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sábado, 10 de maio de 2008

O nascimento divino de Cristo

O nascimento divino de Cristo
by Charles Coffer Jr.


De acordo com Vermes (2006b), quando o cristianismo primitivo passou do ambiente judaico para o ambiente helenistico-romano, a expressão “Filho de Deus”, que significa apenas aquele que segue a Deus, ou um homem santo, que anda com Deus, que tem o Espírito (Santo) de Deus, ganhou conotações de semi-divino, ou seja, alguém nascido de um Deus, ou seja, um semi-deus, um herói, ou propriamente um deus, um importante aspecto sobre este último deve ser enfatizado.

Achtemeier (apud CORNELLI, 2003) destaca que o chamado theios ander (homem divino), conceito bastante comum na antiguidade e no contexto histórico em que o imaginário cristão primitivo estava inserido, possui determinados padrões, nos quais a imagem de culto de Jesus Cristo também está inserida:

As características do theios ander (homem divino) podem ser brevemente resumidas: um nascimento maravilhoso, uma carreira marcada pelo dom de uma linguagem persuasiva e dominadora, a capacidade de fazer milagres, incluindo curas e adivinhações, e uma morte de alguma maneira extraordinária. Com essas características, praticamente todo filósofo ou exorcista seria um candidato [...]. Mas seja designando “herói”, seja designando theios ander, este grupo de conceitos representava uma maneira de compreender homens extraordinários nos termos de sua relação com a divindade, e nesse sentido, pode ser uma ferramenta útil para a pesquisa sobre o desenvolvimento do NT (Novo Testamento bíblico).

Desse modo, podemos classificar o perfil dos “homens divinos” da seguinte forma:
  • Um nascimento maravilhoso;
  • Uma carreira marcada pelo dom de uma linguagem persuasiva e dominadora;
  • A capacidade de fazer milagres (incluindo curas e adivinhações);
  • Uma morte de alguma maneira extraordinária.

Não somente Jesus Cristo, mas também várias figuras mitológicas e lendárias do passado greco-romano se enquadram nesse perfil.


Brocher (apud AUERBACH, 1998, p. 75) nos apresenta características gerais do “herói” no mundo antigo, as quais possuem paralelos com os mitos em torno de Jesus:

O herói é um homem dotado de mais força, inteligência e coragem que os outros homens. Ele realiza façanhas das que os demais são incapazes. Conquista a glória e provoca a inveja. Estes privilégios, ele os deverá pagar. A idéia de que o herói compra sua grandeza ao preço de sua própria vida acha-se encarnada no mito de Aquiles. O filho de Peleu recebeu a opção, assim nos foi dito, ou de uma vida longa e obscura, ou de uma vida curta e gloriosa. Ele preferirá esta última e perece, na flor da idade, sob os muros de Tróia após haver realizado proezas imortais. [...] Chegamos assim a classificar os acontecimentos da vida do herói em duas categorias: uns, exaltando sua força e sua glória; outros, pelo contrário, seus crimes, humilhações e sofrimentos, que constituem a contrapartida dos primeiros. Enviados pelos deuses, estes acontecimentos testemunham verdadeira perseguição exercida contra o herói. Desta maneira, o oráculo que anuncia o nascimento do herói e demonstra, assim, que os deuses se interessam por ele, prevê ao mesmo tempo os desastres que lhe ocorrerão.

Desse modo, Jesus possui as seguintes características em comum com os heróis citados no texto acima:

  • Ele é dotado de atributos incomuns e realiza façanhas das quais os demais são incapazes de realizar;
  • Na mesma medida em que conquista a glória, provoca a inveja;
  • A vida do herói se caracteriza por uma dialética entre exaltação de sua glória, de um lado; e seus (supostos) crimes, humilhações e sofrimentos, por outro lado;
  • Sempre há um sinal, na narrativa de seu nascimento, que indica que o herói é foi enviado pelos deuses;
  • Existe uma dialética no anuncio do nascimento do herói entre o fato de que o oráculo demonstra que os deuses se interessam por ele e o fato de que esse mesmo oráculo prevê os desastres que lhe ocorrerão.


Nesse contexto, a morte do herói ganha status cósmicos, caracterizando-se como o ato apoteótico de sua vida. Tal como Jesus, César, ao ser queimado depois de assassinado, foi visto sendo elevado aos céus.

Tal como o nascimento de Jesus Cristo, o nascimento de César Augusto também foi envolto de características maravilhosas.

Crossan (2004, p. 67) comenta que:

No livro Vida dos Césares, escrito durante o primeiro quarto do século II, o historiador Suetônio relata a concepção de Otávio, futuro Augusto. Esta concepção divina aconteceu mais de meio século antes da de Jesus. Enquanto se prepara para narrar a morte do imperador, Suetônio faz uma pausa para registrar os presságios que indicavam seu grande destino no nascimento e na vida, bem como na morte. Eis como sua mãe, Ácia, o concebeu (rolfe, v.1, pp. 264-267):

“Quando Ácia veio no meio da noite para o serviço solene de Apolo, sua liteira foi colocada no templo e ela caiu no sono, enquanto as outras matronas também dormiam. De repente, uma serpente deslizou até ela e logo depois foi embora. Quando acordou, ela se purificou, com depois dos abraços do marido, e imediatamente apareceu-lhe no corpo certa marca em cores igual a uma serpente da qual ela não conseguiu se livrar; por isso, logo ela deixou de ir aos banhos públicos. No décimo mês depois disso, Augusto nasceu e foi, assim, considerado filho de Apolo” (Augusto Divinizado, 94,4).

