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domingo, 23 de março de 2008

A função política das aparições do Jesus ressurreto no cristianismo primitivo

A função política das aparições do Jesus ressurreto no cristianismo primitivo

de Charles Coffer Jr.

Ao alto desenvolvimento teológico nos escritos de Paulo, acompanhado pela quase total ausência das tradições de Jesus presentes no evangelho de Marcos, nos faz pensar o quanto o paulinismo cristão, a forma de cristianismo escrituristicamente mais primitiva que conhecemos, já se distanciara da mensagem original de Jesus.
Dentro desse contexto, somos levados a pensar que a forma de cristianismo que Paulo defendia era apenas uma entre tantas outras.
Pagels apresenta um quadro geral e político dos primeiros anos do movimento cristão:

"As autoridades políticas e religiosas se desenvolveram de modo mais surpreendente. [...] diversas formas de cristianismo floresceram nos primeiros anos do movimento cristão. Centenas de pregadores rivais reivindicavam, todos, pregar a “verdadeira doutrina do Cristo” e denunciavam uns aos outros como impostores. Os cristãos dispersos em igrejas da Ásia Menor à Grécia, Jerusalém e Roma dividiam-se em facções, disputando a liderança da igreja. Todos pleiteavam representar “a autêntica tradição”".

Vermes (2006, p. 83) também apresenta a situação politicamente conturbada das igrejas fundadas por Paulo:

"A igreja de Corinto, fundada por [Paulo] rapidamente cindiu-se em facções rivais. [...]. Havia luta interna, ciúme e rivalidade também na igreja de Filipos, em que os oponentes de Paulo, que ele chamava de cães e de maus operários, pegavam para exasperá-lo (Fl 1:15-17;3:2)".

Paulo era apenas um representante dessas facções, e certamente daquela que “venceu” entre todas as demais. Paulo, um dos grandes líderes cristãos dos primórdios, também nos fala de pelo menos outros três grandes “líderes” na igreja primitiva: Pedro, Tiago e João (Gl 2:9). De acordo com a tradição, estes três grandes líderes na igreja primitiva, ao contrário de Paulo, haviam sido discípulos diretos de Jesus, juntamente com o grupo denominado “Os Doze” e outros discípulos.
No entanto, existe algo que tanto Paulo como esses outros líderes cristãos e discípulos de Jesus tinham em comum: todos haviam visto Jesus Cristo ressuscitado, ou alegavam tê-lo visto (1Co 15:3-7).

Paulo, ao disputar autoridade com diversos outros “líderes” das comunidades cristãs primitivas, chega a afirmar: “Não sou apóstolo? Não vi Jesus nosso Senhor?” (1Co 9:1). De fato, a autoridade de Paulo não vinha de qualquer contato com o Jesus terreno:

"[Paulo] não teve contato com o Jesus terreno; não ouviu o seu ensinamento ou experimentou a sua presença e influencia espirituais. Inteligente como era, ele passou ao largo do terreno escorregadio e imaginou uma abordagem nova, não histórica, do Senhor Jesus Cristo, que não apresentasse desvantagens óbvias para ele. [...] De fato, o seu evangelho não se parece em nada com o relato dos ensinamentos e da vida de Jesus que evoluiu nas décadas subseqüentes, cristalizando-se nas narrativas sinópticas. A sua pregação não se baseava no que Paulo tinha ouvido dos seus predecessores; fiava-se em comunicações e visões celestiais" (VERMES, 2006, pp 85,87).

Paulo havia sido o último a receber a visão do “nosso Senhor ressuscitado”. De acordo com Vermes (2006, p. 80) “o calcanhar-de-aquiles de Paulo era a natureza questionável do seu status como apóstolo. Ele estava convencido de que era um ‘apóstolo de Jesus Cristo’”.
Vermes (2006, p. 82) também afirma que “como resultado [da visão de Jesus ressuscitado] Paulo sentiu-se plenamente autorizado por Jesus, sem precisar de nomeação [...]”. De fato, um vínculo entre “autoridade apostólica” e “visão de Jesus ressuscitado” começa a se tornar explicita dentro desse contexto, não apenas para Paulo, mas de modo geral:

"[...] ao examinarmos o efeito prático, paradoxal, no movimento cristão, podemos ver como a doutrina da ressurreição do corpo também serve a uma função política essencial: legitima a autoridade de certos homens que reivindicam o exercício da liderança sobre as igrejas como sucessores do apóstolo Pedro. Desde o século II, a doutrina serviu para validar a sucessão apostólica dos bispos; base, até hoje, da autoridade papal". (PAGELS, 2006, p. 5).


