercedia, através da oração e da confissão, por todos simultaneamente – o que não foi o caso de João Batista em seu batismo.

Além disso, deve-se frisar que a natureza de ritual purificativos ou expiatórios como o batismo, são ampla e reconhecidamente consagrados nas Escrituras judaicas e cristãs como rituais individualistas, sendo que cada um responderia pelos seus próprios atos ao serem submetidos ao rito. O fato de Jesus ter concedido, no imaginário cristão, a redenção através de um único ato expiatório para a coletividade é exceção, ressalvando-se que a própria crucificação de Jesus não teve, em si mesma, uma função explicitamente expiatória (como quando se sacrificam animais...), mas foi usada como um tipo, ou símbolo, dos rituais expiatórios judaicos.

Por isso, ainda que se cogite que a confissão dos pecados no momento do batismo por João visava o perdão coletivo e não individual, deve-se frisar que uma coisa é o batismo e outra coisa é a confissão dos pecados. Dada à natureza individual do rito do batismo em João (Paulo coletiviza em algumas passagens o rito do batismo, ao fazer analogia com a morte e ressurreição de Jesus...), não há porque falar que todo o processo visava o perdão da coletividade: o batismo poderia alcançar os pecados individuais enquanto a confissão os pecados da coletividade.

Assim, embora a confissão tivesse uma função de exteriorização do arrependimento e um papel coletivo, o ritual do batismo de João era focado no indivíduo, já que cada pessoa, uma por uma, deveria se arrepender e ser batizada.

Sobre a terminologia e acepções de “pecado”

Deve-se ainda discutir um ponto interessante, acerca da definição que Meier concede à palavra “pecado”. Para ele, trata-se de “ofensa a Deus, um abandono radical da fidelidade a Deus, uma ação que rompe o relacionamento de uma pessoa com Deus”. No entanto, deve-se reconhecer que esta definição é bastante genérica e, portanto, inadequada.

Os textos judaicos e cristãos mostram que uma definição stricto sensu é mais coerente, balanceando o pecado com outras categorias como atos ilícitos, crimes e transgressões às leis. Ora, o conceito mais puro e primitivo de “pecado” consiste na “transgressão ao mandamento divino”.

Afinal, a lei mosaica, a qual todo judeu seguia na Palestina judaica do século I, visava regular o comportamento individual do israelita/judeu. Por isso, conjuntos de mandamentos nucleares daquela sociedade, como o Decálogo, apresentava injunções como “não matarás, não darás falso testemunho, não adulterarás” etc., que poderiam ser cometidos individualmente, caracterizando assim o pecado.

Assim, por exemplo, se um ateu “mata”, ele estará transgredindo uma proibição não apenas moral ou legal, mas também religiosa, já que a religião se apropriou daquela proibição que originalmente tinha apenas teor moral, para consagrá-la como um mandamento divino. Assim, embora aos olhos do ateu, ele mesmo se veria como um transgressor da lei moral e legal, mas não da lei divina, o religioso veria este ateu como um transgressor da lei divina.

Desse modo, não haveria necessidade de “abandonar radicalmente a fidelidade a Deus” ou “romper totalmente o relacionamento com a divindade” (situação bastante genérica) para que um “pecado” se configurasse. Muitos judeus poderiam dedicar-se fielmente à divindade e manter seu relacionamento com ela e ainda assim cometer alguns pecados, consciente ou inconscientemente. Por isso, os rituais expiatórios eram importantes para Israel: eram realizados para que a continuidade da fidelidade e do relacionamento com a divindade não fosse quebrado com as práticas reiteradas do pecado. Este é o motivo de existir certa periodicidade na realização de tais rituais.

Assim sendo, o pecado pode melhor ser definido como atos individuais que transgridem os mandamentos divinos expressos em escritos sagrados ou supostamente existentes na consciência moral humana.

Tal definição nos conduz a um ponto importante deste diálogo: acerca da naturalidade e espontaneidade da ocorrência do “pecado” como “transgressão à lei divina”. Qualquer indivíduo do passado ou hodierno, religioso ou não, que quisesse fazer um teste acerca da tipificação ou enquadramento de suas próprias condutas a esses preceitos, perceberia que facilmente transgredi-los-ia todo ou quase todo dia.

