4 O IMPACTO DA “NOVA ARQUEOLOGIA” NO CRISTIANISMO CONTEMPORÂNEO
Quando se trata de analisar a religião sob o prisma da História, as pessoas são freqüentemente bastante mal informadas, e quase sempre parciais. Principalmente quando falamos do cristianismo, existe uma nuvem de obscuridade dogmática que impede a maior parte das pessoas, principalmente aquelas que são ao mesmo tempo religiosamente fundamentalistas e leigas, de penetrar as entranhas do processo histórico.
Quando se trata de analisar a religião sob o prisma da História, as pessoas são freqüentemente bastante mal informadas, e quase sempre parciais. Principalmente quando falamos do cristianismo, existe uma nuvem de obscuridade dogmática que impede a maior parte das pessoas, principalmente aquelas que são ao mesmo tempo religiosamente fundamentalistas e leigas, de penetrar as entranhas do processo histórico.
É nesse cenário que a Bíblia é vista como “verdade absoluta” e o cristianismo institucional é concebido como o grande portador das vontades de Deus. Essa visão limitada e distorcida dificilmente deixa alguma abertura para que o conhecimento científico entre trazendo alguma luz sobre as verdades históricas da religião.
Atualmente, é fato que a natureza literária e ideológica da Bíblia entrou em contradição com os dados arqueológicos, que rechaçam seu valor histórico mesmo a despeito do otimismo dos arqueólogos da primeira metade do século XX.
A hermenêutica e a exegese bíblica sempre estiveram condicionadas ao conhecimento externo dos fatos que as Escrituras Sagradas descrevem em seus textos, sendo que a arqueologia de campo tal como praticada no Oriente Próximo e, particularmente, no moderno estado do Israel, se torna um objeto importante e de grande interesse porque possui grandes implicações na hora de ler e compreender a Bíblia.
No entanto, tais mudanças, ou mesmo reformulações, na leitura e compreensão da Bíblia nem sempre é algo confortável de se aceitar.
De acordo com Vaux, “se a fé de Israel não se fundamente na História, tal fé é errônea e, portanto, o é, também, a nossa fé”. Isso reflete a preocupação em face as inúmeras e consistentes objeções que essas descobertas arqueológicas criaram, de forma tão direta e contundente, em relação aos episódios tidos como sagrados que se encontram associados com a crença pessoal de cada indivíduo que professe a fé cristã e judaica em nossa civilização, e com a forma como se lê a Bíblia.
Conforme afirma Laughlin:
[...] deve-se admitir que a arqueologia simplesmente não tem feito pela Bíblia o que antigos colegas profissionais esperaram que fizesse. Para um não crente este fato não é particularmente problemático. Mas para aqueles que fazem seu o judaísmo ou a fé cristã, o consenso que se está desenvolvendo hoje em arqueologia, assim como nos estudos de crítica literária, dá lugar a muitas e agudas questões sobre o uso da Bíblia como fonte de verdade religiosa.
De fato, as implicações que essas descobertas podem exercer para o pensamento cristão tradicional são imensas. No entanto, cada pessoa, ou grupo, ou seita religiosa, interpreta as implicações dessas descobertas como quiserem
No ano de 2007, o arqueólogo Zahi Hawass descobriu uma fortaleza militar egípcia em Qantara Sharq, na Península do Sinai, que seria mais uma evidência capaz de afirmar que o episódio bíblico do Êxodo judeu é apenas um mito, sendo que a descoberta coincide aproximadamente com a época em que o povo de Moisés teria migrado rumo à terra prometida.
Quando entrevistado, Hawass (apud TERRA, 2007 [on line]), afirmou que “Se alguém ficar chateado, eu não me importo. Às vezes, os arqueólogos têm de dizer que algo nunca aconteceu porque não há evidências históricas”.
De fato, para um arqueólogo sem vínculos com religião e comprometido apenas com o saber, tais descobertas são apenas uma luz para a compreensão do passado e uma nova forma de ler os textos bíblicos. Já para os religiosos, principalmente para os fundamentalistas, tais descobertas despertam reações que nem sempre são deixam de ser emotivas.
Da mesma forma que a fé cristã pode ser afetada pelas descobertas arqueológicas, a arqueologia pode ser afetada pela fé cristã de forma negativa. Quando os arqueólogos e historiadores derrubaram muitos mitos e inverdades históricas sem relação alguma com os textos bíblicos, não houve nenhuma manifestação ideológica contrária. Já no caso dos textos sagrados do cristianismo, as manifestações são constantes. Nenhum defensor veio fazer apologia à Ilíada ou à Eneida quando a arqueologia e a crítica histórica determinaram ser lendária a maior parte de seus relatos. No entanto, quando se trata da arqueologia e crítica histórica em face a Bíblia, as reações chegam a serem explosivas.