De fato, o melhor modo dos cristãos primitivos resolverem as diversas disputas teológicas, estabelecerem a ortodoxia dos ensinamentos sobre os “heréticos” e firmarem sua autoridade era através das aparições em que o Jesus ressuscitado, aquele que foi a “única autoridade reconhecida por todos”, delegava o poder (PAGELS, 2006, p. 6).
Pagels apresenta um quadro historicamente plausível (isto é, sem as lendas posteriores sobre a descoberta do Túmulo Vario) do que realmente aconteceu após a morte de Jesus, onde ela aponta para o fato de que as supostas aparições de Cristo ressuscitado possuem mais implicações políticas do que verídicas (ao contrário do que os apologetas cristãos querem sustentar), e que se os cristãos alegavam que Jesus realmente havia ressuscitado é porque eles possuíam motivos bastantes políticos para isso:

"Após a execução de Jesus, seus seguidores se dispersaram, perturbados pela dor e temendo por suas próprias vidas. A maioria assumiu que seus inimigos estavam certos – o movimento morrera com seu mestre. De repente, notícias surpreendentes eletrizaram o grupo. Lucas diz terem ouvido que “O Senhor ressuscitou, de fato, e apareceu a Simão [Pedro]!” (Lc 24:34). O que ele disse a Pedro? O relato de Lucas sugere aos cristãos das gerações posteriores que ele nomeou Pedro seu sucessor, outorgando-lhe a liderança. Mateus diz que, durante a vida, Jesus já havia decidido que Pedro, a “pedra”, seria o fundador de sua futura instituição. Apenas João sustenta que o Cristo ressuscitado teria dito a Pedro que ele deveria tomar o lugar de Jesus como “pastor” do seu rebanho".

E acrescenta:

"Qualquer que seja a verdade sobre essa declaração, não é possível verificá-la nem refutá-la apenas com argumentos históricos. Possuímos apenas testemunhos indiretos de fiéis que afirmam e céticos que negam. Contudo, o que temos como fato histórico é que determinados discípulos – Pedro, em especial – sustentaram que a ressurreição aconteceu. E, mais importante, sabemos o resultado: logo após a morte de Jesus, Pedro assumiu o grupo como líder e porta-voz. Segundo João, ele recebera autoridade da única fonte reconhecida pelo grupo – do próprio Jesus, falando agora além do túmulo". (PAGELS, 2006, p. 6-7).

Pagels faz um outro comentário interessante:

"O estudioso alemão Hans von Campenhausen diz que como “Pedro fora o primeiro para quem Jesus aparecera após a ressurreição”, tornara-se o primeiro líder da comunidade cristã. [...] as igrejas ortodoxas que buscam sua origem em Pedro desenvolveram a tradição – sustentada até hoje pelas igrejas católicas e algumas igrejas protestantes – de que foi Pedro “a primeira testemunha da ressurreição”, e por isso o líder de direito da igreja".

E acrescenta outro comentário mais interessante ainda:

"É possível contradizer a afirmação de Vampenhausen com base em evidências do Novo Testamento: os evangelhos de Marcos e de João nomeiam ambos Maria Madalena, e não Pedro, como a primeira testemunha da ressurreição".

Na verdade, o evangelho de Marcos só coloca Maria Madalena como aquela que, junto com duas outras “testemunhas” do sexo feminino, descobriram o “Túmulo Vazio”. A aparição do Jesus ressurreto as mulheres é um acréscimo posterior. Em todo o caso, o que vemos em Marcos (e que foi copiado em João) é uma aversão do autor as tradições das aparições do Jesus ressuscitado, talvez exatamente porque o autor do evangelho de Marcos já havia notado as implicações políticas que a mesma já tinha. De fato, o que deduzimos da criação redacional do Túmulo Vazio é uma tentativa de obscurecer a tradição das Aparições do Jesus ressuscitado.
Méier (1998, p. 199) faz o seguinte inventário:

"[No que se refere a menção as três mulheres em Mc 16,1 e Lc 24,10] Hengel [...] vê na lista de três testemunhas femininas um fenômeno também observado na lista de Pedro, Tiago e João como núcleo dos Doze nos sinópticos e na de Tiago, Cefas [Pedro] e João como os três pilares da comunidade de Jerusalém em Gl 2,9. Nesse sentido, Hengel sugere que a lista de três mulheres, sempre encabeçada por Maria Madalena, talvez indique autoridade ou prestígio na primitiva comunidade cristã".