Exemplo: João é ateu e não acredita na existência do pecado. Contudo, praticou o “falso testemunho”, o qual, segundo o Decálogo, constitui pecado. Como o Decálogo integra aquilo que se chama de “mandamentos divinos”, conclui-se que João ateu é um pecador, já que transgrediu os mandamentos divinos. É claro que isso só ocorre na mentalidade coletiva do religioso, como aos dos judeus e cristãos do século I, já que não se pode provar a existência da divindade que criou aqueles mandamentos, nem exigir que o ateu aceite tais crenças.

Aqui, abre-se um parêntese: há muito se conhece que atos com teor meramente moral, como matar, roubar etc., são transformados em atos de teor teológico quando se considera que proibições de ordem moral, como não matar, não roubar etc., são, na verdade, proibições divinas.

No caso do “não matar”, há uma proibição moral (até mesmo sociedades não-religiosas observam tal injunção), uma proibição legal (no Brasil, por exemplo, essa conduta encontra-se tipificada no art. 121 do Código Penal) e uma proibição teológica (o Decálogo proíbe tal prática).

Por isso, a definição dada pelas Escrituras, de que “todos pecaram” (no sentido não teológico, mas no sentido de que pecar consiste em fazer o oposto do que determina as leis divinas), é válida e certa, já que o ser humano possui tendência natural a cometer os atos que foram tipificados como transgressões das leis judaicas – ainda que o discurso cristão acerca da “divindade” e suas implicações seja nulo.

Assim, partindo das duas premissas seguintes:

a) Pecado é a transgressão ao enunciado das leis e mandamentos ditos divinas;

b) Tais transgressões, em geral, ocorrem natural e espontaneamente no comportamento humano,

Pode-se afirmar, com certeza que, “se” Jesus não foi um ser divino e imaculado (como a cristologia afirma...), então Jesus foi um pecador (assim como eu, você e nós). Note que aqui não se faz qualquer apelo a um ou outro pecado específico (como fizeram alguns pesquisadores, ao afirmar que Jesus recorreu ao batismo de João com o fim de obter perdão pelo pecado de contribuir para a manutenção de um sistema [o romano] de exploração do judeu ao exercer seu ofício de carpintaria...), mas a uma generalização natural do conceito, pois todas as pessoas que não sejam uma divindade imaculada “pecou” – uma verdade que a própria Escritura afirma ainda que não acreditemos no conceito cristão de pecado e suas implicações.

Exceções à hipótese do arrependimento coletivo da parte do próprio J. P. Meier

Em último lugar, deve-se apontar alguns detalhes importantes que permeiam a hipótese do arrependimento coletivo. O detalhe mais importante é aquele no qual diz que não se pode meramente “fugir” das implicações individualistas do batismo de João ao meramente recorrer a um “arrependimento coletivo”.

Nesse sentido, o próprio Meier confessa que, ao se submeter ao batismo, Jesus se comprometia em “mudar sua vida” e assim “garantir sua salvação” (MEIER, p. 159). Apesar de Meier ser vago nesse ponto, podemos fazer alguns apontamentos.

1) Ora, se Jesus se comprometia a mudar sua vida, trata-se de uma mudança individual. Como a mudança, naquele contexto, dizia respeito ao abandono do modo de vida considerado digno de ser rejeitado por razões ético-religiosas, Jesus somente almejaria mudar sua vida caso se considerasse uma pessoa que viveu uma vida “digna de mudança”. Mas, deve-se indagar, por que desejaria “mudar de vida”? O que havia em sua vida pregressa para que quisesse modificá-la?

Sem apelar para adivinhações acerca de detalhes específicos, pode-se relacionar uma vida digna de mudança para um religioso a uma vida de pecados - pecados no sentido que expomos aqui. Se Jesus almejasse, em sua nova vida, dedicar-se mais a Deus, a pregar sua palavra, a praticar seus mandamentos, deduz-se que sua velha vida caracterizava-se pelos (ou por grande parte e em uma ou outra medida) pelos elementos opostos a estes, os quais podem ser definidos de forma genérica como “pecado” – no sentido exposto aqui, ou seja, como “transgressão aos mandamentos ditos divinos”.

