Mais do que nunca a fé cristã tem andado tão bem, sendo que o número de seguidores somente aumenta a cada ano. Este fato vai exatamente em direção oposta ao que se pensou no passado, como Voltaire, na época do Iluminismo, que afirmava que dentro de duzentos anos o cristianismo já teria desaparecido.
De fato, não é de admirar que a fé cristã esteja tão em alta. A decepção para com o racionalismo e ciência, oriundo dos eventos desencadeados pela Primeira e Segunda Guerra Mundial, realmente levou muitas pessoas a depositarem suas esperanças e sonhos em diversos “ismos”, os quais apelavam para o lado emocional do ser humano. No entanto, no caso do cristianismo do século XX, a situação é um pouco diferente. Foi exatamente dentro dessa crise da racionalidade que o cristianismo mais apelou para o racional (sem deixar, é claro o lado emocional no escanteio) para firmar a fé cristã.
Foi no século XX que os cristãos sentiram muito mais necessidade de apelar para a ciência, filosofia e história para confirmarem as bases de suas doutrinas.
O criacionismo, por exemplo, em uma nítida investida contra as conclusões darwinianas acerca da mutação das espécies, surgiu como uma forma de consolo científico com que seus adeptos poderiam dizer: “Não precisamos virar nossos rostos, calados e frustrados, diante dos argumentos científicos deles. Eles procuram por ciência, não é mesmo? Pois será ‘ciência’ que daremos a eles!”.
A partir de então temas antes vistos como inerentemente maniqueístas, como “ciência e fé” ou “fé e razão” se fundiram em “ciência da fé” e “fé racional”. A apologética do século XX foi uma nítida resposta a influencia ainda viva do pensamento iluminista antes e após as Grandes Guerras.
Foi no início do século XX que a “apologética cristã” sentiu a necessidade de ver as crenças que tanto ardentemente defendia confirmada pela arqueologia.
De modo que até nos dias atuais encontramos crentes usando a arqueologia bíblica para catequizar os fiéis e desmentir objeções dos críticos do cristianismo – tanto na igreja, no púlpito, nas missões, nos debates, enfim.
Foi assim que cristãos do mundo inteiro, num acesso descontrolado de entusiasmo, afirmaram que não somente que “a Bíblia é confirmada pela arqueologia”, mas que também a própria fé cristã é, por causa dessa mesma arqueologia, a verdade (historicamente) absoluta! Nunca a fé cristã havia sido tão amplamente confirmada por uma disciplina acadêmica.
Essas supostas descobertas arqueológicas não apenas impulsionaram o crescimento da fé cristã; elas também impulsionaram a fé cristã em direção a validação de alguns dos pressupostos da ciência e assim a mudarem sua visão de mundo. Se antes, não importando o que a ciência dissesse, ela nunca poderia ter a última palavra, agora a ciência era a juíza da fé cristã e a confirmava de forma surpreendente. Ou seja, se antes a fé era, per si, o meio-termo que confirmava a si mesma, agora a ciência estava incumbida de julgar a fé e de dar o veredicto – pelo menos na medida em que essa mesma ciência confirmava a fé cristã.
O lado irônico nessa história é que a ciência só passou a ter valor no meio cristão moderno se ela estivesse confirmando os relatos e/ou a fé bíblica. Caso contrário, a ciência era mandada novamente para o mundo do “o-diabo-está-tentando-nos-enganar-mais-uma-vez”. O que não é de Deus, é, com certeza, do diabo. Não existe meio termo. Se antes se afirmava que “a razão é a maior inimiga da fé”, como dizia Martinho Lutero, agora a razão é a maior aliada da fé, como diz Wiliam Lane Craig, um filósofo cristão contemporâneo.
Os cristãos fundamentalistas que ainda acreditam que a arqueologia corrobora sua fé continuam a colocar parte dessa fé na ciência, principalmente porque são capazes de ver nessa ciência – se usada como um instrumento de confirmação dos dogmas bíblicos - um requisito necessário e altamente sedutor para o processo de conversão de pessoas, principalmente, os incautos pertencentes à ala erudita das academias.
