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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

As narrativas evangélicas são confiáveis?

As narrativas evangélicas são confiáveis?

1 - Os Evangelistas não era "historiadores". Eram "evangelistas", e isso já diz tudo sobre que tipo de trabalho escreveram:

"Os evangelhos não são nem narrativas históricas, nem biografias (mesmo dentro dos esquemas flexíveis que guiavam estes dois gêneros na Antiguidade). Eles são exatamente aquilo de que passaram a ser chamados mais tarde: Evangelhos, ou “boas novas”. Daí podem-se retirar duas advertências. O que é “bom” depende da interpretação ou opinião de um indivíduo ou de uma comunidade. E “novas” é mais plural do que se pensa" (Crossan, 1994, p. 30).

2 - Nem é preciso ser um historiador mentiroso para se escrever dados falsos e incompativeis com a realidade. Foucault, Derrida, Hyden White, Barthes, De Certeau, e até mesmo Ginzburg já demonstraram que quando se escreve uma narrativa histórica, não se está descrevendo o que se passou, mas aquilo que o autor pensa que ocorreu, segundo a forma de selecionar e organizar o conteúdo dentro de sua mente.

"Tudo o que está narrado nos Evangelhos encontramos interpretados pelos seguidores de Jesus, não por seus adversários, por isso, são interpretações favoráveis: é o Filho de Deus, o Messias. Em outras palavras, é impossível uma interpretação imparcial e neutra" (Arens, 2007, p. 88).

Isso não é "preconceito contra as fontes cristãs" (se fosse, não seria aplicada a qualquer narrativa histórica não-cristã) e nem "pressuposições" (pressuposições são boas, desde que não sejam falsas). É um fato que hoje permeia o mundo acadêmico de modo interdisciplinar mediante a disciplina na Análise do Discurso.

Entre os historiadores da antiguidade existia distinção entre “os eventos que ocorreram (res gestae), e nosso relato a respeito (historia rerum gestarum)”. Portanto, ainda que se queiram que os Evangelistas tenham sido "escritores confiáveis", a própria natureza da narrativa (evangélica ou não) impede os Evangelhos de serem documentos 100 por cento exatos. São frutos de uma compreensão construtiva que traduz de uma realidade captada.

3 - Os Evangelhos são obras de PROPAGANDA RELIGIOSA, e não relatos históricos.

A Primeira Busca Pelo Jesus Histórico (século XVII aos anos 20 do século XX), de cunho Iluminista, foi inaugurada por Hermann Reimarus (1694-1768) e continuada por David F. Strauss (1808-1874), Johann J. Griesbach (1745-1812), e Ernest Renan (1823-1892). Caracterizou-se pela tentativa de elaborar uma figura válida para Jesus utilizando a racionalidade.

No entanto, teve seu fim quando, no início do século XX, Albert Schweitzer (1875-1965) e, mais tarde, Rudolf Bultmann (1884-1976), argumentaram que um Jesus histórico era impossível, pois que os evangelhos são produtos da fé, e não relatos dos quais se possam retirar informações históricas.

"Os quatro evangelhos são realmente fontes difíceis; o fato de serem os primeiros escolhidos da rede não significa a garantia de que eles reproduzem as palavras e os atos históricos de Jesus. Impregnados da fé pascal da Igreja Primitiva, altamente seletivos e ordenados segundo diversos programas teológicos, os Evangelhos canônicos exigem uma seleção minuciosa para deles se retirar informações confiáveis à pesquisa. [...] Décadas de adaptação litúrgica, expansão homilética e atividade criativa por parte dos profetas cristãos deixaram sua influencia nas palavras de Jesus nos Quatro Evangelhos". (Meier, 1993, p. 145).

4 - Os Evangelhos não são os documentos mais "testificados na história".

Muito tem-se comparado o número de manuscritos existentes do Novo Testamento, com os das demais literaturas mundiais. Até o ano de 2005, encontraram mais de 5745 manuscritos do Novo Testamento.

No entanto, apenas 2,8% pertencem a Idade Antiga Tárdia. 97,2% são manuscritos medievais, 93,6% foram escritos depois do século 9° d.C. - ou seja, mais de 800 anos após os relatos que narram.

Apenas 0,03% de todos os manuscritos existentes do Novo Testamento pertencem ao século II d.C., e se constituem meros 2 papiros fragmentados.

Costuma-se comparar o Novo Testamento com a obra antiga Anais, de Tácito - a qual nos restam apenas 2 manuscritos não-completos. Fazem isso jactando-se, mostrando com orgulho que existe muito testemunho textual para o NT do que existe para as obras de Tácito. Mas esquecem-se do que Montaigne, no século XVI d.C., já dizia:

"É certo que nos primeiros tempos, quando nossa religião principiou a ser admitida pelas leis, o zelo dos prosélitos incitou à destruição de livros pagãos e a excessos que acarretaram mais prejuízo do que os incêndios perpetrados pelos bárbaros. Tem-se em Cornélio Tácido um exemplo típico do que afirmo, pois embora o imperador, seu parente, houvesse, mediante decretos especiais, espalhado sua obra pelas bibliotecas do mundo inteiro, nem um só exemplar completo escapou à sanha dos que, por causa de cinco ou seis trechos contrários a nossas crenças, o destruíssem". (Michel de Montaigne, p. 51, Vol. II).

Ou seja: se temos pouco testemunho textual da obra de Tácito, é porque a IGREJA cuidou de destruir todas!

Do mesmo modo, se temos muito testemunho textual do NT (97,2% esritos na Idade Madieval - época em que a cultura, sociedade e política era dominada pela Igreja), é porque a IGREJA reproduziu centenas de cópias do NT para sua propaganda religiosa.

5 - Os evangelistas inventam ditos e atos de Jesus inautêntivos, movidos por suas orientações teológicas e ideológicas.

Um pequeno exemplo disso pode ser observado quando nos deparamos com passagens no NT em que Jesus afirma que sua mensagem é para ser pregada exclusivamente para os judeus (cf. Mc 7.27; Mt 10:6), com observações deliberadamente depreciativas sobre os gentios, chamados de ‘cães’ ou ‘cachorrinhos’ e de ‘porcos’ (Mc 7:27; Mt 15:26; cf. Mt 7:6)”.

No entanto, Lucas, o "Evangelho dos gentios", ao dirigir-se a um público principalmente gentio, risca ou deixa de lado as passagens que em Marcos e/ou Mateus sublinhavam a orientação exclusivamente judaica da missão de Jesus e seus discípulos imediatos.

"Se Jesus tivesse deixado claro aos seus apóstolos que sua mensagem era destinada ao mundo todo, e não apenas aos judeus, seria impossível explicar por que, segundo os Atos dos Apóstolos, a igreja primitiva, e Paulo em particular, encontraram tantas dificuldades, quase insuperáveis, quanto à admissão de gentios na comunidade cristã. A única conclusão lógica possível é que, para legitimar a presença crescente de não judeus na igreja, falas fictícias foram inseridas nos Sinópticos, nas quais o próprio Jesus ordena a proclamação do evangelho além dos confins do mundo judeu" (Vermes, 2006, p. 188,189).

6 – Os evangelistas são tendenciosos, porque cuidam de subtrair tudo aquilo que os desagradam.

Exemplo disso é a figura de João Batista.

Marcos (1.4-11) relata, sem qualquer explicação teológica, o batismo de Jesus – sendo que o batismo era destinado a purificação dos “pecadores” – deixando implícito que Jesus era um pecador se submetendo a João Batista.