Meier admite isso ao explicar que: “Pode-se falar em termos históricos se Jesus cometeu crimes ou transgrediu certas leis, pois ‘crime’, ‘transgressões’ e ‘atos ilegais’ constituem categorias que podem ser comprovadas empírica e historicamente”.

Ora, se realmente se pode falar, em termos históricos, que Jesus transgrediu certas leis e mandamentos – romanas, judaicas e, inclusive, mosaicas -, é certo que poderia transgredi as leis que reconhecesse como “leis divinas”.

Contudo, Meier se afasta das consideradas “leis de Deus” para relativizar a questão ao citar as leis romanas e o próprio julgamento de Jesus por Poncio Pilatos. Meier é ainda mais escorregadio ao afirmar que Jesus foi, historicamente, um transgressor de uma lei ou sistema de leis em particular, seja romana ou judaica. Ora, o que Meier não expõe é que, desse modo, segundo este raciocínio, Jesus poderia ter transgredido conjuntos especiais de leis caras ao judaísmo, como o Decálogo (cometendo idolatria, tomando o nome de Deus em vão, não santificando o Sábado, não honrando os pais, matando, adulterando, roubando, mentindo/dando falso testemunho, cobiçando as coisas e a mulher do próximo...), sendo a inobservância a qualquer uma dessas normas a configuração do pecado.

Assim, a “mudança de vida” almejada por Jesus implicaria a remissão de qualquer um desses atos já praticados e o abandono total desses atos futuramente, daqui pra frente.

2) O mesmo apontamento pode ser feito em relação à “garantir sua salvação”. Trata-se, como o próprio Meier acaba confessando, de uma salvação individual. A despeito das implicações coletivas da salvação, Jesus - segundo Meier - buscou garantir a própria salvação.

Deve-se lembrar que alcançar a salvação implica uma salvação almejada, ou seja, ainda não alcançada em certo momento. Desse modo, Meier afirma, por implicação, que houve um momento em que a salvação individual de Jesus estava comprometida. De acordo com as Escrituras, o comprometimento da salvação ocorre em decorrência do pecado, ao que se subtende que Jesus, ao buscar garantir sua própria salvação, teria praticado pecados em sua vida pregressa.


Considerações finais

Assim, chegamos à conclusão de que a hipótese da confissão ou arrependimento coletivo não se aplica de modo definitivo ao episódio do batismo de Jesus. O episódio não se trata de mero ato de confissão, mas de um processo centrado no ritual batismal. O batismo por si só possuía a função purificadora os pecados individuais da pessoa, necessitando, porém, do prévio arrependimento e da subsequente confissão dos pecados para tornar válida a purificação.

Além disso, verificamos que o termo “pecado” não indica uma “separação radical” com a divindade (como se o pecador tornar-se um ateu...), mas apenas uma transgressão individual às leis (ditas) divinas.

Desse modo, pode-se dizer que mesmo não nutrindo crenças religiosas, qualquer indivíduo (seja protestante, católico, judeu, agnóstico ou ateu) pode se considerar um “pecador” caso “pecado” seja definido do mesmo modo que se define delito, ou seja, como “transgressão à lei”.

Nesse sentido, é óbvio que se Jesus não foi um ser semidivino, uma encarnação da divindade, imaculado do nascimento até o óbito, deve-se afirmar, com certeza, que ele foi um “pecador”, não sendo, nem sequer necessário apelar para seu batismo com o fito de demonstrar tal argumento. Até mesmo os mais proeminentes mestres judaicos, além dos próprios escritores das Escrituras sagradas, atuaram, uma hora ou outra, em contraposição ao que determinada as leis divinas (escritas ou morais). Assim, pode-se incluir não apenas Jesus, mas também João Batista, neste rol.