É fato que o público leigo cristão sempre foi condicionado a depositar sua confiança unicamente nas páginas das Escrituras como se fossem a única verdade e absoluta, e a rechaçar a cientificidade como “devaneio do homem”. No entanto, a mudança que ocorreu a nível popular no século XX foi surpreendente, onde pela primeira vez na história, os cristãos poderiam ser autorizados a ter acesso ao material acadêmico e laico para verem ali sua fé confirmada. Desse modo, disciplinas acadêmicas como arqueologia e história vinham confirmando os relatos bíblicos e motivando a fé dos cristãos, como veremos a seguir.
2.1 O papel da mídia na criação do mito da confirmação da Bíblia
Até os anos de 1950, e indo, no máximo, ao inicio dos anos de 1990, a concepção acerca da arqueologia em face a Bíblia Sagrada era a seguinte:
[...] a arqueologia tem confirmado inúmeras passagens que tinham sido rejeitadas por críticos como não-históricas ou contraditórias a fatos conhecidos. No entanto descobertas arqueológicas mostraram que estas acusações críticas [...] estão erradas e que a Bíblia é confiável justamente nas afirmações pelas quais foi deixada de lado por não ser confiável. Não sabemos de nenhum caso no qual a Bíblia foi provada errada (FREE, 1950, p. 134).
Ao compararmos essa afirmação com informações mais atuais, somos levados a um marcante choque de idéias:
O consenso arqueológico, pelo menos até o ano de 1990,
era de que a Bíblia poderia ser lida basicamente como um documento histórico
confiável. [...] Agora, é evidente que muitos eventos da história bíblica não
aconteceram numa determinada era ou da maneira como foram escritos. Alguns
eventos famosos da Bíblia jamais aconteceram inteiramente (FINKELSTEIN;
SILBERMAN, 2003, p. ???).
O que aconteceu que, em menos de cinqüenta anos, a posição da arqueologia a respeito da confiabilidade histórica das Escrituras Sagrada mudaram tão drasticamente?
Na verdade, o que aconteceu foi que diversos arqueólogos e comentaristas interpretaram certas descobertas arqueológicas como achados que davam crédito as Escrituras. Mas a arqueologia nunca e jamais confirmou a veracidade da Bíblia por inteiro, como os conservadores querem.
Finkelstein (apud A HEBRAICA (2005 [on line]), afirma que: “Estamos vivendo um processo de liberação da arqueologia de uma leitura muito conservadora e ingênua do texto bíblico”. Foi essa leitura conservadora e ingênua do texto bíblico que motivou a criação do “mito” de que a arqueologia confirmava a Bíblia.
De acordo com Fox (1993), informações erradas, omitidas e até mesmo fraudadas foram difundidas entre o público leigo e especialmente entre o público cristão, de tal forma que se criou um mito de que a arqueologia confirmava a Bíblia.
Um exemplo de como informações sobre arqueologia bíblica podem ser inventadas e/ou omitidas é o caso das descobertas dos tabletes de argila de Ebla. Nos anos de 1970, foram encontradas várias inscrições em argila que supostamente traziam referências extra-bíblicas a respeito das cidades de Sodoma e Gomorra, outras cidades mencionadas no livro bíblico de Gênesis (especialmente as cinco cidades mencionadas no capítulo 14 de Gênesis), além de nomes de personagens bíblicos importantes, como Abraão e Birsa, rei de Gomorra. O marco das descobertas dos tabletes de Ebla seria a confirmação de que Abraão pudesse realmente ter existido.