Essa “explosividade”, por sua vez, afeta a própria disciplina acadêmica, ao questionar a validade ou até mesmo a credibilidade dos pesquisadores unicamente com base em um sentimentalismo ao texto bíblico e de forma totalmente infundada, como vem ocorrendo muito.
Uma dessas reações, oriunda da parte cristandade – principalmente a da ala fundamentalista – se consiste em acusar os arqueólogos de “sensacionalismo” e dizer que tudo não passa de estratégia de Marketing. Já outros fundamentalistas afirmam que isso faz parte de uma conspiração mundial anticristã já profetizada no Apocalipse.
De acordo com a revista A Hebraica (2005 [on line]), Finkelstein foi acusado, em Israel, de arruinar a educação da juventude e até de dar munição intelectual aos palestinos, e continua a ser repreendido por abalar os alicerces da fé cristã. Ainda assim, Finkelstein afirma que suas idéias não abalarão a fé de ninguém e responde que:
Não há como provar que a Bíblia seja falsa porque sua verdade não está neste ou naquele evento histórico. Sua verdade está no grande valor das profecias e em sua moral. Não temo este colapso total, pois o edifício da fé não está construído em cima da arqueologia. Existe separação entre ciência e fé, que deve continuar havendo. Desde o século 19 pessoas achavam que Darwin levaria a religião à ruína. Claro que isto não acontecerá, pois há uma completa separação entre os dois campos.
Finkelstein (op. cit.) também postula como uma possível reação contra suas descobertas arqueológicas a falsificação de achados com o fim de confirmar os relatos bíblicos:
[...] prevejo a “descoberta” de novas falsificações arqueológicas. A direita cultural tentará produzir achados que sirvam de base para as afirmações dos arqueólogos conservadores. Não me surpreenderei se em breve “descobrirem” uma inscrição do Rei Salomão.
Falsificações e erros (deliberados ou acidentais) de interpretação, como já mostramos, fazem parte da história do cristianismo e suas reações diante das descobertas da arqueologia.
De fato, é bastante difícil para grande parte das pessoas abrir seus corações e suas mentes para um entendimento da história sem fantasias, sem devaneios, sem ilusões, um entendimento que não pode ser simplesmente descartado apenas porque entra em choque com os nossos conceitos estabelecidos sobre o cristianismo, sobre a Bíblia, sobre a Igreja, sobre a fé, e sobre Jesus.
4.1 A influência da “Nova Arqueologia” na leitura das Sagradas Escrituras
É fato que as descobertas arqueológicas – principalmente as apresentadas no presente trabalho – vêm influenciando, de várias formas, a nossa visão acerca dos textos sagrados. No entanto, resta-nos determinar de que forma.
No que se refere ao público em geral, a reação é ambígua. Por um lado, os estudiosos, principalmente os acadêmicos, estão entusiasmados por chegarem cada vez mais perto de uma compreensão mais profunda e aperfeiçoada da história de Israel. Por outro lado, as inúmeras contradições entre os dados arqueológicos e o texto bíblico estão deixando os religiosos judeus e cristãos, cada vez mais em estado de perplexidade, sendo que tais descobertas parecem desconstruir por completo textos inteiros da bíblia.
Nessa parte do trabalho, é imprescindível que se deixe bem claro os objetivos da arqueologia como disciplina acadêmica e científica diante dos textos bíblicos.
De acordo com Arens (2007, p. 18), as descobertas arqueológicas não “desconstruíram” os textos bíblicos. Muito pelo contrário: “a informação obtida das descobertas arqueológicas contribuiu muito para melhor situar e entender os textos bíblicos”.
A principal prioridade da arqueologia é adentrar nas conseqüências materiais dos eventos históricos com o fim de compreender as diversas dimensões desses acontecimentos. É um objetivo didático, vinculado apenas com a necessidade do saber.
De forma alguma, é missão da arqueologia desconstruir as narrativas bíblicas do ponto de vista histórico, muito menos de derrubar ideologias religiosas milenares criadas ao redor de um livro sagrado.
A principal tarefa da arqueologia é oferecer subsídios com os quais se possa melhor entender os textos bíblicos.
