Considerações iniciais
Inicialmente, gostaria de
agradecer ao Informador de Opinião pela ênfase dada a esta questão e pelo
interesse em discuti-la: a questão da confissão, ou arrependimento, dos pecados
coletivos.
Também ressaltamos não ser nosso
objetivo esgotar o assunto, nem parecermos os “donos da verdade”: nossa
concepção de verdade dentro de um contexto argumentativo é meramente
coerentista e não metafísica. O objetivo é alcançar um consenso, o qual poderá
ser modificado em qualquer época, inclusive abandonado por completo, através de
novas descobertas e da própria evolução do conhecimento. Portanto, as
conclusões apresentadas nesse texto longe estão de configurar-se a “verdade
última” acerca da questão abordada.
Lembramos que o presente texto
foi escrito “às pressas” (decorrente das várias ocupações que inquietam o
autor) e que, portanto, trata-se muito mais de uma síntese do que uma abordagem
abrangente.
Pois bem, como já afirmamos
noutras ocasiões, o batismo de João Batista constitui o ponto axial da tradição
de Jesus, o que certamente indica que significou um momento decisivo na vida de Jesus. Jesus, tendo nascido
em Nazaré na Galileia, por razões ainda obscuras, faz uma caminhada para o sul
rumo ao Jordão com a finalidade de ser batizado por João Batista.
O batismo de João Batista tinha várias funções. Além de um caráter
escatológico que ultrapassava a esfera individual, entre essas funções
destacava-se a seguinte: sinalizar o arrependimento, purificar o ser dos
pecados, incidir no processo total de expiação e iniciar o neófito dentro do
movimento.
Contudo, a submissão de Jesus ao
batismo de João Batista é uma questão que gera polêmica, pois pode levar a
interpretações que comprometem a integridade da cristologia tradicionalista a
qual concebe Jesus como um ser imaculado e que, portanto, não precisava
submeter-se a um ritual de purificação e expiação de pecados.
1) Assim, de um lado existem
aqueles que, mesmo aceitando que Jesus foi batizado em um batismo para “perdão
dos pecados”, acreditam que Jesus submeteu-se ao batismo por razões distintas a
essa, já que, como a encarnação da divindade hebréia, não possuía pecados a
serem remidos. Esta é a posição dos evangelistas, que apresentam diversas
justificativas para o fato de Jesus ter se submetido ao batismo.
2) Por outro lado, existem aqueles
que não veem dificuldade em associar as intenções pessoais de Jesus à
finalidade intrínseca do batismo, que é a obtenção do perdão dos pecados.
Assim, chegam à conclusão lógica de que Jesus era ou se considerava um pecador
e, por este motivo, precisou submeter-se ao batismo de João.
3) Por último, também existem aqueles
que, ainda que não admitam, por razões históricas, que Jesus era a encarnação
da divindade hebréia e que por isso não possuía pecados a serem remidos,
afirmam que a submissão de Jesus ao batismo não é indicativo de sua consciência
pessoal sobre a necessidade de obter remissão de seus pecados. Estes proponentes
alegam que o batismo de João possuía um caráter escatológico que ultrapassava a esfera individual, sendo um símbolo do
arrependimento coletivo nacional de Israel. Ao alegarem isso, afirmam que qualquer
indivíduo (incluindo Jesus) poderia acessar o batismo pautando-se não em uma
consciência particular voltada ao perdão de seus pecados individuais, mas
visando sinalizar a necessidade de redenção coletiva de Israel.
A hipótese do arrependimento coletivo
J. P. Meier, entre outros, é o
principal defensor da terceira vertente, que defende a chamada hipótese do
“arrependimento ou confissão coletivo”. De acordo com Meier, João Batista
dirigiu-se a toda a nação de Israel, chamando-os para uma reconstituição
radical de Israel à luz da sua iminente futuro escatológico. Desse modo, o
chamado era para que as pessoas respondessem como uma nação, não exatamente
como indivíduos.
Assim, ainda que respondessem
como indivíduos para terem seus pecados individuais perdoados, muitos poderiam
responder por um senso pessoal de responsabilidade para com o estado de Israel.
Por isso, muitas das pessoas em Israel que seriam consideradas fiéis poderiam
responder a partir de uma crença e desejo de João reconstituído Israel. Desse
modo, Jesus poderia submeter-se ao batismo não para receber o “perdão de seus
pecados” individuais, mas para reconhecer o pecado de Israel e comprometer-se a
fazer o que pôde para que isso acontecesse.