No entanto, de acordo com Fox (1993, p.???), esse sonho caiu por terra – só que ninguém soube:
Entre 1978 e 1981, os livros de arqueologia bíblica tiveram um novo estímulo e um novo segundo capítulo; correu pela imprensa a notícia de que Abraão tinha um contexto histórico. O que aconteceu depois, contudo, não foi tão difundido. O nome do rei de Gomorra não sobreviveu a uma releitura da tabuleta; duas das cinco cidades tiveram rapidamente o mesmo destino (os nomes de todas as cinco nunca haviam sido identificados na mesma tabuleta); as menções a Sodoma, Gomorra e as outras revelaram-se uma interpretação indevida. Como os nomes baseados no de Jeová, o do ancestral de Abraão esfumou-se como uma miragem de estudiosos. [...] Nem o sítio e nem o arquivo [de Ebla] lançam qualquer luz sobre qualquer aspecto do texto da Bíblia.
Fox (1993, p.???), ao citar um estudioso do assunto, coloca a seguinte frase entre aspas: “Aqueles que trabalharam nas tabuletas de Ebla vêm hoje fazendo o possível para sepultar todo esse escândalo”. No entanto, em qualquer escola bíblica, igreja e grupos religiosos, especialmente protestantes, e principalmente no Brasil, Ebla ainda vem sendo usado como argumento para sustentar posições infundadas de confirmação bíblica. Para se ter uma idéia disso, basta ler o “suplemento arqueológico” da Bíblia de referência Thompson (editora Vida) e comparar com o número de cristãos em todo o Brasil que possuem essa Bíblia de estudos e a usam em seus debates sobre arqueologia e fé.
Um aspecto importante e que precisa ser enfatizado é que o mito da “confirmação histórica” da Bíblia não passa de uma construção da mídia e da indústria editorial - principalmente a indústria editorial cristã protestante, como no caso do Brasil. Enquanto editoras cristãs publicam apenas livros que “edifiquem a fé dos leitores” (não importando quantos erros e informações defasadas eles possam conter), a mídia simplesmente seleciona informações distorcidas ao divulgar notícias sensacionalistas de que a Bíblia é confirmada pela arqueologia.
Um recente caso implica um documento arqueológico e as cidades bíblicas de Sodoma e Gomorra. A reportagem deixa transparecer a idéia de que o texto faz alusão a destruição dessa cidade, enquanto na verdade esse paralelo foi apenas uma invenção da mídia para fazer sensacionalismo.
A reportagem pode ser lida no site do Estadão, onde se publicou uma matéria (cujo título não tem nada a ver com a reportagem) intitulada “Placa de 700 a.C. traz relato de ‘destruição de Sodoma’” (ESTADÃO, 2008 [on line]).
Prontamente, essa reportagem foi lida em muitos meios da comunidade cristã protestante brasileira – ajudando com isso a “reforçar a fé na confiabilidade da Bíblia”.
O texto da reportagem afirma que foram descobertas: “[...] inscrições cuneiformes de um bloco de argila datado de 700 a.C. e descobriram que se trata do testemunho feito por um astrônomo sumério sobre a passagem de um asteróide...”. Até aqui nada de anormal.
No entanto, a próxima parte do parágrafo afirma categoricamente: “[...] um asteróide pode ter causado a destruição das cidades de Sodoma a e Gomorra” (ESTADÃO, 2008 [on line]).
Essa é uma afirmação muito forte até mesmo se usada a palavra “pode” antes do verbo. O texto precisa apresentar indícios no próprio texto, como os nomes de Sodoma e Gomorra, a queda do meteoro na Palestina, especificamente na região onde outrora havia sido essas duas cidades, etc. No entanto, o texto apenas apresenta uma análise do impacto do asteróide de mais de um quilômetro de diâmetro, que deve ter se dado no “dia 29 de junho de 3123 a.C. (calendário juliano)” nos Alpes austríacos, na região de Köfels causando um impacto cataclísmico.
Aqui, faremos uma pequena pausa para pergunta: o que um asteróide que caiu nos Alpes austríacos tem a ver com de Sodoma e Gomorra? Como logo veremos, não existe relação nenhuma entre ambos.