No entanto, essa busca por compreensão e entendimento por parte da arqueologia, inevitavelmente, traz consigo diversas implicações que, conseqüentemente, podem ou não serem concebidas de forma negativa ou positiva.
De acordo com Arens, é inevitável que exista, como conseqüência dessas descobertas, não uma desconstrução do texto bíblico, mas uma releitura ou uma nova forma de encarar o texto bíblico. Para exemplificar, Arens (2007, p. 225) enfatiza o papel de vários ramos da ciência para uma nova compreensão da Bíblia:
Desde um século atrás, os estudos bíblicos vêm-se enriquecendo com as contribuições da arqueologia, das ciências sociais, da antropologia, da lingüística, da hermenêutica, entre outros. [...] A partir do momento em que conhecemos e levamos a sério a variedade de fatores que intervieram na composição da Bíblia, não podemos continuar pensando como antes.
Essa mudança de pensamento é vital para que nossos conhecimentos sejam capazes de serem ampliados mais ainda.
Todas as descobertas arqueológicas, bem como outras contribuições multidisciplinares, nos têm trazido uma compreensão mais humana da Bíblia, enfatizando o lado humano da Bíblia em que a mesma se caracteriza como um livro humano, escrito por pessoas humanas e para pessoas humanas, dentro de um contexto humano, de modo que, como qualquer outro livro humano, possui estrutura peculiar e uma história que revela os processos de sua formação.
De acordo com Arens (2007, p. 17):
Enquanto se defendia a Bíblia literal e estritamente como a palavra de Deus comunicada por inspiração divina a determinadas pessoas, não se pensava em perguntar quando e por que se escreveu este ou aquele livro, quem foi o escritor, se ele utilizou alguma tradição ou fonte de informação, se ele esteve influenciado pela situação histórica e cultural na qual vivia etc.
Todas essas indagações apresentadas na citação acima são imprescindíveis em qualquer estudo histórico e/ou literário que se pretenda realizar em relação a qualquer livro. Nesse sentido, Arens (2007, p. 19) também faz a seguinte afirmação:
Só se começará a conhecer e compreender a Bíblia quando se estiver familiarizado com sua origem e com sua formação, quando se souber por que foram escritos os diferentes livros, e algo do mundo daqueles para os quais foram escritos diretamente, sua cultura e circunstâncias. Para conhecer e compreender a carta de São Paulo aos Gálatas, por exemplo, temos de familiarizar-nos com as circunstâncias sob as quais ele a escreveu, o que motivou o apóstolo (emissor) a fazê-lo, assim como as realidades culturais, políticas, religiosas e outras nas quais viviam os gálatas (receptores).
Como podemos notar, uma das mudanças de pensamento que essa nova visão traz através dessas novas descobertas é que idéias como inspiração divina, inerrância bíblica, entre outras, precisam ser reformuladas. O lado negativo em tudo isso é que são exatamente essas idéias que precisam ser revistas e reformuladas que constituem as principais crenças e ideologias fundamentalistas, sendo, desse modo, as que mais exercem resistência contra as novas tendências.
É preciso frisar que nenhuma leitura fundamentalista e literalista dos textos bíblicos se preocupa em se aprofundar em nenhuma das questões sobre composição, formação e sobre os contextos multidimensionais em que a Bíblia foi escrita. O fundamentalismo já possui respostas para tudo isso, respostas essas que, geralmente, andam em contra-mão ao desenvolvimento científico. O fundamentalismo, como um movimento mais ideológico do que científico (ou seja, que pregam verdades pré-estabelecidas, ao invés de buscá-las), é bem um instrumento de estagnação do conhecimento do que um mero movimento conservador.
O literalismo fundamentalista se preocupa unicamente em adequar suas visões de mundo e interpretações de natureza ideológica ao texto bíblico que - concebido não somente como a Palavra de Deus, mas também, e principalmente, como a verdade absoluta -, por sua vez, serve como um instrumento para legitimar essas interpretações e/ou ideologias.
Essa leitura fundamentalista e anti-histórica traz consigo erros e disparates que podem trazer, por si sós, várias conseqüências negativas para a sociedade: “A falta de estudo informado da Bíblia e de seus condicionamentos históricos e culturais leva, por exemplo, a proibir a transfusão de sangue (Testemunhas de Jeová). E pessoas morrem!” (Ibid, p. 23).
É por essa razão que a arqueologia se torna um elemento de suma importância para uma releitura dos textos bíblicos. Uma leitura nova e muito mais proveitosa, por ser mais científica e menos ideológica.