Ao argumentar desta forma, Meier apresenta
alguns indícios:
1) Existe um abismo cultural e
religioso que separam o batismo moderno, de caráter unicamente individual (ou
seja, voltado à purificação do que ele chama de “pecadilhos”, atos ou unidades
de condutas recordáveis que transgridem as leis de Deus) do batismo antigo, de
caráter coletivo;
“A confissão dos pecados no
antigo Israel não significava um longo rol de pecadilhos pessoais, o que faria
a adoração a Deus transformar-se em uma reflexão narcisista sobre o indivíduo”
(MEIER, 1996, p. 156).
Desse modo, seria anacrônico
afirmar que a submissão de Jesus ao batismo voltava-se ao perdão individual, já
que a preocupação soteriológica em sua época incidia sobre povos inteiros,
diferente da “perspectiva posterior”, agostiniana e luterana, de aquisição de perdão
individualista.
2) Um argumento dependente do
exposto acima é o de que na Israel pronunciada por Meier, cada indivíduo é
considerado pecador apenas por fazer parte desse povo, tendo ou não cometido
pecados na esfera individual.
Nesse sentido, Meier afirma que: “Mesmo
independente da questão dos pecados pessoais do indivíduo, cada um era parte
dessa história de pecado apenas por pertencer àquele povo” (p. 156).
3) Em seguida, Meier expõe, com o
fim de corroborar essas ideias, passagens das Escrituras judaicas e do grupo de
Qumrã em que a confissão individual dos pecados visava a apresentação dos
pecados à nível coletivo do povo de Israel. Para isso, apresenta as preces
confessionais de Esdras (Esd. 9.9-15; Ne. 9.6-37) e no ritual de entrada da
comunidade de Qumrã (1QS 1,18-2,2).
Ambos os textos falam sobre a
confissão dos pecados da nação como um todo, incluindo os pecados ancestrais e
hodiernos, sem a preocupação de expor falhas e pecados pessoais, mas em
confessar que pertencem a um povo pecador, de modo que o pedido de perdão dos
pecados seja dado por Deus a todos, coletivamente.
Desse modo, Meier afirma que o
simples fato de Jesus ser batizado não indica que se considerava um pecador, no
sentido de ter consciência individual de seus pecados pessoais, já que este
batismo está sujeito a uma série de interpretações que não permite adentrar a
consciência de Jesus sobre se ele se considerava um pecador ou não (MEIER, p.
159).
Analisando a hipótese do arrependimento coletivo
Em primeiro lugar, deve-se
abordar o grau de abrangência ou relativização da hipótese do arrependimento
coletivo. Ressalta-se, desde logo, que o objeto da argumentação é relativo, já
que a coletividade do perdão era apenas uma possibilidade, não uma regra. O
próprio Meier reitera isso ao afirmar que “muitas vezes...” (p. 156) a
confissão dos pecados era vista sob uma perspectiva coletiva, o que significa
que “algumas vezes” ou “outra vezes”, ou ainda “outras muitas vezes”, a
confissão dos pecados era vista sob uma perspectiva individual. Meier também
usa a expressão “em alguns casos..”, “talvez...”, entre outros termos
relativizantes, para fazer referência a hipótese da confissão dos pecados
coletivos do povo, o que indica que a ocorrência da mesma não é uma regra.
Em segundo lugar, deve-se
ressaltar que a confissão individual não torna, necessariamente, uma “reflexão
narcisista sobre o indivíduo”. Ao contrário do que afirmou Krister Stendahl, a
“consciência introspectiva” não é uma invenção ocidental, mas já estava presente
no antigo Israel. É exatamente esta consciência que fez (entre os antigos
hebreus) e ainda faz com que cada um, individualmente, sinta-se responsável por
suas ações e queiram, particularmente, trilhar os caminhos das leis divinas.
Muitos pensadores juristas da
atualidade são incisivos em afirmar que o modelo orgânico funcional dos
tribunais, em que cada indivíduo é responsabilizado, individualmente, por seus
próprios atos, tem fortes raízes judaico-cristã, existindo de modo independente
na Antiguidade Oriental (povos do antigo Oriente Próximo) e Clássica (Grécia e
Roma).