O texto acrescenta que:
[...] O pesquisador [Hempsell] sugere ainda que a nuvem de fumaça causada pela explosão do asteróide teria atingido o Sinai, algumas regiões do Oriente Médio e o norte do Egito. Hempsell afirma que mais pessoas teriam morrido por conta da fumaça do que pelo impacto da explosão nos Alpes (ESTADÃO, 2008 [on line]).
Até agora a reportagem não apresentou nenhuma razão para essa associação entre o asteróide, que caiu na zona central da Europa, e o “fogo ardente” que, segundo a Bíblia, desceu exatamente sobre as cidades de Sodoma e Gomorra.
Obviamente, se a razão desse paralelo entre a descoberta arqueológica e a destruição das cidades de Sodoma e Gomorra esta na parte em que se fala sobre a “fumaça causada pela explosão do asteróide teria atingido o Sinai”, devemos dizer que isso é tolice. Fumaça não é a mesma coisa que fogo e, ainda que fosse, seria um absurdo afirmar que somente Sodoma e Gomorra foram destruídas pelo fogo enquanto a nuvem de fumaça (e, imaginativamente, de fogo) se estendeu desde a parte central da Europa até o monte as fronteiras do Egito.
O fato é que o pesquisador que fez a descoberta somente fez uma alusão poética à estória de Sodoma e Gomorra. De forma nenhuma está afirmando que a descoberta corresponde diretamente a estória de Sodoma e Gomorra. O que aconteceu aqui foi que a mídia, com o objetivo de “sensacionalizar” uma notícia, atribuiu essa descoberta como uma “comprovação dos relatos bíblicos”. Pelo teor vago da reportagem, diversos religiosos do Brasil (muitos que, diga-se de passagem, costumam ler essas reportagens apenas superficialmente) não hesitaram em afirmar que “mais um achado arqueológico confirma a Bíblia”.
Ao interpretar de forma distorcida e errônea informações arqueológicas, a mídia cria e ajuda a se desenvolver uma imagem falsa da realidade, onde a Bíblia é corroborada, página por página, pela arqueologia, quando a verdade é o oposto.
Fox (1993, p.???) aponta um dos grandes divulgadores do mito de que Bíblia é corroborada pela arqueologia, mais lidos em todo o Brasil e no mundo – e com certeza um dos que mais ajudaram a divulgar esse mito:
Em 1956, um jornalista alemão, Werner Keller, demonstrou a força da crença do público na ligação entre as escrituras, as escavações e as viagens. Seu livro, A Bíblia como História, foi inicialmente publicado com o título A Bíblia está de fato correta, e o seguinte subtítulo: “A arqueologia confirma o Livro dos Livros”[1]. [...] o mais estranho em relação a seu sucesso é que, se o lermos cuidadosamente, veremos que nada do que afirma emerge diretamente de qualquer indício arqueológico que confirme qualquer aspecto significativo do Livro dos Livros.
Esse apontamento é digno de nota, haja vista que tal fato significa que a imagem da Bíblia como sendo um livro histórico e arqueologicamente correto foi uma imagem construída, em parte pela mídia e em parte por cristãos esperançosos (para não dizer “desesperados”) de encontrar indícios externos ao seu livro sagrado que corroborasse sua fé.
2.2 A arqueologia “albrightiana”
Uma das figuras da arqueologia mais famosas por aliar o uso da arqueologia para fundamentar a fé cristã e suas verdades bíblicas no inicio do século XX, foi W. F. Albright. Este arqueólogo foi o porta-voz união entre as descobertas arqueológicas e as perspectivas bíblicas. Seu trabalho se concentrou em escavações em cômoros de cidades nos quais o desenvolvimento da sociedade e da cultura pode ser traçado através de milênios. Mais do que um simples arqueólogo, Albright foi um líder do movimento arqueológico que estava começando a se formar e que em pouco tempo transformaria a face da cristandade americana.