De fato, tais atribuições acerca da natividade de Otávio foram-lhe imputadas somente muito tempo depois de seu nascimento, quando seus feitos deram a razão para o imaginário popular acrescentar essa lenda à sua vida.

O mesmo se aconteceu na vida de Jesus. Existe uma influência “gentílica” na questão do nascimento virginal por dois fatores:

Primeiro: Jesus é claramente dito como filho de José no evangelho de Marcos, que é a fonte original dos outros sinópticos. Nele não há descrição de um nascimento virginal, o que mostra que, ao menos originalmente, essa história não tinha ênfase.

Segundo: para quem conhece mitologia, existem diversos heróis que são filhos de deuses e humanas, como Hércules, Aquiles e Perseu, só para citar alguns, além de que até mesmo alguns personagens reais, como Alexandre já foi considerado como filho de um deus (no caso, Apolo), embora todo mundo soubesse que seu pai era o famoso rei Filipe da Macedônia! E, sem falar, que os próprios imperadores romanos eram transformados em deuses após a sua morte (fato conhecido como "apoteose"). Essa tradição do deus-homem vem do Egito, pois o faraó considerava-se descendente dos deuses.

Para que Jesus fosse considerado como o "Filho de Deus" para os gentios, idéia que faria mais sentido para eles do que o "Messias" judaico (e sendo aquele, na verdade, uma extrapolação deste conceito anterior), ou seja, um Herói (semi-deus) no conhecido conceito greco-romano, teria que ter nascido, pois, da união de um deus com um humana, no caso, concebido por Maria por meio do Espírito Santo (uma das figuras trinitárias). De fato, isso é foi uma forma de se helenizar o mito do "Messias" judaico.

De acordo com Ginzburg (2001, p. 105), somando com o paralelo pagão, a concepção sobre o nascimento virginal de Jesus foi corroborada por um erro deliberado de tradução do texto de Isaias 7.14, da língua hebraica para a grega, realizado por um grupo de setenta estudiosos, a mando de Ptolomeu II, para que o auxilio dos judeus que falavam grego. Ela foi traduzida peça por peça em Alexandria, Egito, entre o anos de 250 e 150 a.C.

A palavra hebraica “almah”, que significa jovem, foi traduzida para o grego partenos, que significa virgem. Desse modo, “transformava uma predição normalíssima, embora formulada no contexto de um discurso talvez messiânico (“Eis que a moça conceberá e dará a luz um filho”), numa profecia sobrenatural (“Eis que a virgem conceberá e dará a luz um filho”). Desse modo, um erro de tradução se transforma em um dos mais marcantes episódios da vida de Jesus, o seu nascimento virginal, onde Maria, recém casada com José, mas inviolada, concebe e dá a luz a Jesus.

Stendahl (apud GINZBURG, 2001, p. 107) afirma que “na história da natividade, todo o contexto parece ter sido construído a partir de um núcleo – as citações – que, do ponto de vista do desenvolvimento, atuou como um germe”.

Não apenas as questões ligadas ao messianismo e ao nascimento de Jesus foram transformados para moldar a figura de Cristo, mas também diversos outros aspectos que caracterizam a vida e os feitos de Jesus, os quais não possuem valor histórico, mas são elementos imaginários incorporados.

Uma análise dos relatos sobre o nascimento de Jesus vistos em Mateus e Lucas revela alguns pontos complexos e contraditórios. O primeiro problema já complicado aparece nas genealogias de Jesus. Segundo Mateus, José é filho de Jacó (Mt 1,16). Já para Lucas, José é filho de Eli (Lc 3,24). E a discordância na lista não termina aí. Ademais, qual é o real interesse em se falar sobre a árvore genealógica masculina de Jesus se José, de fato, não é o pai dele?

Os problemas, no entanto, só começaram. No relato de Mateus, José e Maria se encontram em Belém, tendo que fugir para o Egito por conta da perseguição de Herodes. Após a morte de Herodes eles retornam à Palestina. Desta feita, com medo de Arquelau acabam indo para Nazaré, de acordo com um dito profético não encontrado em nenhuma parte das escrituras: ele será chamado Nazareno.

Já no relato de Lucas, José e Maria moram em Nazaré. Eles vão para Belém apenas por conta do recenseamento sob Quirino, governador da Síria. Neste relato, eles levam o menino após o nascimento em Belém até Jerusalém e depois retornam para a cidade de Nazaré.

Vamos cruzar historicamente os dois relatos então. O primeiro recenseamento sob Quirino ocorreu no ano de 6 ou 7 d.C. Herodes, no entanto, morreu em 4 a.C. Neste sentido, ou Jesus nasceu na época do censo em Quirino e então Mateus está equivocado em 10 anos ou senão é Lucas quem está com um erro em 10 anos.