Além disso, pode-se argumentar em
prol de uma concepção individual dos pecados no antigo Israel. Diversas
passagens enfatizam a responsabilidade individual sobre o pecado, sejam neotestamentários
(Rm. 5.12, 6.23; 1Jo. 1.10), entre outras, ou veterotestamentárias. Por
exemplo, para o autor do livro de Ezequiel a ideia da individualidade do pecado
estava clara quando escreveu que:
“A alma que pecar esta morrerá. O
filho não levará a iniquidade do pai, nem o pai a iniquidade do filho; a
justiça do justo ficará sobre ele e a perversidade do perverso cairá sobre
este” (Ez. 18.20).
Portanto, os judeus da
Antiguidade possuíam uma ideia clara de que a responsabilidade do pecado era
individual e, portanto, intransferível. A confissão coletiva do pecado em nada
invalidava ou desarticulava o caráter individual do pecado. Até mesmo porque a
formação coletiva do pecado depende, inteiramente, da prática individual do
pecado.
Vale lembrar que a noção de
pecado surgiu na consciência israelita não da coletividade para a
individualidade, mas sim a partir da individualidade para a coletividade. Portanto,
a bipolarização da questão, em “coletividade = antiguidade” e “individualidade
= modernidade”, não condiz com a realidade histórica e não resolve os problemas
levantados pela questão.
O sentido do batismo para remissão e da confissão dos pecados
Em terceiro lugar, não se pode
confundir duas categorias distintas, quais sejam “a confissão dos pecados” e o
“ritual para purificação dos pecados”. De acordo com o texto de Marcos 1.5:
“E apareceu João Batista no
deserto // pregando batismo de arrependimento [baptisma metanoias] // para
remissão de pecados [eis aphesin amartiôn]”.
Logo em seguida é dito que:
“E eram batizados no rio Jordão
por ele [baptizonto up’ auton] // confessando seus pecados [exomologoumenoi tas
armatias autôn]...”.,
Vê-se então a presença de quatro
elementos:
a) O batismo (o ato)
b) O perdão/remissão dos pecados
(o fim)
c) O arrependimento (elemento
interno)
d) A confissão (elemento externo)
O batismo constitui um ato
físico; o arrependimento, um ato interno. Já a confissão constitui um ato de
exteriorização. A finalidade é alcançar o perdão/remissão, ou seja, o efeito
mágico.
Em geral o arrependimento é
pré-requisito para o batismo, necessitando deste para gerar efeitos, já que o
mero arrependimento não é capaz de por si só remir pecados. Contudo, não basta
apenas a combinação entre arrependimento e batismo: a confissão é necessária
para firmar o novo estado do ser e comprometimento diante das demais pessoas
submetidas a este processo.
Por outro lado, a confissão por
si só é inerte, sem o arrependimento e, principalmente, sem o batismo. Assim,
verifica-se que cada elemento exerce um papel holístico, isto é, harmônico,
integrando todo o processo, do início ao fim.
O elemento central desse processo
é o batismo. É através dele que a purificação pode ser alcançada. Trata-se,
portanto, de um ritual batismal, não de um mero ato confessatório.
Por isso, o argumento de Meier
pautado no poder analógico de seus exemplos acerca de confissão de pecados
coletivos é inconclusivo, pois se referem a momentos ou unidades de confissão
dos pecados desvinculados da prática batismal que envolve um processo que
começa no arrependimento e se finaliza na confissão. Na confissão dos exemplos
dados por Meier (ou seja, sem vínculos a rituais expiatórios como o batismo),
era lógico que os pecados da coletividade, de Israel como um todo, fossem ressaltados,
já que se trataram de momentos em que um indivíduo intercedia, através da
oração e da confissão, por todos simultaneamente – o que não foi o caso de João
Batista em seu batismo.
Além disso, deve-se frisar que a
natureza de ritual purificativos ou expiatórios como o batismo, são ampla e
reconhecidamente consagrados nas Escrituras judaicas e cristãs como rituais
individualistas, sendo que cada um responderia pelos seus próprios atos ao
serem submetidos ao rito. O fato de Jesus ter concedido, no imaginário cristão,
a redenção através de um único ato expiatório para a coletividade é exceção, ressalvando-se
que a própria crucificação de Jesus não teve, em si mesma, uma função explicitamente
expiatória (como quando se sacrificam animais...), mas foi usada como um tipo,
ou símbolo, dos rituais expiatórios judaicos.