Mateus, sentindo-se constrangido ao ver seu “Senhor”, puro e imaculado, sendo batizado, cria um diálogo em que João Batista confessa ser indigno de batizar Jesus e só o batiza depois que o mesmo lhe ordena (Mt 3.13-17).

Já Lucas, afirma que João Batista foi preso e morto antes do batismo de Jesus e por isso deixa de mencionar quem foi que o batizou, sendo significativamente lacônico nessa passagem (Lc 3.19-22).

João, por sua vez, suprime por completo qualquer relato de Jesus sendo batizado (Jo 1.29-34), e acrescenta Jesus como um “batizador” concorrente de João Batista (Jo 3.22,26). Depois de ponderar, pensa que não é correto equiparar Jesus a João Batista pelo ato de batizar e afirma que Jesus “não batizava” (Jo 4.2).

De acordo com Meier (1993, p. 171): “é possivel que a Igreja de então, vendo-se “atrapalhada” com um acontecimento da vida de Jesus considerado cada vez mais embaraçoso, tivesse procurado atenuá-lo de várias formas, até que João Evangelista finalmente o suprimiu de seu Evangelho".

Segundo Crossan (1994, p. 268), a “tradição não parece aceitar muito bem a idéia de João batizar Jesus, pois isso faz com que João pareça superior e Jesus um pecador”.

O Batista constituía uma pedra no caminho no inicio da história de Jesus segundo o cristianismo, uma pedra bastante conhecida para ser ignorada ou negada, uma pedra que cada um dos evangelistas tinha que contornar da melhor forma possível”. (Meier, 1996, p. 37).

Se os Evangelhos fazem isso com João Batista, o que podemos pensar sobre o que fizeram a respeito de Jesus?
Fontes:
ALAND, Kurt (ed.) [et al]. The New Testament Greek. Third Edition. Stuttgart-Germany: United Bible Societies, 1988.
ARENS, Eduardo. A Bíblia sem mitos. Uma introdução crítica. São Paulo: Paulus, 2007.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Trad. de Maria de L. Menezes; rev. técnica [de] Arno Vogel. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
FUNARI, Pedro Paulo A. Documentos: Análise tradicional e hermenêutica contemporânea. In: ______________. Antiguidade clássica. A história e a cultura a partir dos documentos. 2.ed. Campinas,SP: Editora da UNICAMP, 2003.
GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
CHEVITARESE, André Leonardo. CORNELLI, Gabrielli; SELVATICI, Mônica (Org.) Jesus de Nazaré: Uma Outra História. São Paulo: AnnaBlume; FAPESP, 2006.
CROSSAN, John Dominic. O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu mediterrâneo. Trad. André Cardoso. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
MEIER, John P. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: as raízes do problema e da pessoa. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1993. Vol. I.
MEIER, John P. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: Mentor. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. II, livro I.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril, 1974. (Coleção. Os Pensadores). Volume 2.
VERMES, Geza. As várias Faces de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2006.

Lucas é um historiador confiável? A controvérsia da confiabilidade histórica os evangelhos bíblicos

Lucas é um historiador confiável?

Por Richard Carrier¹ (adaptação²)

A qualidade ou confiabilidade de um fonte requer uma avaliação de todos os fatores relevantes. Os evangelhos são falhos como relatos confiáveis porque falham em todos os critérios, não porque falham em um ou dois. Para encurtar a conversa, Lucas, o melhor deles, não oferece nenhuma das marcas de um historiador crítico e cuidadoso, em vez disso prega e propagandeia, e implicitamente serve uma agenda ideológica, não uma objetiva investigação em direção a verdade.

Para uma boa comparação extrema, compare os explícitos métodos de Arrian com Lucas-Atos: Arrian relata a história de Alexandre o Grande quinhentos anos após os fatos. Mas o faz explicitamente oferecendo um método seguro. Arrian diz que ignorou todas as obras não escritas por testemunhas. Em vez disso, confiou somente em antigos textos disponíveis de testemunhas oculares da campanha de Alexandre. Eles os nomeia e discute suas conexões com Alexandre. Ele então diz que, sobre cada ponto onde eles concordam, simplesmente registraria o que eles disseram, mas onde discordam de modo significativo, ele citaria ambos relatos e identificaria as fontes que discordam.

Contudo, este não é o melhor método – métodos modernos foram melhorados consideravelmente –, mas está entre os melhores métodos empregados na antiguidade. Isso é consideravelmente diferente do que apenas escrever histórias quinhentos anos mais tarde. Deixando claro, se Arrian fez o que disse, ele é quase tão bom quanto a fonte de uma testemunha ocular (de fato, argumentavelmente melhor). Agora, perceba como Lucas não faz nada disso (nem nenhum outro evangelista).

Não temos idéia sobre as fontes que Lucas usou e para quais informações. Também não temos idéia sobre como ele escolheu em quem confiar ou quem incluir. Lucas, portanto, não pode ser associado a Arrian como historiador crítico. Ele consegue ser ainda pior quando comparado como Polybius ou Thucydides. Nem mesmo alcança o nível de historiadores inferiores como Tácito e Josefo – que apesar de não oferecerem uma clara discussão dos seus métodos, frequentemente nomeiam suas fontes e explicitamente mostram um senso crítico ao escolher entre relatos divergentes e confusos.

O significado disso é simples: consideramos um fato que esses historiadores executaram ao menos alguma pesquisa decente, criticamente examinaram a evidência e admitiram a dúvida ou as informações conflitantes.

Não confiamos em nenhum historiador antigo tanto quanto confiamos em um bom historiador moderno – todos os antigos historiadores erraram em uma variedade de pontos por uma variedade de razões (então, por extensão, podemos estar certos que Lucas também). Mas confiamos nos antigos historiadores na medida em que eles demonstram as qualidades de um historiador confiável, como ser um pensador crítico com um interesse explícito em averiguar alegações contra documentos e relatos de testemunhas.

Todos os evangelhos discordam. Mesmo Lucas, que alega ter seguido tudo precisamente, deixa de fora muitas coisas. Lucas também reescreve o que Jesus disse ou fez de modo levamente diferente da sua fonte (provavelmente Marcos) e oferece uma cronologia muito diferente da de João. Obviamente, deve ter havido discordâncias. Um historiador crítico comentaria as discordâncias e, se possível, as resolveria nomeando e citando fontes. Por exemplo, considere os atuais esforços dos cristãos para harmonizar os relatos dos evangelhos. Isso é exatamente o que um autor como Lucas teria feito, tivesse ele sido um historiador crítico e não apenas um porta-voz defendendo uma ideologia.

Mas o problema, de fato, não é apenas que Lucas não se esforçou para resolver as disputas e diferenças entre suas fontes, assimo como não fez qualquer esforço para nomeá-las, averiguá-las ou estabelecer os méritos de qualquer uma das suas fontes. Este são problemas sérios. Mas o maior é que Lucas não diz nada sobre seus métodos – assim não podemos saber quão confiáveis são - ou suas fontes –, então não podemos saber quão confiáveis eles são – ou mesmo quem eram. Muitos outros historiadores ao menos nos dizem isso em algum lugar – alguns, como Appian e Josefo, mesmo ao escrever autobiografias inteiras.