De acordo com Crossan (1994, p. 410), este censo nunca ocorreu. E mesmo, supondo a hipótese de tal evento, Crossan enfatiza que:

As pessoas eram recenseadas, de acordo com o costume romano, em seu local de domicílio ou trabalho, e nunca no lugar em que nasceram. Isso é uma questão de senso comum. O objetivo do senso era a taxação; registrar as pessoas no seu local de origem, ao invés de no lugar em que trabalhavam, seria o pesadelo de qualquer burocrata (op. cit.).

No que se refere à credibilidade histórica dessas passagens, Zuurmond (1998, p. 108) afirma que: “seria difícil tirar outra conclusão senão esta: que a credibilidade dessas narrativas é nula. [...] Os evangelistas, cada um de seu modo, cuidam de harmonizar esses prelúdios a sua concepção teológica. São narrativas com teor querigmático, não relatos históricos”.

De fato, uma leitura seqüencial dos evangelhos normalmente nos impede de não perceber com clareza os pontos que não se encaixam nos relatos. Enquanto lemos um texto após o outro, tudo parece se encaixar. No entanto, quando se faz uma leitura em paralelo, a coisa começa a ficar bem mais complicada.

Crossan, (1994, p.409) afirma que “A Concepção Virginal de Jesus e Da Linhagem de Davi [tal como apresentada nos Evangelhos bíblicos] não nos dão nenhuma informação biográfica sobre o Jesus histórico”.

No que se refere ao possível lugar de nascimento do Jesus Histórico, Koester (1995, p. 54) afirma que:

Alguns dados externos da vida de Jesus são visíveis como blocos irregulares da tradição. Ele deve ter vindo da cidade galiléia de Nazaré, no norte da Palestina, onde nasceu e cresceu (seu nascimento em Belém é uma ficção teológica posterior que procurou ligar Jesus à cidade de Davi).

Vermes (1996, p. 13) também comenta nesse sentido:

Jesus viveu na Galiléia, uma província governada, no decorrer de sua vida, não pelos romanos, mas por um filho de Herodes, o Grande. Sua cidade natal foi Nazaré, um lugar insignificante que não mereceu referências de Josefo, do Mishnah, nem do Talmude, e cuja primeira menção fora do Novo Testamento é uma inscrição de Cesaréia datada do século III ou IV. É incerto se ele nasceu em Nazaré ou alhures. De todo modo, a lenda de Belém é altamente suspeita.

Desse modo, devido ao fato de Jesus ter vivido na Galiléia, aos seus discípulos serem chamados de nazarenos, devido às insolúveis contradições dos relatos sobre o nascimento nos dois evangelistas, bem como da necessidade de se associar Jesus à descendência de Davi para lhe conferir autoridade nas prerrogativas de o afirmarem como o Messias (elaboradas pelos primeiros cristãos) e buscando investigar histórica e logicamente a cerca da real verdade dos fatos, os historiadores chegaram à conclusão de que Jesus não nasceu em Belém, mas que tais relatos são lendas oriundas das tradições e imaginários populares em face a hermenêutica utilizada nas Escrituras Hebraicas.

De fato, existe uma tradição oral por trás do relato do nascimento de Jesus em Belém, a qual ultrapassa o plano escrituristico das Escrituras judaicas e se estabelece no terreno que mais interagiu com a tradição oral popular: a hermenêutica bíblica:

[...] a tradição dizia que o messias deveria nascer em Belém e sua linhagem era da família real de Davi (Lc 2 e Mt 2). Sabiam que toda a vida do mestre tinha sido vivida como judeu fiel que reconhecia nas Escrituras a suprema autoridade, fonte primeira das práticas, observações e interpretações inovadoras. Todo esse quadro literário sedutor não pode ter sido mera criação lendária vinda da imaginação fértil do escritor. Mas elas foram redigidas a partir de tradições vivas já existentes (e pré-cristãs) e que circulavam oralmente em histórias e contos populares, até serem adaptadas à redação final do NT (Novo Testamento) e à nova crença. (SCARDELAI, 1998, p. 232)

Scardelai (1998, p. 59) nos esclarece que:

A antiga idéia da realeza davídica fez ressoar às suas margens uma narrativa lendária sobre o nascimento do messias que, ao que tudo indica, prevalecia entre as mais conhecidas tradições judaicas do século I da era cristã. Diz a lenda que no mesmo instante em que o Templo de Jerusalém estava sendo arrasado pelos romanos ocorria o nascimento do messias, filho de Davi, na cidade de Belém. [...] Até o momento em que essa história fora transmitida oralmente, provavelmente desde o século I, ela sofreu variações literárias posteriores a fim de se ajustar às tradições compostas.

Tal tradição popular, que mais tarde serviu de base para a criação das narrativas da infância de Jesus apresentadas nos evangelhos bíblicos, reflete tanto o medo que os judeus tinham em relação à destruição do Templo (símbolo do culto e da religião judaica) como da esperança de que Deus iria os salvar naquele momento, enviando o seu messias.

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