Assim sendo, concebemos, sem maiores perplexidades, que se Jesus não foi a encarnação imaculada da divindade, ele era, consequentemente, um pecador, já que as práticas e condutas humanas que as Escrituras judaicas definiram como “pecaminosas” referem-se a atos que o ser humano pratica natural e espontaneamente em seu agir social. A narrativa do batismo de Jesus por João vem apenas a corroborar tal fato, já que o batismo não possuía apenas um caráter coletivo, visando restaurar Israel de seus pecados, mas também um caráter individual, visando purificar as pessoas individualmente de seus pecados.

O próprio Meier chega a vislumbrar esse caráter individual, porém preferiu não explorá-lo – até mesmo devido ao baixo papel no sentido de contribuir para a elucidação da pessoa histórica de Jesus desempenhado pelo mero conhecimento de que ele era um “pecador”. De fato, há elementos da tradição evangélica mais importante.

Assim, se por um lado concluímos que não se pode imputar a Jesus determinados pecados, do mesmo modo não se pode fugir da premissa de que, caso ele não seja um ser imaculado (ou seja, de que o discurso cristão tradicional seja inválido ou falso), ele de fato pode ter cometido e de certo cometeu atos que transgrediam as leis de sua época, sejam romanas, judaicas ou mosaicas – sendo que nesta última insere-se o chamado “mandamento divino”.


quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

ORIGEM E JUSTIFICAÇÃO DO BATISMO NO PENSAMENTO CRISTÃO PRIMITIVO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste e nos próximos tópios abordaremos questões relacionadas ao batismo cristão, enfatizando diversas problemáticas, como sua origem na liturgia cristã e a justificação para sua prática dentro do imaginário do cristianismo primitivo.

A ênfase dada a este tema reside no fato de o batismo de Jesus por João Batista constituir, ao nosso ver, o ponto axial não apenas na tradição mnemônica de Jesus herdada pela posteridade, mas também da própria figura história de Jesus, a qual, ao se submeter ao batismo como requisito (além do arrependimento) “para perdão dos pecados”, comunica-se aos historiadores do presente quem ele realmente foi: um simples pecador, isto é, um homem, uma pessoa como qualquer outra.

Um dos objetivos primordiais da pesquisa acerca do Jesus Histórico é resgatar a pessoa humana de Jesus, o pobre pregador nascido no humilde povoado rural de Nazaré, desentranhando-a de dentro da cristologia que lhe transformou em um ser mítico, de acordo com o universo imaginário de outrora marcado pelo maravilhoso e pelo idílico.

Primeiramente, deve-se enfatizar o status histórico que goza o batismo na pesquisa sobre as origens critãs: diversas fontes, sejam cristãs ou extracristãs, mostram que o batismo constitui uma prática bastante antiga, anterior até mesmo ao próprio movimento que configurou o cristianismo (cf. Gerd Theissen, O Manual do Jesus Histórico).

Analiticamente, o batismo, palavra de raiz etimológica grega baptizou, diz respeito à prática de a) mergulhar b) o neófito c) em água d) para purificá-lo (isto é, o seu ser) de seus pecados e) efetuando assim um dos passos para a redenção completa de seus pecados e assim f) ao emergir, para que g) possa enfim adentrar ao movimento. Trata-se, portanto, de um ritual expiatório, iniciatório e mágico-simbólico – elementos que serão retomados posteriormente para uma abordagem mais meticulosa.

Pois bem, no cenário da Palestina judaica do final dos anos 20 do século I, João Batista surgiu como a principal figura que realizada batismos tanto em Josefo como nos Evangelhos. A despeito das alegações jofefinas que contrariaram a função purificadora e por tanto expiatória stricto sensu do batismo de João (confundindo-a com a função iniciática), a função precípua dessa prática em João era a finalização do processo de remissão do pecado configurada na "purificação", que iniciava-se a partir do arrependimento e do comprometimento em não pecar mais e em seguir os ensinamentos do mestre.

Portanto, o ritual do batismo de João Batista possuía duas funções: i) imediata; ii) mediata. A função imediata era a purificação do ser para assim contribuir para obter a redenção dos pecados (já que, para obter o perdão dos pecados, era necessário não apenas arrepender-se e abandonar a prática, mas também purificar-se espiritualmente deles, lavando-os - o que revela sua natureza mágica, que será abordada mais a frente...). A função mediata era a iniciação em um movimento maior, já que a perca da redenção condizia com a continuidade da prática do pecado.