Mesmo no geral, Lucas não se comporta como um pensador crítico. Um pensador crítico começa cético e somente termina crendo após encontrar fortes evidências - e então esperar que sua audiência se aproxime da verdade do mesmo modo. Consequentemente, ele expressa dúvidas sobre alegações incríveis e então vai adiante explicando porque não acredita, ou admite no que ele acredita mas não é certo, e assim por diante. Historiadores antigos nem sempre são bons nisso. Mas ao menos o fazem um pouco. Lucas não. Entretanto, como eu havia dito, Lucas e os outros evangelistas estão, em termos de sinais de confiabilidade percebível, entre os “historiadores” do mais baixo escalão (e apropriadamente falando, em todo o Novo Testamento somente Lucas diz estar escrevendo história). Não são observadores neutros, mas crentes vendendo uma religião.

***
Notas:
1- Richard Carrier permite que todos seus textos sejam traduzidos, desde que sem fins lucrativos.
2- O texto é uma Adaptação, pois o artigo é uma refutação dirigida a James Patrick Holding, apologeta cristão fundamentalista.
Fonte: http://www.infidels.org/library/modern/richard_carrier/resurrection/rubicon.html
Tradução e adaptação: Sky Kunde

sábado, 7 de fevereiro de 2009

As várias faces da cruz: heresias, conflitos e diversidade na Antiguidade cristã


O Cristianismo nasceu em um entorno presidido pela diversidade. Tratava-se de uma seita judaica sem qualquer unicidade: havia cristãos mais rigorosos com respeito à observância da Lei Mosaica, enquanto havia outros mais permissivos, chamados de "cristãos helenistas", que viam a observância da Lei como um peso, e aceitavam novos batizados de origem pagã.

Porém, os problemas de divergência doutrinária e de ideologia foram aumentando com os séculos, à medida que a seita crescia e se formava a Igreja. Foi nesse contexto histórico que as vozes discordantes em relação a ortodoxia – a qual se proclamava a herdeira da tradição apostólica - foram cada vez mais estridentes, até provocar grandes cismas e heresias. A seguir oferecemos um catálogo das principais heresias da Antigüidade, até o século VI, com a condenação do Orígenes por parte do imperador Justiniano.

Nas primeiras décadas de existência do cristianismo, o próprio apóstolo Paulo teve que lutar com cristãos que não viam com bons olhos o batismo e aceitação, nas primeiras comunidades cristãs, de pagãos que não seguiam os ritos próprios da Lei mosaica, e em especial da circuncisão. Existia, pois, desde o início e sobretudo em Jerusalém, uma corrente que representava a vertente mais tradicionalmente judia, matriz de que procedia a nova comunidade espiritual. Existiram vários tipos de cristãos judaizantes no século II, como os Ebionitas, os Nazarenos, e correntes que tinham sua origem em idéias judaizantes, como o Milenarismo e os Elcasaítas.

Os Ebionitas foram a facção mais radical, partidários de uma estrita observância da Lei mosaica, que consideravam Jesus como um homem que chegou a ser "Cristo" (o Messias ou o Ungido, o que era sinônimo do Rei do Israel) por sua fidelidade à Lei. Os Ebionitas dispunham de um próprio Evangelho, que tinha ao Evangelho de Mateus como referência. Entretanto, omitia o relato da infância do Jesus, pois os Ebionitas negavam o nascimento virginal, sendo que, para eles, a união de Jesus com o Espírito se produziu no batismo. O Evangelho dos Ebionitas foi composto na primeira metade do século II.

Em princípios do século II também foi composto o Evangelho dos Nazarenos, que fora escrito em aramaico ou siríaco, muito próximo a escrita do Evangelho de Mateus. Este evangelho era utilizado por uma comunidade judaizante de fala aramaica, na região da Ásia. Desta época é o Evangelho dos Hebreus, que também tinha conotações judaizantes, mas de uma comunidade egípcia.

Entre as idéias judaizantes dos dois primeiros séculos do Cristianismo, encontramos o Milenarismo ou Quiliasta, baseado no Apocalipse. Muitos cristãos acreditavam na iminente restauração messiânica do Reino dos mil anos, que Cristo presidiria, com o correspondente julgamento final. Estas idéias se plasmaram no Apocalipse sírio do Baruc e no livro de IV Esdras, mas também aparecem com mais ou menos intensidade entre muitos autores e escritos mais ortodoxos, como por exemplo, na Epístola do Barnabé, ou nas obras de Justino ou Irineu.

Uma seita milenarista que se estendeu a Roma nos princípios do século II foi a dos Elcasaítas, seguidores do Alcibíades da Apaméia, que pregava a mensagem contida no Livro do Elcasai, um profeta palestino que propunha um batismo muito complexo e certas penitências, que lhe tinha sido revelado através de uma visão. O Elcasítismo tinha também alguns componentes pagãos, de tipo fundamentalmente ritual.

Desde o começo, o Cristianismo carecia de uma opinião unânime sobre a natureza do Jesus, pois a idéia de sua divindade se associava com dificuldade com as idéias mais judaizantes sobre o Deus único, ainda que fosse de mais fácil aceitação pelos pagãos conversos. Já nos próprios Evangelhos não se encontra uma unidade clara de critério sobre a divindade de Jesus.

O Evangelho de João e o de Marcos não nos falam da infância do Jesus, e tudo parece indicar que foi partir do batismo que se produziu a união entre o Espírito e o homem Jesus. Esta última tese é a que aceitavam os Adocionistas, corrente que mantinha que no batismo, Deus tinha adotado Jesus como seu Filho. Outra corrente, conhecida como Docetismo, considerava que o corpo do Jesus não era real, mas somente aparente. Essa seita foi rebatida nas Epístolas de João, que afirma: "quem não confessa que Jesus veio em carne é o espírito do anticristo". Esta corrente considerava que Jesus gozava de um corpo aparente, pois sua divindade lhe impedia de mesclar-se com o perecível.

No século II apareceram vários autores que defenderam teses docetistas, subordinacionistas e adocionistas, como Noeto da Esmirna, que não podia aceitar que o Pai e o Filho fossem pessoas diferentes, e por isso em Cristo se encarnava o próprio Deus, mas só como projeção. Práxeas defendeu uma tese conhecida como Monarquianismo, pois Deus é monarca único, e é quem se encarnou no Filho. Desse modo, foi o próprio Deus quem sofreu paixão e morte na cruz. Uma idéia oposta, mas apoiada igualmente na unidade de Deus, é o Adocionismo de Teódoto e Artemón, que mantinham que Jesus foi um homem adotado por Deus como instrumento de salvação, já que Deus não podia relacionar-se com a carne. Sabélio foi o continuador de Noeto em Roma, pois para ele Pai e Filho não são mais que modos ou aspectos de uma mesma personalidade, pois Deus se manifesta como Pai na Criação e como Filho em seu papel de salvador. O bispo de Roma condenou a Sabélio e a seus seguidores, chamados de "Modalistas", como hereges. A disputa não fou resolvida até a implantação de uma fórmula intermédia: o Concílio de Nicéia determinou que o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram uma única substância e três pessoas (um homoousion e três hipóstasis).

Havia na Samaria um profeta ao que chamavam "Simão o Mago", de que falam os Atos dos Apóstolos 8.9-24, e de que dizia que tinha redimido a sua companheira, uma ex-prostituta, encarnação da Sophia. Os Simonianos e os Bardesianos, seguidores do Bardesanes, filósofo aramaico, aproximam-se da grande heresia do século II, o Gnosticismo.