Albright centrava sua arqueologia na época dos patriarcas de Israel, e defendia que Abraão, Isaque e Jacó haviam sido não só personagens bíblicos históricos, mas que também os relatos que giram em torno de suas vidas e que se encontram cristalizados nas Escrituras judaicas, tais como, também, as incursões de Josué, foram eventos indiscutivelmente históricos. Insistia que “como um todo, a imagem de Gênesis é histórica e não há razões para se duvidar da precisão dos detalhes biográficos”. O impacto de tais palavras nos ouvidos dos crentes não puderam sequer ser descritos.
Desse modo, a função da chamada “arqueologia bíblica” havia sido a de confirmar os eventos bíblicos – influenciando (ao contrário do que se afirma atualmente) determinadas doutrinas teológicas e, por fim desmentir supostas alegações de críticos que afirmavam que a Bíblia estava repleta de lendas.
No entanto, as conclusões de Albright, com o tempo, foram se mostrando equivocadas.
No que se refere ao estado da investigação sobre os patriarcas, Finkelstein e Neil Asher Silberman (2003) afirmam “em quase todos os pontos de vista - histórico, psicológico, espiritual - os patriarcas são potentes criações literárias” e dedicam a primeira parte de seu livro a interrogar sobre uma série de pontos cruciais da história do Israel.
Albright encontrava o fundamento histórico do Gênesis na onomástica pessoal dos personagens bíblicos, nos insólitos costumes matrimoniais e na legislação relativa à aquisição das terras, porque tudo isso era muito parecido ao que se podia encontrar na sociedade mesopotâmica do II Milênio a.C. Finkelstein e Silberman contestam estas afirmações, ao enfatizarem que a suposta descida de Abraão a Canaã da Mesopotâmia, que Albright fazia coincidir com a migração amorréia, é dificilmente aceitável hoje em dia.
A presumida migração de grupos da Mesopotâmia na direção de Canaã – a chamada migração dos amorreus, na qual Albright colocou a chegada de Abraão e
sua família – foi, mais tarde, considerada ilusória. A arqueologia invalidou por completo a controvérsia de que um repentino, vasto movimento de população tivesse acontecido naquela época (Finkelstein, p. 57).
Outra constatação que refuta a “arqueologia albrightiana” é o fato de que a relação entre a legislação mesopotâmica e os costumes seguidos pelos patriarcas, é tão vaga que poderia ser aplicada a qualquer época.
O fato é que a redação do relato dos patriarcas foi realizada no século VII a.C., data proposta pelo Finkelstein e pelo Silberman. Esta data é considerada totalmente certa pela arqueologia contemporânea.
Os filhos de Jacó, em seus deslocamentos através do deserto do Egito, são descritos comerciantes caravaneiros, cujas mercadorias são drogas, bálsamo e mirra. Os camelos, uns dos meios fundamentais para o deslocamento de pessoas e transporte de mercadorias pelo deserto, não se domesticaram e empregaram nestas tarefas antes do ano 1000 a.C., mas seu uso somente se generalizou a partir do século VII a.C., como prova os ossos de camelos adultos de Tell Iamnia, importante centro caravaneiro da costa meridional do Israel, situado entre o Mediterrâneo e Arábia.
As mercadorias que os filhos de Jacó levavam para vender ao Egito são citadas nos arquivos dos monarcas assírios nos séculos VIII e VII a.C. A estes dados se acrescenta a menção do rei dos filisteus Avimelech, que encontrou ao Isaac na cidade do Gherar. Os filisteus, população procedente do Egeu, não se assentaram na costa do Canaã até pouco depois do ano 1200 a.C. A cidade do Gherar, hoje Tell Hasor, na Idade do Ferro I, era uma aldeia quase insignificante, que só cobrou importância quando se converteu em cidade administrativa, fortificada, entre finais do século VIII e começos do século VII a.C. A cidade de Nínive, citada em Gênesis 10, só foi construída por Senaqueribe e Assurbanipal, reis assírios do século VII a.C. Note que o próprio relato sobre o Jardim do Éden já citava a Assíria de forma anacronicamente reveladora.