Vale ressaltar que “pecado” constitui um conceito meramente religioso, isto é, trata-se dos “delitos” praticados contra uma suposta ordem moral de origem e natureza divina defendida pela religião estabelecida. Deve-se ressaltar também que enfatizamos aqui a função purificadora do batismo para distinguí-la de uma função expiatória, já que, hipoteticamente (por razões que serão vistas mais a frente), o batismo também poderia ser usado para purificar o ser de elementos impurificantes distintos dos pecados, devido sua natureza abrangente.

Nesse sentido, propomos, juntamente com alguns pesquisadores, a existência de 2 (duas) relações entre Jesus e o batismo ao qual foi submetido:

A) Purificação dos seus pecados (certamente aqueles cometidos em sua vida pregressa, obviamente durante a década de 20);

B) Iniciação no movimento de João Batista (implicando com isso sua posição como discípulo do Batista).

Quanto ao item A, a conclusão para nós é clara: i) a cristologia que considera Jesus um ser “sem pecado” é uma invenção do imaginário cristão primitivo, retrojetada nas memórias sobre Jesus e até mesmo à sua desconhecida infância. Tal posição é corroborada por diversos textos que deixam claro que a submissão de Jesus ao batismo foi o marco pelo qual VEIO A SE TORNAR um ser além-homem; ii) o batismo de João possuía esta função precípua – selar o processo de remissão dos pecados. As alternativas proporcionadas pelos evangelistas são, como apontou Crossan, meras tentativas de justificar um fato pretérito constrangedor mediante as crenças já estabelecidas no presente, ou seja, anacronismo. Se o batismo desempenha o papel de remir os pecados do batizando, é lógico que Jesus, ao ser batizado, tinha em mente ter seus pecados redimidos por completo. Considerando tratar-se o pecado de uma concepção pré-cristã, não existem justificativas para classificar Jesus dentro de uma categoria distinta a dos diversos “pecadores” que compareceram a cerimônia do Batista para ter seu ser purificado do pecado.

Quanto ao item B, remetemos o leitor a obra “Um Judeu Marginal” de J. P. Meier, no volume especial em que trata da figura de João Batista. Concordamos com seu ponto de vista no sentido de que Jesus tornou-se discípulo de João Batista, ao lado de Cefas (Pedro), entre outras personagens que mais tarde exerceriam papel de destaque no movimento de Jesus (cf. Meier, 1994).

De fato, toda a carreira de Jesus começa a partir de sua entrada no movimento de João Batista, chamado aqui de “Movimento radical do Reino”, em contraposição ao movimento que Jesus criaria após a morte de seu mestre, o chamado “Movimento moderado do Reino”. Não existem fontes documentais qualificadas que proporcionem informações históricas válidas sobre o período que antecede ao batismo de Jesus, a não ser lendas da igreja primitiva conservadas nas partes iniciais dos Evangelhos de Mateus e Lucas, escritos por volta dos anos 80 e 90 d.C. (fato que indica o fenômeno histórico da significância: apenas é rememorado através da escrita da história fatos significativos. Como nenhum fato histórico sobre Jesus anterior ao seu batismo foi rememorado, infere-se que Jesus não tenha desempenhado de maneira significativa ou digna de nota até então).

A classificação entre Movimento radical e Movimento moderado explica-se pelo fato, observado por Crossan, de que a mensagem de Jesus e a mensagem de João Batista coincidem-se em diversos pontos, menos em um requisito fundamental: quanto ao teor radical. Em outras palavras, enquanto Batista falava em um Reino de Deus violento, abrupto, com fogo, sangue e morte, Jesus falava em um Reino de Deus caloroso, simpático, moderado, enfatizando o amor, a caridade e a vida.

Segundo Crossan, o marco histórico que desencadeou essa mudança conceptual acerca do entendimento sobre o Reino de Deus consistiu na morte de João Batista por Herodes em Maqueronte. Tal fato, na visão de Crossan, exerceu grave impacto na mente de Jesus, fazendo-o reconsiderar alguns pontos da mensagem de seu mentor, sob o risco inclusive de abandonar o movimento e retornar a sua vida pregressa de “pecador”.