O Gnosticismo se trata de um complexo vigamento de mitos e crenças, de que participaram distintas Escolas, e que tinham como comum denominador uma Gnosis. Os Gnósticos se opunha radicalmente à entidade divina do Antigo Testamento, e por isso representam o pólo oposto ao cristianismo judaizante, sendo que representavam uma opção culta e helenizada dentro do Cristianismo. Tal tipo de Cristianismo se aproxima dos Mistérios pagãos e, sobretudo, do sincretismo filosófico da época. Simonianos, Bardesianos e Fibionitas foram três seitas, próximas ao Gnosticismo, que mantiveram complexas cosmologias e certo componente gnostico, como via de salvação.

O Maniqueísmo, por sua vez, foi criado pelo profeta persa Mani no século III. Esse autor escreveu seus próprios textos, e teve grande difusão desde a Pérsia ao Extremo Oriente, e também ao Ocidente, chegando até a Espanha e a Gália. De forte influência zoroástrica, Mani falava de dois princípios antagônicos, a Luz e as Trevas; no Cosmos se mesclam ambos os princípios, que também se encontram no homem, e por isso este deve despertar à Luz, por meio de uma certa gnosis e um determinado comportamento de vida.

O Montanismo é a última grande heresia dos séculos II e III; Montano, de origem frigia, fundou junto a duas profetisas, Prisca e Maximilla, um movimento profético, que se propõe a realizar uma renovação no Cristianismo frente ao iminente fim do mundo. Propunha uma vida ascética apoiada em jejuns e abstinência sexual, convidando seus ouvintes a uma resignada disposição para o martírio. O Montanismo se estendeu por todo o Norte da África, e conquistou para suas filas a Tertuliano, um dos grandes Pais da Igreja. Sua rigorosidade terminou por gerar uma importante disputa sobre a impossibilidade de redenção dos pecados depois do batismo, que terminou afastando o Montanismo do cristianismo ortodoxo.

O século IV começa com a grande disputa trinitária, quando surgiram grandes heresias orientais sobre a questão cristológica. Ário foi o promotor da primeira grande disputa. Desenvolveu uma teologia trinitária subordinacionista, segundo a qual, Deus, único e indivisível, não pode compartilhar sua essência (ousía) com outra pessoa, e por isso o Filho não pode ser da mesma substância que o Pai. Para Ário, Deus é princípio (arché) e Cristo, o Logotipos, sendo engendrado, a primeira e superior das criaturas, criado fora do tempo, de absoluta perfeição, mas não compartilhando nem da eternidade nem da essência do Pai. O Espírito é a primeira criatura engendrada pelo Filho. Desse modo, essa vertente discordava da ordem de hierarquia entre as três entidades divinas, que formam a Trindade.

As teses de Ário foram condenadas no primeiro Concílio Ecumênico, celebrado em Nicéia no ano 325, sob a presidência do Imperador Constantino. Em dito Concílio se estabelece o Símbolo da Nicéia, que ainda se reza como o Credo católico, no que se afirma que há um só Deus, Pai, e o Filho, da mesma natureza que o Pai (homooúsios).

O Arianismo teve uma grande difusão, e não desapareceu depois do Concílio da Nicéia, pois o Imperador Constâncio favoreceu a esse segmento, tendo inclusive nomeando a um deles, Eusébio da Nicomédia, Patriarca de Constantinopla. O problema era a aceitação do termo homooúsios, o qual foi o responsável por uma disputa que ainda durou alguns anos. Ainda assim, o Arianismo conseguiu estender-se entre as monarquias góticas européias. Foram os três grandes teólogos capadócios: Basílio de Cesárea, Gregório Nacianceno e Gregório de Nisa, quem pôs fim a essa disputa, e conseguiram impor a formula "uma natureza, três pessoas" (una ousía treîs hypostáseis). Teodésio o Grande convocou o I Concilio Ecumênico de Constantinopla, onde se confirmou o credo da Nicéia, condenando definitivamente o Arianismo e as heresias afins.

Outras duas grandes controvérsias trinitárias foram: o Macedonismo, promovida por Macedônio, bispo de Constantinopla, que negava a divindade do Espírito Santo de forma subordinacionista. Foi condenada no Concílio de Constantinopla, onde foi confirmada a divindade do Espírito Santo; e o Apolinarismo, que seguia as tese de Apolinário de Laodicéia, teólogo inimigo das teses arianas e defensor da divindade de Cristo; esta heresia introduz a questão cristológica, que será debatida nos próximos Concílios Ecumênicos, contra o Nestorianismo e o Monofisismo. Para Apolinário, o Logotipos se encarna em um corpo e uma alma humana, mas sem a parte racional, sendo que no homem Jesus haveria uma inteligência e vontade divina; esta tese foi defendida pela Escola da Alexandria, representada por Cirilo e mais tarde pelos Monofisistas. Teodoro da Mopsuéstia e João Crisóstomo, representantes da Escola de Antioquia, opuseram-se ao Apolinarismo, no I Concílio de Constantinopla. Aqui começava a batalha entre as duas grandes Escolas Catequéticas da Alexandria e Antioquia.

A disputa sobre a natureza do Cristo enfrentava duas visões distintas sobre a alma humana, uma visão platônica sobre as três classes de almas encerradas em um corpo, e uma visão aristotélica segundo a qual a alma é a substância do corpo. Estes dois pontos de vista permitiam interpretar a encarnação do Logotipos de duas maneiras distintas: a primeira uma cristologia descendente, em que o Logotipos se faz carne (Lógos-sarx); e a segunda uma cristologia ascendente, onde o homem é assumido pelo Logotipos (Lógos-ánthropos). A Escola da Alexandria assumiu a cristologia descendente, que finalmente acabou se impondo, enquanto que a Escola da Antioquia, com o Teodoro da Mopsuéstia à cabeça, mantinha que a união entre o Logotipos e homem é uma conjunção (sináfeia), o que deixava claro que não havia mescla de naturezas. No ano 428, o imperador Teodosio II nomeia ao Nestório Patriarca de Constantinopla. Nestório, orador ardente, combateu do púlpito a popular concepção da Maria como "mãe de Deus" (theotocos); da teologia antioquena, Maria só podia ser mãe de Cristo, não do Logotipos que lhe é anterior. Cirilo de Alexandria, apoiando-se em teses próximas ao apolinarismo, mantinha que Cristo tinha uma única natureza, porém também tendo corpo e alma humanos - tese que conseguiu se impor e predominar no Concílio de Éfeso do ano 431, o que custou a condenação e deposição de Nestório.
A polêmica continuou uma geração mais tarde, mas dessa vez a ameaça de heterodoxia provinha da Alexandria, que tinha aceito a interpretação radical do Eutiques das fórmulas do Cirilo, e afirmava que em Cristo só havia uma única natureza, e que da união do Logotipos e o homem, fundiam-se e mesclavam as duas naturezas em uma só. Eutiques foi condenado pelo Patriarca Flaviano de Constantinopla.

No ano 451 se celebrou o Concílio da Calcedônia, que pretendia pôr paz entre as duas tendências radicais: o nestorianismo antioqueno e o monofisismo alexandrino, confirmando o Símbolo da Nicéia, e estabelecendo que em Cristo havia duas naturezas completas, sem confusão, sem mescla, e sem que a diferença de naturezas desaparecesse pela união. A Fórmula da Calcedônia foi aceita como dogma oficial, e o Nestorianismo e Monofisismo foram condenados. Entretanto, nem todos os imperadores foram partidários das teses da Calcedônia, o que permitiu uma certa expansão sobretudo do Monofisismo. Os Nestorianos se transladaram a Pérsia, onde constituíram uma igreja independente.