Por isso, ainda que se cogite que
a confissão dos pecados no momento do batismo por João visava o perdão coletivo
e não individual, deve-se frisar que uma coisa é o batismo e outra coisa é a confissão
dos pecados. Dada à natureza individual do rito do batismo em João (Paulo
coletiviza em algumas passagens o rito do batismo, ao fazer analogia com a
morte e ressurreição de Jesus...), não há porque falar que todo o processo
visava o perdão da coletividade: o batismo poderia alcançar os pecados
individuais enquanto a confissão os pecados da coletividade.
Assim, embora a confissão tivesse
uma função de exteriorização do arrependimento e um papel coletivo, o ritual do
batismo de João era focado no indivíduo, já que cada pessoa, uma por uma,
deveria se arrepender e ser batizada.
Sobre a terminologia e acepções de “pecado”
Deve-se ainda discutir um ponto
interessante, acerca da definição que Meier concede à palavra “pecado”. Para
ele, trata-se de “ofensa a Deus, um abandono radical da fidelidade a Deus, uma
ação que rompe o relacionamento de uma pessoa com Deus”. No entanto, deve-se
reconhecer que esta definição é bastante genérica e, portanto, inadequada.
Os textos judaicos e cristãos
mostram que uma definição stricto sensu
é mais coerente, balanceando o pecado com outras categorias como atos ilícitos,
crimes e transgressões às leis. Ora, o conceito mais puro e primitivo de
“pecado” consiste na “transgressão ao mandamento divino”.
Afinal, a lei mosaica, a qual
todo judeu seguia na Palestina judaica do século I, visava regular o
comportamento individual do israelita/judeu. Por isso, conjuntos de mandamentos
nucleares daquela sociedade, como o Decálogo, apresentava injunções como “não
matarás, não darás falso testemunho, não adulterarás” etc., que poderiam ser
cometidos individualmente, caracterizando assim o pecado.
Assim, por exemplo, se um ateu
“mata”, ele estará transgredindo uma proibição não apenas moral ou legal, mas
também religiosa, já que a religião se apropriou daquela proibição que
originalmente tinha apenas teor moral, para consagrá-la como um mandamento
divino. Assim, embora aos olhos do ateu, ele mesmo se veria como um
transgressor da lei moral e legal, mas não da lei divina, o religioso veria
este ateu como um transgressor da lei divina.
Desse modo, não haveria
necessidade de “abandonar radicalmente a fidelidade a Deus” ou “romper
totalmente o relacionamento com a divindade” (situação bastante genérica) para
que um “pecado” se configurasse. Muitos judeus poderiam dedicar-se fielmente à
divindade e manter seu relacionamento com ela e ainda assim cometer alguns
pecados, consciente ou inconscientemente. Por isso, os rituais expiatórios eram
importantes para Israel: eram realizados para que a continuidade da fidelidade
e do relacionamento com a divindade não fosse quebrado com as práticas
reiteradas do pecado. Este é o motivo de existir certa periodicidade na
realização de tais rituais.
Assim sendo, o pecado pode melhor
ser definido como atos individuais que transgridem os mandamentos divinos expressos
em escritos sagrados ou supostamente existentes na consciência moral humana.
Tal definição nos conduz a um
ponto importante deste diálogo: acerca da naturalidade e espontaneidade da ocorrência
do “pecado” como “transgressão à lei divina”. Qualquer indivíduo do passado ou
hodierno, religioso ou não, que quisesse fazer um teste acerca da tipificação ou
enquadramento de suas próprias condutas a esses preceitos, perceberia que
facilmente transgredi-los-ia todo ou quase todo dia.
Exemplo: João é ateu e não
acredita na existência do pecado. Contudo, praticou o “falso testemunho”, o
qual, segundo o Decálogo, constitui pecado. Como o Decálogo integra aquilo que
se chama de “mandamentos divinos”, conclui-se que João ateu é um pecador, já
que transgrediu os mandamentos divinos. É claro que isso só ocorre na
mentalidade coletiva do religioso, como aos dos judeus e cristãos do século I, já
que não se pode provar a existência da divindade que criou aqueles mandamentos,
nem exigir que o ateu aceite tais crenças.
Aqui, abre-se um parêntese: há
muito se conhece que atos com teor meramente moral, como matar, roubar etc.,
são transformados em atos de teor teológico quando se considera que proibições
de ordem moral, como não matar, não roubar etc., são, na verdade, proibições
divinas.