A combinação de todos estes elementos: a primeira domesticação dos camelos e seu uso intensivo, o tráfico de mercadorias, a presença dos filisteus no Canaã, o auge e fortificação do Gherar, levam Finkelstein e Silberman a propor a data do século VIII ou VII como a data da redação das histórias bíblicas dos patriarcas. Esta data é confirmada por um dado proporcionado pelos arqueólogos israelitas, que possui grande força probatória: trata-se do exame das genealogias dos patriarcas, do nascimento de numerosas nações, etc.; com isso se descreve o mapa do Oriente Próximo do ponto de vista dos reinos do Judá e do Israel dos séculos. VIII e VII a.C. Somente a esta época se pode remontar certos nomes étnicos e toponímia que se encontram nos relatos bíblicos. Suas características se correspondem perfeitamente com o que sabemos das relações entre os reinos e os povos limítrofes com o Israel e com o de Judá.
No que se refere a esses relatos da “Conquista”, a arqueologia fez o seu trabalho de passar o seu crivo, e de acordo com Finkelstein e Silberman (2003), a evidência de uma histórica conquista de Canaã pelos israelitas é fraca. Mais do que fraca, os relatos da Conquista de Canaã são por demais contraditórios para serem capazes de fornecer um quadro histórico da região abordada naquele período.
Desse modo, Albright e sua “revolução arqueológica” simplesmente caíram para nunca mais se levantar.
Infelizmente, ainda que as conclusões de Albright tenham se mostrando equivocadas, cristãos do Brasil e do mundo ainda se apóiam na arqueologia albrightiana para verem sua fé corroborada na arqueologia.
2.3 A indústria editorial protestante e as velhas tendências da arqueologia
Em entrevista, quando perguntado por que escreveu o livro “A Bíblia não Tinha Razão” para atingir o grande público – ao contrário de seus colegas, que escrevem apenas para o público acadêmico -, Finkelstein respondeu:
O público se interessa por arqueologia bíblica, mas atualmente recebe apenas um ponto de vista. A grande audiência ainda está completamente sob influência da arqueologia conservadora que se fazia nos anos 1950. Achei que este era o momento de apresentar um ponto de vista diferente. Não estou interessado em convencer ninguém. Apenas digo: conheçam a arqueologia moderna e aceitem, se
quiser (A HEBRAICA, 2005 [on line]).
A resposta de Finkelstein na citação acima revela um quadro bastante sintomático de nossa sociedade. Principalmente no Brasil, o público ainda se vê atrelado a informações não apenas defasadas da arqueologia, mas também tendenciosas. Não somente a mídia secular está acostumada a publicar reportagens sensacionalistas e equivocadas sobre descobertas que supostamente confirmam os relatos das Escrituras. As editoras cristãs possuem um papel ainda mais intenso nesse processo.
A todo ano, as editoras cristãs publicam centenas de livros apologéticos, onde o leitor pode ter acesso a supostas descobertas arqueológicas e científicas que confirmam a sua fé e ajudam no processo de evangelização, mas que, no entanto, continuam a andar em contra-mão as recentes descobertas do meio acadêmico e as tendências que diferem de suas ideologias religiosas.
De fato, desde os anos 50 do século XX a arqueologia tem deixado de confirmar os relatos da Bíblia, como fazia de forma aparente com Albright, para seguir uma linha independente cuja tendência é relevar disparates e contradições na narrativa bíblica. Estamos no final da primeira década do século XXI e inicio da segunda década e esse tempo foi o suficiente para mudar a opinião dos arqueólogos contemporâneos e relegar o movimento albrightiano para o limbo das ideologias caducas. Mas não foi tempo suficiente para expurgar esse demônio que ainda assola e ilude a alma do cristianismo contemporâneo. Ainda é forte a tendência cristã em se alegar que a Bíblia ainda continua a ser confirmada pela arqueologia. Para isso, talvez de forma inconsciente, recorrem às descobertas do inicio do século XX para corroboraram sua alegação.