O imperador Hereclio I (610-641) interessou-se pela unidade da Igreja, e tentou encontrar uma fórmula que pudesse ser aceita por calcedonianos e monofisistas, fórmula que se denominou "Monotelismo", reconhecendo que em Cristo houve uma só vontade. Essa doutrina, que se impôs durante algum tempo, foi retificada pelo III Concílio de Constantinopla, ainda que, durante o reinado do imperador Constantino IV Pogonato, tenha se condenado o Monotelismo, declarando que em Cristo havia duas naturezas e duas vontades, sempre concordantes, no sentido de que a vontade humana seguia à divina.

Enquanto no Oriente se debatiam as questões trinitárias e cristológicas, no Ocidente se suscitavam também outras importantes disputa contra duas grandes heresias: o Pelagianismo e o Donatismo, combatidas por Agostinho de Hipona. Cabe citar também a heresia Priscilianista, que se baseava nos ensinamentos do primeiro mártir da heterodoxia: Prisciliano. Pelágio, natural da Britânia, pregou suas doutrinas pelo Norte da África, no feudo de Agostinho da Hipona, opondo-se às doutrinas deste, especialmente a aquelas que se referiam ao pecado original, que tanto preocupava ao Agostinho. Pelágio e Agostinho mantiveram uma polêmica sobre o pecado original, em duas obras: Sobre a Natureza, de Pelágio, e Sobre a Natureza e a Graça, do Agostinho. O juiz dessa polêmica foi um Papa, que resolveu excomungar ao Pelágio, e Agostinho venceu a disputa.

O Donatismo, por sua vez, foi um movimento de renovação cismático, que mantinha uma estrita e austera concepção do pecado e sua impossibilidade de redenção depois do batismo. Donato foi bispo de Cartago, onde combateu todos os cristãos que tinham apostatado da fé para evitar o martírio, e mantinha a impossibilidade de que estes repartissem sacramentos. Nesse contexto, Agostinho da Hipona criou a fórmula que se impôs de modo predominante no pensamento cristão da época: o sacramento tem valor "ex opere operato" (pela ação mesma), e não "ex opere operantis" (pela ação de quem o reparte).

O Priscilianismo é também um movimento de reforma, que basicamente propunha o retiro da vida mundana, para uma vida mais ascética e contemplativa; tratava-se de voltar para um cristianismo original, incluindo práticas como continência, jejum e pobreza. O Priscilianismo foi visto como uma ameaça para a Igreja predominante, pois pregava a perda do poder, sobretudo eclesiástico, que na época era enorme. Com falsas acusações e por razões de oportunidade política, Prisciliano foi acusado de herege e julgado, sendo o primeiro mártir da heterodoxia cristã.

Por fim, é curioso salientar a condenação, no ano 543, de Orígenes e de seu Origenismo. Foi o imperador Justiniano, que tinha fechado a Academia de Atenas e tinha proibido aos pagãos ensinar filosofia, promulgando um decreto em que enumerava os enganos do grande teólogo cristão Orígenes, para pôr fim a certas disputas e especulações de alguns monges ilustrados.

MASHIACH BEN EFRAIM: As Raízes Catastróficas do Imaginário Messiânico Cristão Primitivo


Acreditava-se, até recentemente, que os judeus da Palestina judaica da época de Jesus concebiam a vinda de um só messias, o messias "filho de Davi", que restauraria a realeza. No entanto, novas descobertas - e com elas novas interpretações sobre o imaginário judaico-cristão primitivo - têm mudado essa visão. Mediante essas descobertas, os pesquisadores se tornaram cada vez mais dispostos a conceberem o messianismo judaico da época de Jesus como pluriforme e variado, existindo não só uma ou duas, mas inúmeras concepções sobre o messias.


O presente trabalho traz alguns apontamentos o chamado "messianismo catastrófico", sua antiguidade e sua relação com as tradições cristãs. Esperamos contribuir também para apagar os mitos de que os judeus do primeiro século não foram capazes de conceber um messias que morre e que a concepção messiânica na época de Jesus era homogênea.


Não foram poucos os estudiosos que alegaram que a idéia de um messias sofredor, cujo destino era ser humilhado e assassinado, era uma idéia estranha às tradições messiânicas existentes na Palestina judaica do século I d.C. Rudolf Bultmann (apud, KNOHL, 2001) talvez tenha sido o estudioso que mais contribuiu para a disseminação da visão.


Geza Vermes (2006: 215), por sua vez, não deixa dúvidas de que o modelo de messias que morre é posterior à escrita dos Evangelhos bíblicos, afirmando que a representação do Messias assassinado da tribo de Efraim na literatura rabínica é de pouca valia para o estudo dos Sinóticos, pois nenhum texto fala do Messias assassinado em época anterior à segunda revolta judaica contra Roma durante o reino de Adriano (132-5 d.C.).


Com freqüência, a literatura rabínica faz menção a um messias chamado "Messias ben Efraim", também chamada de "Filho de José" ou "Filho de Efraim", que deveria morrer para salvar Israel. O Talmude Babilônico, Sukka 52ageralmente é concebido como a primeira referência ao messias filho de José na literatura rabínica.


De acordo com o Talmude, Jerusalém se lamenta pelo assassinato do Messias filho de Efraim, cuja morte faria com que o Messias filho de Davi retornasse a terra para estabelecer o reinado messiânico, logo após ressuscitar o Messias filho de Efraim dos mortos.


No entanto, a escritura do Talmude só começou nos séculos posteriores ao cristianismo e, portanto, conforme o exposto por Geza Vermes, o Messias Filho de José pode ser uma invenção judaica criada a partir de Jesus competir para o cristianismo.


Em todo caso, tal modelo de messias era concebido pelos estudiosos como bastante tardio para ser capaz de trazer alguma contribuição aos estudos sobre o cristianismo primitivo, e foram muitos os especialistas que viram na figura messiânica de Efraim, ou Messias filho de José, uma "cópia" deliberada da figura messiânica de Jesus apresentada nos Evangelhos, e por isso não lhe deram crédito e muito menos antiguidade.


No entanto, como ressalta Scardelai (1998: 120), a doutrina messiânica no tempo de Jesus é marcado pela fluidez e espontaneidade, além da quase total ausência de princípios doutrinários cristalizados e de uma forma única. Em outras palavras, não se deve esperar que o messianismo paletino-judaico do primeiro século apareça com uma só forma.


Existiam outros modelos de personagens bíblicos que serviriam para formar outros e diferentes tipos de messias naquela época a serem assimilados por diversos grupos – inclusive o cristianismo.


Um desses modelos seria o do "servo sofredor", tal como apresentada no texto do profeta Isaias (53.3-5) que o retrata como justo, manso e humilde, afirmando que o mesmo foi "desprezado e abandonado pelos os homens", e que levou "nossos sofrimentos sobre si e nossas dores".

Flusser (apud, SCARDELAI, 1998: 299), erroneamente, afirma que a idéia do messias como o "servo sofredor" de Isaias foi exclusiva do cristianismo, afirmando que a exegese judaica não aplica a imagem do "servo de Isaías" às qualificações pessoais messiânicas.