De acordo com Auerbach (1998, p. 28), filólogo alemão e estudioso de literatura comparada e crítico literário, afirma que a Bíblia, por si mesma, já é um forte instrumento ideológico de controle, e mão de todo o fundamentalismo religioso:
O mundo dos relatos das Sagradas Escrituras não se contenta com a pretensão de ser uma realidade histórica verdadeira – pretende ser o único verdadeiro, destinado ao domínio exclusivo. Qualquer outro cenário, quaisquer outros desfechos ou ordens não tem direito algum a se apresentar independentemente dele, e está escrito que todos eles, a história de toda a humanidade, se integrarão e se subordinarão aos seus quadros. Os relatos das Sagradas Escrituras não procuram o nosso favor [...], não nos lisonjeiam para nos agradar e encantar – o que querem é nos domina, e se nos negarmos a isso, então somos rebeldes.
Por outro lado, a arqueologia, ao questionar essa pretensão de verdade histórica absoluta, nos proporciona opções a mais, bem como uma maior liberdade de escolha. Sendo que a Bíblia descreve supostos acontecimentos que chamam para si o epíteto de “históricos”, é bem certo que alguns esses acontecimentos (que, como vimos, foram de grandes proporções) tenham deixado vestígios eternos na política e geografia da época, de modo que a arqueologia seja capaz de resgatá-los – caso exista historicidade nesses relatos.
A arqueologia, como instrumento científico capaz de “voltar no tempo” e trazer certezas à nossa era sobre o passado distante, é a disciplina mais apta a adentrar na realidade literária da Bíblia e, utilizando critérios científicos, realizar julgamentos históricos sobre determinadas narrativas.
Desse modo, a arqueologia, como disciplina autônoma e dotada de credibilidade científica, possui autoridade suficiente para desafiar a verdade histórica da Bíblia Sagrada, com o fim de determinar sua confiabilidade histórica ou falsidade.
No entanto, como já foi dito, o que para alguns significa “desafio” ou mesmo “perseguição”, para outros significa apenas uma “releitura” dos textos bíblicos e uma reformulação de nossas idéias.
Se, para os fundamentalistas, reformular suas idéias e preconceitos se consiste em uma ação tão difícil de ser realizada, a culpa disso, com certeza, não é da arqueologia.
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BIBLIOGRAFIA
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1998.
A HEBRAICA. Arqueologia. As mais novas descobertas em Israel: entrevista com Israel Finkelstein. In: Revista “A HEBRAICA”. Edição: Jul. de 2005. Disponível em: http://www.hebraica.org.br/cabecalho/MateriaCompleta.asp?idMateria=104 Acesso em 17 de julho de 2008.
CPAD. Casa Publicadora das Assembléias de Deus. Uma história de fé e trabalho. Disponível em: http://www.cpad.com.br/cpad/paginas/quem_cpad.htm Acesso em 12 de julho de 2008.
ESTADÃO. Placa de 700 a.C. traz relato de “destruição de Sodoma”. Disponível em http://www.estadao.com.br/vidae/not_vid148698,0.htm Acesso em 12 de julho de 2008.
FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil. A Bíblia e seu tempo. Documentário em DVD da editora da História Viva.
FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil. A Bíblia Não Tinha Razão. São Paulo: A Girafa Editora, 2003.
FOX, Robin Lane. Bíblia: verdade e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
FREE, Joseph P. Archaeology and Bible History. 1950, 1,2,134
MCNELLI, John R. et alii. Marés bárbaras: 1500-600 ac. Rio de Janeiro: Time-Life, 1989.
PRICE, Randall. As limitações da arqueologia. IBM – Igreja Batista Memorial. Disponível em: http://www.ibmac.com/limitacoes_arqueologia.htm. Acesso em 12 de julho de 2008.
TERRA. Arqueologia. Arqueólogo: fortaleza evidencia mito de Êxodo judeu. 3 de abril de 2007, Disponível em: http://noticias.terra.com.br/ciencia/interna/0,,OI1524676-EI295,00.html. Acesso em 17 de julho de 2008.
4 comentários:
Good comments, Charles, I enjoyed reading your post.
Ótimo artigo! Posso passá-lo em PDF?
PS: Gostaria de sua opinião: http://repensandoocristianismo.blogspot.com/2008/12/20-motivos-para-ascenso-e-queda-do.html
Namaste
Pode colocar sim em PDF! Mas não esqueça de dar os devidos créditos, pois esse texto faz parte de um artigo acadêmico que escrevi e por isso não poder plageado. Abraço
Texto maravilhoso
aliás... todo blog é fantástico
Obrigada
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