Da mesma forma que a “tradição” do Túmulo Vazio não pode ser desvinculada das três mulheres que foram as primeiras a descobrirem os indícios da ressurreição de Jesus, a tradição das Aparições do Jesus ressuscitado não pode ser desvinculada dos três grandes líderes do cristianismo primitivo.

Desse modo, não apenas Paulo contesta a autoridade dos “Três Pilares”, alegando a alegação de sua “aparição” do Jesus ressuscitado para si mesmo, mas também Marcos, antecedendo e ao também antagonizando as aparições de Jesus ao usar as três mulheres no relato da ressurreição. Como se vê, isso se coaduna perfeitamente com os objetivos literários de Marcos.
A busca por uma suavização, ou mesmo uma destituição total da autoridade apostólica dada pela ressurreição, de forma parcial, específica ou geral, não parou em Marcos, e muito menos teve inicio em Paulo. De acordo com Pagels (2006, p. 7):

"No início do século II, os cristãos compreenderam as possíveis conseqüências políticas de terem “visto o Senhor ressuscitado”: em Jerusalém, quando Tiago, irmão de Jesus, disputou, com êxito, a autoridade com Pedro, uma tradição manteve que Tiago, e não Pedro (e com certeza tampouco Maria Madalena), fora a “primeira testemunha da ressurreição”".

De fato, enquanto Pedro se firmava como autoridade na igreja primitiva por causa da primazia na ressurreição, Tiago tentava enfatizar a sua importância por causa de sua revelação e de seu laço de sangue com Jesus, e Paulo corria atrás da mesma autoridade ao afirmar que o “Senhor” havia aparecido a ele também. Marcos, por sua vez, crítico ferrenho de Pedro, João e Tiago (incorporado, em seu evangelho, como filho de Zebedeu e não como o “Irmão do Senhor”), tenta minar essa autoridade destacando mulheres no sepulcro e omitindo por completo as aparições .
Crossan (1995. p. 236) faz a seguinte declaração:

"O que ressalto deste texto (de 1 Co 15,3b-11) [...] são as suas profundas implicações políticas. Eles não estão primariamente interessados em transe, êxtase, aparição ou revelação, mas em autoridade, poder, liderança e prioridade".

Paulo, em 1Co 15 versículo 10 alega que trabalhou “muito mais do que todos eles”, ou seja, do que todos a quem o Jesus ressurreto havia aparecido. Por essas razões, Paulo se considerava apóstolo tal ou até mais do que Pedro, Tiago e os demais. Paulo enfatiza tais aparições não para ressaltar o aspecto sobrenatural da religião cristã, mas para se designar como alguém chamado e escolhido por Deus e por Jesus para tomar um papel de liderança na igreja primitiva. De fato, Paulo se mostrou muito interessado em igualar a sua experiência do Jesus ressuscitado com aquelas de todos os outros antes dele.

Crossan (1995, p. 237) afirma que “não pode haver dúvidas de que a própria experiência de Paulo envolveu o transe, aquele estado alterado da consciência bem conhecido em todas as religiões do mundo”, de modo que “Paulo precisa, em 1 Coríntios 15,1-11, igualar a sua própria experiência com aquela dos apóstolos precedentes – igualar, bem entendido, a sua validade e legitimidade, mas não necessariamente o seu modo ou maneira”.

Paulo não apenas contestou a autoridade de Pedro e Tiago (que a baseavam em supostas aparições do Jesus ressuscitado) enfatizando sua própria experiência, mas também usa um número bastante ampliado (“mais de quinhentos”) de pessoas que também viram Jesus ressuscitado. De fato, este era um excelente argumento a favor Paulo para tornar a situação política mais favorável para si mesmo.

Pagels também faz outra afirmação interessante para os propósitos aqui:

"Essa teoria – de que toda autoridade precede da experiência do Cristo ressuscitado por determinados apóstolos, uma experiência agora para sempre concluída – possui grande implicações para a estrutura política da comunidade. Primeiro, como aponta o estudioso alemão Karl Holl, restringe o círculo de liderança a um pequeno grupo de pessoas cujos membros estão em posição de autoridade incontestável. Segundo, sugere que apenas os apóstolos têm direito a ordenar futuros líderes como sucessores".

Se os itens listados acima se aplicam para a comunidade cristã nos seus mais antigos primórdios (como a autora prova), podemos deduzir que as alegadas aparições do Jesus ressuscitado, apesar de serem provenientes de tradição antiga, como atesta 1Co 15, não são tão antigas a ponto de remontarem aos dias posteriores a morte de Jesus. Como tais aparições possuíam fortes implicações para a estrutura política das comunidades, é lógico que se pode deduzir que as mesmas (ou grande parte, e mesmo a maior parte delas) tiveram origem muito tempo depois da morte de Jesus, ou seja, quando as comunidades cristãs já estavam formadas e quando já possuíam um considerável número de membros.