No entanto, essa visão é equivocada. Knohl (2001: 38) afirma que interpretação messiânica de Isaias 53, sobre o "servo sofredor" não foi descoberta na igreja cristã. Ela já havida sido desenvolvida pelo Messias de Qumrã.


O movimento de Qumrã, de acordo com Knohl (2001: 28, 31), já trazia a idéia de que o messias iria padecer, mas que também seria glorificado, que consta nos "Hinos Messiânicos dos Manuscritos do Mar Morto":


"[Quem] foi desprezado como [eu? E quem] foi rejeitado [pelos homens] como eu? Quem, como eu, suport[ou todas as] aflições? Quem se compara a mim [na resist]ência do mal? [...] [Q]uem foi considerado desprezível como eu e, no entanto, quem é igual a mim em minha glória?"


Tendo essa idéia sido explorada, juntamente com a do messias levítico, antes mesmo do cristianismo vir a existir, é lógico conceber que vários movimentos messiânicos e apocalípticos dos primeiros séculos compartilhavam dessas mesmas crenças.


De acordo com Mitchell (MITCHELL, 2008 [online]), esse modelo de "servo sofredor" foi o principal inspirador de um tipo de messianismo diferente do messianismo real e sacerdotal, e que podemos encontrar indícios da existência da crença nesse messias nos Manuscritos de Qumrã. Esse modelo foi chamado de "messianismo efraimita-josefita", ou "Messias filho de Efraim/José".
Para provar a existência desse messias, Mitchell (2008: 03 [online]), compara as afirmações do Talmude Sukka 52b, que faz menção a quatro personagens escatológicos, chamados de "Os Quarto Artesãos", com o manuscrito de Qumrã de 4Q175 (4QTestimonia), uma antologia messiânica e coleção de textos bíblicos fundamentais ou "testemunhos", relacionadas com a crença messiânica. Ambos os documentos trazem o seguintes personagens desse quarteto messiânico: 1) o "Messias filho de Davi"; 2) o "Sacerdote Justo", ou "Melchizedek" (Melquisedeque); 3) Elias; 4) o "Messias da Guerra", que se refere ao "Messias filho de José".

Esse quarto messias é identificado com o personagem bíblico Josué, o general israelita, da tribo de José/Efraim, que comandou Israel na Conquista de Canaã. De fato, Josué foi homem de guerra e sucessor de Moisés, da tribo de Efraim, filho de José. Ele é, sem dúvida, o herói do quarto depoimento, assim como Moisés, a Estrela de Jacó, e os Sacerdotes Levita são os heróis dos três primeiros (MITCHELL, 2008: 01 [online])

Desse modo, Mitchell prova não apenas que a tradição rabínica do Messias filho de Efraim/José é pré-rabínica, como também pode ter influenciado a formação da imagem de culto cristã.
A partir dessas considerações, pode-se deduzir a existência de um modelo de messias hoje esquecido, mas existente e provavelmente bastante popular na época de Jesus, cujo nome era Messias filho de José, identificado como um "novo Josué". Também se pode deduzir o papel desse messias nos eventos escatológicos: lutar contra os inimigos de Israel, ser derrotado, padecer, morrer e ressuscitar dos mortos.


Kraft (2008 [online]) também comenta que uma versão latina de 4 Esdras 7.28f traz a figura do Messias vitorioso denominado "Josué", o qualmorre na transição para o novo mundo e cita uma tradução grega de Habacuque 3.13 que traz: "Tu sais para salvamento do teu povo, por Josué o teu ungido" ao invés de "Tu sais para salvamento do teu povo, para salvar o teu ungido".


Os Oráculos Sibilinos 5.256-259 (In: KRAFT,2008 [online]), que data do ano de 140 a.C., traz a seguinte passagem messiânica: "[...] uma vez que deve vir do céu, um homem de pré-eminente […] o mais nobre dos Hebreus [...] que em seu tempo fez o sol parar" (tradução nossa).O único personagem bíblico que fez o sol parar foi Josué, na batalha de Aijalon (Js 10.12-14). Desse modo, esse homem "pré-eminente" configura um novo e escatológico Josué. Desse modo, também podemos questionar se o nome de Jesus de Nazaré não é mais que um título messiânico.
Knohl (2001: 41) propôs a hipótese de que a crença no messias que morre e ressuscita ao terceiro dia era uma representação imaginária bastante comum na Palestina do primeiro século – até mesmo muito tempo antes de Jesus ter nascido.

Essa hipótese foi confirmada em julho de 2008, pela descoberta do texto recém publicado chamado "Apocalipse de Gabriel", em que, de acordo com as restaurações textuais de Israel Knohl e de Ada Yardeni, também traz a idéia do messias ressurrecto. Esse texto data do final do século I a.C., o que significa que se trata de um documento pré-cristão (YARDENI, 2008 [online]).

Nas linhas 16-17 há a frase "Meu servo Davi, peça a Efraim [que ele col]oque o sinal..." (YARDENI, 2008 [online], linhas 16-17, p. 01). Infelizmente, a natureza do sinal não é especificada, mas, segundo Knohl (2009 [online]), parece ser o sinal de salvação. No entanto, o fato de Davi ser enviado por Deus para fazer um pedido a Efraim para colocar o sinal pode atestar que Efraim está em uma posição superior. Ele, e não Davi, é a pessoa-chave que é convidada a colocar o sinal; Davi é apenas o mensageiro.

Na linha 80 desse escrito, Gabriel determina ao "príncipe dos príncipes" (o messias) que: "Depois de três dias, viva (ressuscite)!" (YARDENI, 2008 [online],. linha 80, p. 02). Essa passagem - tal como a tradição que serviu de base para Apocalipse de João, cap. 11, como o Apocalipse de Zerubabel, e como o Oráculo de Histaspes – mostra que, em uma época anterior ao cristianismo, existiam expectativas messiânicas ligadas a crença de que o messias morreria e ressuscitaria no terceiro dia.

É importante frisar que as principais "profecias messiânicas" usadas pelos primeiros cristãos para fundamentar biblicamente a crença na ressurreição de Jesus, a saber, Oséias 6.2; 11.1 e Ezequiel 37, etc. fazem referência a união das Casas de Judá e de Efraim. É provável que a associação dessas profecias a Jesus fosse bastante antiga, de modo que permaneceram mesmo após a identidade efraimita do messianismo de Jesus ter sido suplantada e/ou esquecida.

Seja como for, temos várias indicações da presença de elementos efraimitas na tradição evangélica bíblica.

O Evangelho de João, que traz materiais tradicionais bastante antigos sobre Jesus, muitas vezes faz alusão a uma idéia diferente de messias, que se coaduna muito mais ao modelo messiânico efraimita que ao modelo davídico. Pietrantonio (2008 [online]) apresenta algumas indicações no Evangelho de João da influência do messianismo efraimita:

[...] o EvJn (Evangelho de João] 11,54 relata que Jesus permaneceu três meses, segundo sua cronologia, em uma aldeia chamada Efraim. No NT [Novo Testamento] essa é a única vez e o único lugar em que se recorre a esse nome. [...] A razão histórica dada pelo EvJn é que sacerdotes e fariseus (11,47) decidiram matá-lo (11,53). [...] A retirada a Efraim geográfica, na redação do EvJn, requer uma compreensão teológica, profundamente cristológica, enraizada em uma das expectativas messiânicas daquele tempo, a do Messias ben/bar Efraim/José (tradução nossa).