Por que essa mudança “da água para o vinho” na questão da confirmação arqueológica das narrativas? É o próprio Finkelstein quem lidera essa nova visão, e tudo isso não é resultado de uma tentativa demoníaca de tentar criticar e refutar os relatos bíblicos a qualquer custo. Essa nova forma de fazer arqueologia está apenas usando a arqueologia para interpretar os textos bíblicos e não os textos bíblicos para interpretar a arqueologia, como Albright fazia. De fato, este é o modo correto de se fazer pesquisa arqueológica.
Várias editoras cristãs no Brasil possuem como única missão: “Divulgar o Evangelho de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo a toda criatura e ensinar a guardar a sua Palavra até que Ele volte” (CPAD, 2008 [online]). Publicar livros de teor científico que apresentem descobertas que podem abalar a fé cristã não está entre suas prioridades. Para isso, publica livros tendenciosos e defasados.
No entanto, infelizmente a realidade brasileira das editoras cristãs, principalmente as protestantes (ou evangélicas), é outra, onde as mesmas se interessam mais em apresentar informações defasadas sobre arqueologia, pois seu compromisso está em divulgar material exclusivamente cristão para o público cristão. Vale salientar que não há nada de errado nessa atitude em si. O erro está no fato de que, dado esse objetivo, essas editoras publicam livros tendenciosos e cheios de erros, com informações arqueológicas selecionadas e ultrapassadas – o que vem a contribuir para o emburrecimento de seus leitores cristãos, que ficam privados de um conhecimento arqueológico de qualidade. Livros que fazem sucesso entre os leitores, e que podem trazer informações úteis sobre teologia e religiosidade, mas que apresentam informações equivocadas, ultrapassadas e altamente tendenciosas sobre a ciência e história.
Livros defasados, como “Arqueologia do Velho Testamento”, de Merril F. Unger, (Editora Batista Regular), e “Merece Confiança o Antigo Testamento?”, de Gleason L. Archer Júnior, (Editora Vida Nova), que ainda são muito citadas no mundo cristão, podem trazer diversos prejuízos não somente para o conhecimento tanto leigo e acadêmico sobre arqueologia, mas também para a própria fé cristã, pois a confiança do crente acaba por ser depositada sobre um erro.
As descobertas arqueológicas existem não para destruir os textos bíblicos, mas para complementá-los. Se, por exemplo, a arqueologia descobre que a Conquista de Canaã pelos israelitas, relatada nas páginas da Bíblia, jamais ocorreu, isso é um indício de nosso modo corriqueiro de interpretar o texto Bíblico está errado. Significa que temos que interpretar o texto bíblico não como um fato histórico, mas como um produto literário das circunstancias sociais, culturais e religiosas de quem ou do grupo que escreveu esse texto. Nesse quesito, a arqueologia é essencial para uma leitura mais cientifica da Bíblia e para uma reformulação da hermenêutica bíblica moderna e exegese.
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Notas:
[1] Aqui no Brasil, o título desse livro foi “...E a Bíblia tinha razão”, livro bastante difundido entre o público leigo e cristão.
[1] Aqui no Brasil, o título desse livro foi “...E a Bíblia tinha razão”, livro bastante difundido entre o público leigo e cristão.
Um comentário:
É como os politicos costumam dizer: "O povo tem o que merece";povo ruim, então religiao ruim, politica ruim. Se revelar a verdade ao povo eles não a aceitarão mesmo sabendo que é a verdade.Precisam de uma mentira para confirmar seus sonhos e anseios, mesmo que nao leve a nada ou até a algum infortunio qualquer. O que importa para eles é viver o sonho do que enfrentar a realidade dura; viver é preciso.
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