No caso do “não matar”, há uma
proibição moral (até mesmo sociedades não-religiosas observam tal injunção),
uma proibição legal (no Brasil, por exemplo, essa conduta encontra-se
tipificada no art. 121 do Código Penal) e uma proibição teológica (o Decálogo
proíbe tal prática).
Por isso, a definição dada pelas
Escrituras, de que “todos pecaram” (no sentido não teológico, mas no sentido de
que pecar consiste em fazer o oposto do que determina as leis divinas), é
válida e certa, já que o ser humano possui tendência natural a cometer os atos
que foram tipificados como transgressões das leis judaicas – ainda que o
discurso cristão acerca da “divindade” e suas implicações seja nulo.
Assim, partindo das duas
premissas seguintes:
a) Pecado é a transgressão ao
enunciado das leis e mandamentos ditos divinas;
b) Tais transgressões, em geral, ocorrem
natural e espontaneamente no comportamento humano,
Pode-se afirmar, com certeza que,
“se” Jesus não foi um ser divino e imaculado (como a cristologia afirma...),
então Jesus foi um pecador (assim como eu, você e nós). Note que aqui não se
faz qualquer apelo a um ou outro pecado específico (como fizeram alguns
pesquisadores, ao afirmar que Jesus recorreu ao batismo de João com o fim de
obter perdão pelo pecado de contribuir para a manutenção de um sistema [o
romano] de exploração do judeu ao exercer seu ofício de carpintaria...), mas a
uma generalização natural do conceito, pois todas as pessoas que não sejam uma
divindade imaculada “pecou” – uma verdade que a própria Escritura afirma ainda
que não acreditemos no conceito cristão de pecado e suas implicações.
Exceções à hipótese do arrependimento coletivo da parte do próprio J.
P. Meier
Em último lugar, deve-se apontar
alguns detalhes importantes que permeiam a hipótese do arrependimento coletivo.
O detalhe mais importante é aquele no qual diz que não se pode meramente
“fugir” das implicações individualistas do batismo de João ao meramente
recorrer a um “arrependimento coletivo”.
Nesse sentido, o próprio Meier
confessa que, ao se submeter ao batismo, Jesus se comprometia em “mudar sua
vida” e assim “garantir sua salvação” (MEIER, p. 159). Apesar de Meier ser vago
nesse ponto, podemos fazer alguns apontamentos.
1) Ora, se Jesus se comprometia a
mudar sua vida, trata-se de uma mudança individual. Como a mudança, naquele
contexto, dizia respeito ao abandono do modo de vida considerado digno de ser
rejeitado por razões ético-religiosas, Jesus somente almejaria mudar sua vida
caso se considerasse uma pessoa que viveu uma vida “digna de mudança”. Mas,
deve-se indagar, por que desejaria “mudar de vida”? O que havia em sua vida
pregressa para que quisesse modificá-la?
Sem apelar para adivinhações
acerca de detalhes específicos, pode-se relacionar uma vida digna de mudança para
um religioso a uma vida de pecados - pecados no sentido que expomos aqui. Se
Jesus almejasse, em sua nova vida, dedicar-se mais a Deus, a pregar sua
palavra, a praticar seus mandamentos, deduz-se que sua velha vida caracterizava-se
pelos (ou por grande parte e em uma ou outra medida) pelos elementos opostos a
estes, os quais podem ser definidos de forma genérica como “pecado” – no
sentido exposto aqui, ou seja, como “transgressão aos mandamentos ditos
divinos”.
Meier admite isso ao explicar
que: “Pode-se falar em termos históricos se Jesus cometeu crimes ou transgrediu
certas leis, pois ‘crime’, ‘transgressões’ e ‘atos ilegais’ constituem
categorias que podem ser comprovadas empírica e historicamente”.
Ora, se realmente se pode falar,
em termos históricos, que Jesus transgrediu certas leis e mandamentos –
romanas, judaicas e, inclusive, mosaicas -, é certo que poderia transgredi as
leis que reconhecesse como “leis divinas”.