O Evangelho de João 11.50 também faz uma alusão explícita à tradição efraimita, quando afirma que o sumo-sacerdote José Caifás profetizou que Jesus deveria morrer "pela nação e não somente pela nação, mas também para reunir em um só corpo os filhos de Deus, que andam dispersos".

Os "filhos de Deus", que andam "dispersos" se referem as Doze Tribos dispersas na época do Exílio Babilônico, que ocorreu no século VII a.C. Reunir as doze tribos e as duas casas de Israel, a saber: a Casa de Judá e a Casa de José/Efraim, era uma das prerrogativas do messias.

De acordo no Talmude Sukka 52a (cf.MITCHELL, In: AVERY-PECK, 2006: 83), quando o messias filho de Davi pede o "dom da vida" para que possa ressuscitar o messias filho de José, que foi morto pelas forças de Gogue e Magogue, o messias filho de José é o "primeiro da ressurreição dos mortos": não somente o messias filho de José é ressuscitado, mas também se realiza a esperança da ressurreição geral de todos os mortos profetizada em Daniel 12.2.

Da mesma forma que Jesus Cristo foi o "primeiro da ressurreição dos mortos" (1Co 15.20; Atos 26.23), o messias filho de José seria o primeiro a ressuscitar no evento da ressurreição geral de todos os mortos justos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. 4ª impressão. São Paulo: Ed. Paulus, 2006.
KNOHL, Israel. O Messias antes de Jesus.Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2001.
____________. The Messiah Son of Joseph: "Gabriel's Revelation" and the birth of a new messianic model. In: Biblical Archaeology Review.
KRAFT, Robert A. Was there a "messiah-joshua" tradition at the turn of the era?
MITCHELL, David C. Rabbi dosa and the rabbis differ: Messiah ben Joseph in the Babylonian Talmud. In: AVERY-PECK, Alan J.(Ed.). The Review of Rabbinic Judaism. Ancient, Medieval and Modern. Volume 9. Leiden,The Netherlands: Koninklijke Brill, 2006.
__________________. The Fourth Deliverer: A Josephite Messiah in 4QTestimonia.
PIETRANTONIO, Ricardo. El Mesías Asesinado. El Mesías ben Efraim en el Evangelio de Juan.
SCARDELAI, Donizete. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus: Jesus e outros messias. São Paulo: Paulus, 1998.
VERMES, Geza. As várias Faces de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2006.
YARDENI, Ada. Hazom Gavriel in English.The Apocalypse of Gabriel.

O fenômeno da “historização de profecias” nos relatos da infância do evangelho apócrifo de Pseudo-Mateus: uma análise

John Dominic Crossan é um dos pesquisadores pioneiros na ênfase da natureza profético-historicizada da narrativa da Paixão e Ressurreição de Jesus nos Evangelhos Bíblicos. Segundo ele, 80% dos detalhes da Paixão de Jesus não correspondem a lembranças e/ou tradição recebida dos fatos que ocorreram na morte de Jesus. Os detalhes da paixão de Jesus foram criações artificiais da igreja, forjados primitivamente pelos primeiros membros do movimento e se desenvolvendo a partir de modelos idealizados sobre citações antigas a partir de uma leitura reflexiva dos textos das Escrituras judaicas – que mais tarde seriam chamadas de “Antigo Testamento” pelos cristãos.

Esse ato de “forjar” narrativas a partir de profecias antigas é chamado de “Profecia Historicizada”. Crossan (ibid., p. 85) define profecia historicizada como “um evento histórico criado para cumprir uma antiga profecia”.

Tal ato foi motivado, no cristianismo primitivo, pela necessidade de confirmar a messianicidade de Jesus, enquadrando-o em modelos bíblicos pré-existentes para que possa haver uma prova escritural da ascendência divina e profética de Jesus, uma forma de legitimação. Desse modo, os cristãos poderiam apresentar suas crenças diante de judeus e pagãos de forma justificada. O antigo credo cristão de 1Cotintios 15, por exemplo, apela as Escrituras hebraicas como forma de legitimar a natureza profética da morte e ressurreição de Jesus: “Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”.

O fenomeno da historicização é bastante familiar; historicizar não se consiste em transfor algo em fato histórico – ainda que o objetivo original de uma pessoa ao fazê-lo seja esse -, mas em transformar alguma coisa, como idéia, pensamento, frase, etc. em uma narrativa ou conto.

O fenomeno da historicização é bastante frequente; costumamos, inconscientemente, historicizar preocupações através de sonhos, os quais muitas vezes nem sequer precisam de simbolismo para sabermos do que se trata.

Na História, a historicização se constitui num processo, dissimuladamente deliberado ou não, de se criar narrativas e dar a ela status de acontecimento real. Muitos mau (ou Mal)-entendidos na História deram a luz supostos fatos históricos que até hoje são reverenciados como acontecimentos históricos.

A historização, dessa forma, serve como uma das formas mais acessiveis e mais usadas de se criar ficções, tanto literárias quanto históricas, e por isso todo o historiador deve se atentar a ela.
O historiador Carlo Ginzburg (2002) mostra o quão a História pode ser prejudicada pela tendência de permitir que motivos ideológicos (idéias) e forças de diversas naturezas tendenciosas prevaleçam sobre a plausibilidade e factualidade histórica. Ginzburg apresenta o caso de um padre jesuíta chamado Le Golbien que, ao descrever o incidente de uma rebelião indígena em pleno século XVII, numa ilha das Filipinas (rebelião esta, diga-se de passagem, que ele conhecia apenas mediante poucos dados transmitidos em cartas, e nenhuma citação direta de qualquer fala de qualquer nativo), “narra” um longo e altamente eloqüente discurso que foi aceito historicamente na época como sendo de um índio guerreiro destacado.

O discurso do índio é tão magnífico e tão portador de recursos retóricos, que Ginzburg consegue ver paralelos dele na literatura clássica, quanto à retórica, e em Montaigne, quanto às idéias. Nesse caso, Ginzburg prova que tal discurso jamais foi de fato pronunciado por quaisquer indígenas, mas que na verdade expressava o pensamento ideológico do autor, que foi expresso pela “boca do índio”. Assim, o padre Le Golbien deu corpo e alma a sua ideologia, sem precisar arriscar o pescoço, ao “historicizar” sob a forma de discurso um pensamento seu posto na boca de outra pessoa. O pensamento do padre Le Golbien acerca do “bom selvagem” se baseou em Montaigne que:

“Le Golbien transformou as argumentações de Montaigne numa arenga e o bom selvagem em Hurao, o líder indígena das ilhas Marianas, cheio de ódio contra a civilização européia. Ao realizar essa manobra retórica, Le Golbien se inspirou, se não me engano, num famoso fragmento de Tácido”. (ibid., p. 93).

Quando Ginzburg diz que Le Golbien transformou as argumentações de Montaigne numa arenga, ele está fazendo uma alusão a este processo de historicização. Em geral, Ginzburg utiliza o mesmo método que os estudiosos usam nas narrativas bíblicas para testar a sua historicidade.

Passemos para um exemplo mais próximo do cristianismo.