De fato, 1Co 15:5-9 não deixa implícito que tais aparições tenham ocorrido nos dias posteriores a alegada ressurreição de Jesus.

Da mesma forma que em Paulo, muitas das aparições descritas nos evangelhos não se limitam a apenas enfatizar o caráter sobrenatural de Jesus e do início do movimento cristão, mas também para mostrar a determinada comunidade de cristãos que certo apóstolo possuía mais proeminência e autoridade que o outro.
De acordo com Crossan (1995, p. 242):

"As aparições em ascensão nos evangelhos nada têm a ver, absoltamente, com as experiências em êxtase ou revelações em transe. São encontradas em todas as religiões do mundo, e pode muito bem ter havido muitas delas na cristandade inicial. Contudo, não é isto que está sendo descrito naqueles últimos capítulos dos evangelhos. São questões de autoridade que estão sob discussão, ali. Há um grupo de liderança dentro da comunidade? Deverá haver alguém encarregado da comunidade e do grupo? Que tipo de pessoa deve ser? Quem deverá ser? As respostas vêm do que o Jesus ascendido diz e, especialmente, para quem o Jesus ascendido fala".

Lucas 24:12 narra que Pedro correu até o túmulo de Jesus e, olhando para dentro, o viu vazio, apenas com os lençóis. E depois “voltou pra casa, admirado do que acontecera”.
Lucas 24:33-35 nos diz que “O Senhor ressuscitou de verdade e apareceu a Simão [Pedro]”. Note que Lucas, apesar de não narrar essa aparição, mas somente a alude de forma vaga na boca dos discípulos, coloca Pedro como o primeiro a ver o “Senhor”.

Crossan (1995, p. 240) faz um comentário interessante:

"[...] suponha que você pertencesse a uma outra comunidade ou tradição cristã, que conhecesse muito bem aquela ênfase na liderança de Pedro, mas que desejasse a ela opor-se em favor do seu próprio líder específico. Como fazer isto? Aqui está como João o faz, em favor, como seria de esperar, do não nomeado Discípulo Amado, depois que Maria Madalena relata sobre o túmulo vazio: Pedro e o outro discípulo partiram em direção ao túmulo. Os dois corriam juntos, mas o outro discípulo passou à frente de Pedro e chegou ao túmulo primeiro. Ele curvou-se para olhar lá dentro e viu os lençóis de linho sozinhos, mas não entrou. Então, Simão Pedro veio, seguindo-o, e entrou no túmulo. Ele viu os lençóis de linho abandonados e o pano que cobria a cabeça de Jesus, não junto com os lençóis, mas enrolado num local em separado. Então o outro discípulo, que chegara ao túmulo primeiro, também entrou, e vendo, acreditou." (João 20,3-8, grifos de Crossan).

Logo mais Crossan (op. cit.) ressalta que “a corrida para o túmulo tornou-se um duelo de autoridade”. O autor do Evangelho de João faz Pedro entrar primeiro, conforme Lucas 24:12 exige. Mas diz que o Discípulo Amado acredita. Ele não diz que Pedro acredita ou não acredita, mas enfatiza que o Discípulo Amado o fez.

De fato, “como poderiam aqueles que preferiam a liderança de Pedro reagir contra essa narrativa?” (op. cit.). O que aconteceu foi que, tal como fizeram com Marcos, cristãos posteriores acrescentaram no evangelho de João, que terminada no capítulo 20, mais um capítulo. O capítulo inteiro é sobre a aparição do Jesus ressurreto no mar de Tiberiades. Pedro é o personagem principal desse capítulo. De fato, Pedro é colocado acima do Discípulo Amado.

Da mesma forma como Pedro nega Jesus três vezes em João 18:15-18,25-27, aqui, no capitulo 21, versículos 9,15-17 do evangelho de João, mais uma vez diante de uma “fogueira”, ele reafirma Jesus três vezes. Pedro, então, é encarregado de “apascentar” os cordeiros e as ovelhas de Jesus, isto é, a comunidade geral e o grupo de liderança da igreja. De fato, podemos perceber disputas políticas influenciando até mesmo na confecção dos evangelhos! E o mais interessante é que a mesma disputa que Paulo já praticava nos anos 50, é a mesma que aparece nos anos 80-90 (Lucas), em João (100-110) e nos séculos seguintes (Capítulo 21 de João).

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