Contudo, Meier se afasta das
consideradas “leis de Deus” para relativizar a questão ao citar as leis romanas
e o próprio julgamento de Jesus por Poncio Pilatos. Meier é ainda mais
escorregadio ao afirmar que Jesus foi, historicamente, um transgressor de uma
lei ou sistema de leis em particular, seja romana ou judaica. Ora, o que Meier
não expõe é que, desse modo, segundo este raciocínio, Jesus poderia ter
transgredido conjuntos especiais de leis caras ao judaísmo, como o Decálogo
(cometendo idolatria, tomando o nome de Deus em vão, não santificando o Sábado,
não honrando os pais, matando, adulterando, roubando, mentindo/dando falso
testemunho, cobiçando as coisas e a mulher do próximo...), sendo a inobservância
a qualquer uma dessas normas a configuração do pecado.
Assim, a “mudança de vida”
almejada por Jesus implicaria a remissão de qualquer um desses atos já
praticados e o abandono total desses atos futuramente, daqui pra frente.
2) O mesmo apontamento pode ser
feito em relação à “garantir sua salvação”. Trata-se, como o próprio Meier
acaba confessando, de uma salvação individual. A despeito das implicações
coletivas da salvação, Jesus - segundo Meier - buscou garantir a própria
salvação.
Deve-se lembrar que alcançar a
salvação implica uma salvação almejada, ou seja, ainda não alcançada em certo
momento. Desse modo, Meier afirma, por implicação, que houve um momento em que
a salvação individual de Jesus estava comprometida. De acordo com as
Escrituras, o comprometimento da salvação ocorre em decorrência do pecado, ao
que se subtende que Jesus, ao buscar garantir sua própria salvação, teria
praticado pecados em sua vida pregressa.
Considerações finais
Assim, chegamos à conclusão de
que a hipótese da confissão ou arrependimento coletivo não se aplica de modo
definitivo ao episódio do batismo de Jesus. O episódio não se trata de mero ato
de confissão, mas de um processo centrado no ritual batismal. O batismo por si
só possuía a função purificadora os pecados individuais da pessoa,
necessitando, porém, do prévio arrependimento e da subsequente confissão dos
pecados para tornar válida a purificação.
Além disso, verificamos que o
termo “pecado” não indica uma “separação radical” com a divindade (como se o
pecador tornar-se um ateu...), mas apenas uma transgressão individual às leis
(ditas) divinas.
Desse modo, pode-se dizer que
mesmo não nutrindo crenças religiosas, qualquer indivíduo (seja protestante,
católico, judeu, agnóstico ou ateu) pode se considerar um “pecador” caso
“pecado” seja definido do mesmo modo que se define delito, ou seja, como
“transgressão à lei”.
Nesse sentido, é óbvio que se
Jesus não foi um ser semidivino, uma encarnação da divindade, imaculado do
nascimento até o óbito, deve-se afirmar, com certeza, que ele foi um “pecador”,
não sendo, nem sequer necessário apelar para seu batismo com o fito de demonstrar
tal argumento. Até mesmo os mais proeminentes mestres judaicos, além dos
próprios escritores das Escrituras sagradas, atuaram, uma hora ou outra, em
contraposição ao que determinada as leis divinas (escritas ou morais). Assim,
pode-se incluir não apenas Jesus, mas também João Batista, neste rol.
Assim sendo, concebemos, sem
maiores perplexidades, que se Jesus não foi a encarnação imaculada da
divindade, ele era, consequentemente, um pecador, já que as práticas e condutas
humanas que as Escrituras judaicas definiram como “pecaminosas” referem-se a
atos que o ser humano pratica natural e espontaneamente em seu agir social. A
narrativa do batismo de Jesus por João vem apenas a corroborar tal fato, já que
o batismo não possuía apenas um caráter coletivo, visando restaurar Israel de
seus pecados, mas também um caráter individual, visando purificar as pessoas
individualmente de seus pecados.
O próprio Meier chega a
vislumbrar esse caráter individual, porém preferiu não explorá-lo – até mesmo devido
ao baixo papel no sentido de contribuir para a elucidação da pessoa histórica
de Jesus desempenhado pelo mero conhecimento de que ele era um “pecador”. De
fato, há elementos da tradição evangélica mais importante.
Assim, se por um lado concluímos
que não se pode imputar a Jesus determinados pecados, do mesmo modo não se pode
fugir da premissa de que, caso ele não seja um ser imaculado (ou seja, de que o
discurso cristão tradicional seja inválido ou falso), ele de fato pode ter
cometido e de certo cometeu atos que transgrediam as leis de sua época, sejam
romanas, judaicas ou mosaicas – sendo que nesta última insere-se o chamado
“mandamento divino”.