Um evangelho apócrifo bastante recente em relação aos demais, o Evangelho de Pseudo-Mateus da infância de Jesus, acrescenta novos fatos à vida de Jesus sobre os anos que seguiram seu nascimento. Tais fatos, combinados com os fatos já conhecidos dos evangelhos canônicos, que se caracterizam pela exuberância e características indubitavelmente míticas e lendárias, foram reconhecidos pelos estudiosos não como história relembrada, mas como produto da imaginação criativa do autor esse evangelho apócrifo.
O Evangelho de Pseudo-Mateus embeleza sua imaginação criativa ao usar pequenas citações veterotestamentárias como modelo para se criar uma narrativa sobre Jesus. A isso se chamada de Profecia Historicizada. Existem pelo menos quatro exemplos desse evangelho do que podemos chamar de Profecia Historicizada.

Jesus e a profecia do boi e do burrico

O autor do evangelho de Pseudo-Mateus (in: PROENÇA, 2005, p. 505) “enriquece” nossos conhecimentos sobre a infância de Jesus oriundo dos demais evangelhos canônicos com o seguinte relato:

“No terceiro dia depois do nascimento do Senhor, Maria saiu da caverna; ela foi até o estábulo e colocou a criança numa manjedoura, e um boi e um burrico o adoraram. Então aquilo que foi dito através do profeta Isaías se cumpriu: “O boi conhece seu proprietário e o burrico a manjedoura de seu senhor”.

Na verdade, é muito fácil de ver aqui a “profecia” criando o evento do que o evento real recorrendo ao seu paralelo na profecia.

Jesus e os dragões

De acordo com o evangelho de Pseudo-Mateus, o Jesus menino “enfrenta” dragões, de modo em que prova sua ascendência divina a manifestar seu poder e autoridade, e remete relato a um suposto cumprimento de uma profecia:

“Quando eles chegaram a uma determinada caverna e quiseram descansar nela, Maria desceu da mula de carga e, sentando-se, segurou Jesus no colo. Havia três rapazes viajando com José e uma menina com Maria. E eis que, de repente, muitos dragões saíram da caverna. Quando os rapazes viram-nos na frente deles, eles gritaram com grande medo. Então Jesus desceu do colo de sua mãe, e ficou de pé diante dos dragões. Eles, porém, o adoraram, e, enquanto adoravam, recuaram. Então aquilo que foi dito através do profeta Davi se cumpriu: ‘Vos dragões da terra, louvai o Senhor, vós dragões e todas as criaturas do abismo’” (ibid., loc. cit.).

Note que a passagem dos Salmos citada pelo autor desse evangelho apócrifo em nada indica que o menino-messias iria submeter dragões diante do medo de sua família. No entanto, existem elementos-chave na citação que serviram para dar conteúdo ao relato: a palavra “terra” se transforma em “caverna”; o temor que o simples ato de imaginar essas criaturas fictícias causa, é materializado no medo dos rapazes na narrativa; ou louvor que os dragões prestam ao Senhor nos Salmos é narrado literalmente como reconhecimento e a adoração prestada pelos dragões à Jesus.

Jesus e os lobos

O evangelho de Pseudo-Mateus também narra o fictício episodio dos lobos e leões que escoltavam a carroça em que o menino Jesus viajava.

“Eles [José, Maria, Jesus e os demais] viajavam entre os lobos e não estavam amedrontados; não houve dano de um para o outro. Então aquilo que foi dito pelo profeta se cumpriu: ‘Lobos serão apascentados com os cordeiros, o leão e o boi comerão juntos’. Havia dois bois e a carroça, na qual eles carregavam suas necessidades, que os leões guiavam em sua jornada” (ibid., p. 506).

Note que na frase “lobos serão apascentados com os cordeiros, o leão e o boi comerão juntos” não há nenhuma indicação de que a mesma se cumpra ou deveria se cumprir no contexto da vida particular de nenhuma pessoa especifica, nem na do messias, e nem na vida de Jesus. Se, no entanto, fossemos argumentar isso para um historicizador como o autor do evangelho de Pseudo-Mateus, seriamos rechaçados.

Se para nós o fato de que tais passagens serem extremamente vagas e totalmente descontextualizadas nos impedem, por causa do bom senso, de realizarmos o que o autor desse evangelho apócrifo faz (e o que, indubitavelmente, os autores não somente dos evangelhos canônicos, mas de toda literatura neotestamentária fazem), por outro lado, para esses antigos historicizadores de profecias (tanto os autores de evangelhos apócrifos como de evangelhos canônicos) o fato delas serem vagas e descontextualizadas não impediam que fossem historicizadas. Muito pelo contrário. Na verdade, isso era o pré-requisito básico para que a historicização pudesse ser realizada e o sinal de que deveria ser realizada.

Historicizar significava não somente que a mão de Deus estava por trás dessa interpretação, mas também (principalmente pelo fato dessas passagens serem vagas quando descontextualizadas) proporcionava uma sensação de irrefutabilidade dessa historização. A aparente infalseabilidade dessa interpretação era prova de que se tratava de uma interpretação inspirada e oriunda de Deus.

Jesus e os ídolos egípcios

Por último, o evangelho de Pseudo-Mateus também nos apresenta um relato fictício de Jesus e sua família em um templo egípcio e do suposto acontecimento sobrenatural que se seguiu.

“E aconteceu que, quando a abençoadíssima Maria, com seu filho, entrou no templo, todos os ídolos foram jogados ao chão, ficando todos esmagados, convulsos e com suas faces despedaçadas. Assim ele revelaram abertamente que eram nada. Então aquilo que foi dito pelo profeta Isaías se cumpriu: ‘Eis que o Senhor Virá numa nuvem ligeira e entrará no Egito, e todos os ídolos feitos pelos egípcios serão removidos de sua presença’” (ibid., p. 507).

Diante dos exemplos aqui apresentados do evangelho apócrifo de Pseudo-Mateus, o leitor pode deduzir que a exercício de historicização de citações veterotestamentárias pode ser praticada infinitamente, cada historização correspondendo às noções preconcebidas e intuitos teológicos de cada autor, cada citação sendo distorcida, descontextualizada, reelaborada a adaptada para servir aos propósitos de cada historicizador. De fato, se deliberadamente nos dispuséssemos a historicizar toda passagem bíblica que achássemos pertinentes, então o epílogo do evangelho canônico de João (21.25) estaria certo em dizer: “Se fossem escritas [todas as outras coisas que Jesus fez] uma por uma, creio que o mundo não poderia conter os livros que se escreveriam”. A potencialidade prática da historicização de passagens a Bíblia judaica não tem limites e muito menos freios.

Tais exemplos oriundos desse evangelho são exemplos vivos e inegáveis de que uma narrativa relativamente longa e/ou detalhada pode ser criada a partir de uma pequena citação das Escrituras judaicas e que tal prática também foi uma realidade nos séculos que se seguiram a morte de Jesus.

Citamos esses exemplos porque temos pleno conhecimento de que o comprometimento emocional que a civilização ocidental possui em relação às narrativas da paixão de Jesus apresentadas nos evangelhos são muito fortes e basta somente isso para que rejeitem de forma aprioristica e indignada a realidade das Profecias Historicizadas. Como nenhum cristão possui qualquer comprometimento emocional com o evangelho apócrifo de Pseudo-Mateus, torna-se muito mais fácil perceber e aceitar o processo de historização acontecendo nesse evangelho.

Bibliografia

BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. 4ª impressão. São Paulo: Ed. Paulus, 2006.
CROSSAN, John Dominic. Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus. Tradução: Nádia Lamas. Rio de Janeiro: Imago ed., 1995.
GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
PROENÇA, Eduardo de (org.). Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia. São Paulo: Fonte editorial, 2005.