Assim, foi necessária uma mudança na doutrina do Reino capaz de explicar a situação sócio-política e existencial vigente. Foi desse modo que Jesus deu prosseguimento ao movimento criado/iniciado por Batista, transformando este movimento segundo suas conveniências e dando ensejo a um, pode-se chamar, “novo movimento”, que exerceria mais influência e prestígio que o de seu mestre – pelo menos para alguns indivíduos até meados do século, quando passaria a não encontrar mais nenhum rival importante.

Nesse ínterim, surge um problema: adotou Jesus a prática do batizador tal qual seu mentor João Batista?

Este é o fato a se comprovar. Os fatos já comprovados que são essenciais para uma abordagem deste fato por comprovar são: i) João Batista batizava; ii) Jesus era pupilo de João Batista; iii) Jesus deu continuidade ao movimento, apesar de tê-lo modificado significativamente; iv) após a morte de Jesus a prática do batismo tornou-se parte do cotidiano cristão, exercendo tanto a função imediata como mediata.

As opiniões dos historiadores são dispares quanto a possibilidade de Jesus ter sido um batizador como seu mestre: enquanto John Dominic Crossan (pesquisador que exclui o Evangelho de João dos estudos das origens cristãs...) rejeita que Jesus tenha praticado batismos, J. P. Meier o aceita sem maiores embargos, pautando-se no texto de João 3.22 em diante (discorrendo também sobre a negação dessa prática em João 4.2). Como justificativa, Meier alega que a prática do batismo por Jesus explicaria a continuidade entre o batismo de João e o batismo exercido pelos discípulos de Jesus e pelas comunidades primitivas em geral (Teoria do Batismo de Jesus).

Contudo, contra essa alegação poderíamos argumentar simplesmente que os cristãos primitivos batizavam em homenagem à prática ao qual o próprio Jesus fora submetido, como uma representação do batismo do mestre, uma figura da morte e ressurreição do salvador na vida do cristão. Assim, não constitui relação necessária Jesus ter realizado batismo e o batismo exercido pelos cristãos posteriores. Trata-se da Teoria da Homenagem como origem do batismo no seio cerimonial cristão.

Entretanto, não vemos problema algum em considerar que Jesus tenha realizado batismo, já que, ao encabeçar um movimento tal qual e nos mesmos moldes do movimento de seu falecido mentor, com toda certeza retomaria não somente sua pregação (ainda que reformulada), mas também vários de seus rituais, sentindo-se, na categoria de mestre, um continuador não apenas das representações (doutrina), mas também das práticas (liturgia) de seu mentor. Além disso, não compartilhamos da radicalização existente na obra de Crossan que tende a rechaçar qualquer tradição conservada ou apresentada pelo Evangelho de João.

Tendo sido realizadas tais tentativas de esclarecer as primeiras questões históricas pertinentes ao tema acerca do batismo primitivo, a partir de agora nos focaremos em questões mais específicas, capazes, talvez, de explicar não somente a adoção do batismo por parte de João Batista, mas também por (possivelmente) Jesus e (certamente) por todo o Cristianismo primitivo.

A primeira questão a ser respondida será a própria razão de ser do batismo: por que a realização do batismo era importante diante de suas funções mediata e imediata? Em outras palavras, o que existe no ato batismal que o faz ser digno ou preferível de ser utilizado para o cumprimento das duas funções, já que outros atos poderiam ser utilizados ao invés deste? Mais estritamente falando: sabendo que, ao esmiuçar-se os componentes do batismo, obtendo-se genericamente 3 (três), a saber: a) ÁGUA; b) MERGULHO; c) EMERSÃO, quais os papeis desempenhados por esses três componentes que justificariam sua prática.

Esta será a questão a ser abordada no próximo tópico, para o qual teremos a ajuda da obra do mitólogo romeniano Mircea Eliade.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Retorno do blog

Avisamos aos interessados que o blog estará retomando as atividades nas próximas semanas. Um forte abraço!!!