Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de História das Religiões, v. 2, p. 259-276, 2009.
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O IMPÉRIO E A CRUZ: REFLEXOS DA TEOLOGIA IMPERIAL ROMANA NA CRISTOLOGIA DA IGREJA PRIMITIVA (parte 02)
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O IMPÉRIO E A CRUZ: REFLEXOS DA TEOLOGIA IMPERIAL ROMANA NA CRISTOLOGIA DA IGREJA PRIMITIVA (parte 02)
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Prof. Vieira Lima Jr.
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Assimilação intercultural e os evangelhos bíblicos
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Os documentos cristãos cuja autoria tradicional tem sido atribuída a certo “Lucas” e que compõem quase a metade do Novo Testamento, se caracteriza de forma bastante peculiar. São documentos diferentes de qualquer outro encontrado dentro ou foram do cânon. Sua principal marca é a personalidade distinta, culta e cativante do autor, bem como sua preocupação com a informação e com a ordem dos acontecimentos narrados, fazendo-o, de acordo com diversos comentaristas, equiparar-se a outros escritores talentosos da época clássica, inclusive com historiadores como Josefo, Tácito e Tucídides.
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A preocupação desse evangelista com a missão gentílica e diversos aspectos do mundo mediterrâneo faz de seu evangelho o “Evangelho dos Gentios”, e de seu Atos dos Apóstolos a primeira tentativa de se criar uma “historia das origens cristas” de que temos noticia – ambos constituindo uma unidade documental que, no presente trabalho, será tratada dessa maneira.
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É nesse contexto que começam a surgir dentro de sua narrativa evangélica paralelos entre Jesus e outros personagens importantes da historia pagã, principalmente os imperadores romanos.
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O Jesus que o “Evangelho dos Gentios” apresenta é um Jesus helenizado, elaborado de acordo com as ideologias e imperativos da igreja primitiva e de acordo com as intenções literárias desse evangelista. Os elementos helênicos existentes nesse evangelho são gritantes, todos revelando o antagonismo existente contra o império romano e as atribuições lendárias à memória cristã decorrentes desse antagonismo.
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A infância de Jesus, relatada por Lucas, corresponde a um período, do ponto de vista histórico, bastante problemático, mas também bastante rico em atribuições do imaginário.
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Meier (1993, p. 208, grifo nosso) comenta que:
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Pouco ou nada se pode dizer com certeza ou alto grau de probabilidade sobre o nascimento, a infância e os primeiros anos da vasta maioria das figuras históricas do antigo mundo mediterrâneo. Em casos excepcionais de personagens proeminentes, como Alexandre, o Grande, ou o Imperador Otávio Augusto, alguns fatos foram preservados, embora frequentemente entremeados de elementos míticos e lendários. O mesmo padrão é encontrado no Antigo Testamento [...] A tendência à expansão desses elementos “midráshicos[1]” continua para além das Escrituras Canônicas e em várias “recontagens” das narrativas do Antigo Testamento, como por exemplo em Antiguidades Judaicas, de Josefo, e na Vida de Moisés, de Fílon, assim como nos midrashim posteriores rabínicos. Considerando-se este fenômeno de histórias de nascimentos ou infância prodigiosas, compostas para celebrar antigos heróis, judeus e pagãos igualmente, devemos encarar com cautela as Narrativas da Infância de Jesus incluídas nos Capítulos 1 e 2 de Mateus e Lucas.
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De fato, no que se refere às narrativas da infância de Jesus não se pode identificar quaisquer traço de historicidade que possa oferecer informações confiáveis (MEIER, 1993, p. 211). A criação de ficções e a assimilação de elementos lendários são comuns nesse tipo de relato. Isso porque a existência de lacunas nas tradições de Jesus que precisavam ser preenchidas era imensa. Existem lacunas em praticamente todas as dimensões do conhecimento histórico sobre Jesus, transmitidas pelas fontes antigas: nos ensinamentos, relatos, mensagem, atos, ditos, infância, puberdade, nascimento, caráter, personalidade, etc.
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Um dos diversos exemplos que podem ser tomados para ilustrar esse fato se consiste nas estórias bíblicas sobre o nascimento e infância de Jesus. Segundo Brown (2005), toda a tradição herdada sobre Jesus se limita ao tempo de duração de seu ministério[2], o que significa que não existiram materiais tradicionais antigos sobre a infância de Jesus.
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Essa ausência de materiais antigos sobre a infância de Jesus possibilitou a elaboração de materiais que foram assimilados pela tradição e passaram a fazer parte da memória de Jesus. A criação dessas lacunas ajudou no processo de metamorfose da imagem de Jesus, a qual começou antes desses documentos terem sido escritos:
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Não se deve perder de vista que a redação final dos evangelhos não foi feita sem antes ter passado por um complexo período oral, havendo, portanto, uma seleção natural dos relatos que estavam sendo redigidos. Esse processo, longo e gradual, influenciou o rumo teológico que estava em formação nas comunidades cristãs (SCARDELAI, 1998, p. 299).
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Essa fase de metamorfoses da imagem de Jesus anterior aos escritos bíblicos é denominada de “fase oral” das tradições cristãs primitivas. Foi nessa fase que criaram diversas concepções e estórias sobre Jesus – muitas das quais oriundas da imaginação popular e não da memória recebida.
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Tradições populares são elementos constantes de todas as culturas, caracterizadas pela “oralidade” e se metamorfoseiam de acordo com a imaginação individual ou coletiva. São características básicas e bastantes presentes na história da cultura de todas as civilizações.
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A redação dos Evangelhos bíblicos se deu uma etapa mais avançada da história do cristianismo primitivo, cujo intuito foi “oficializar” as tradições recebidas “populares” que mais tarde se tornaram o núcleo da fé cristã ocidental.
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Tradições orais possuem características bastante específicas. De acordo com Arens (2007, p. 71-72), “pelo fato mesmo da comunicação ao longo do tempo, em toda comunicação oral se produz uma série de alterações”.
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De fato, o período oral das tradições de Jesus foi o bastante para que várias lendas e acréscimos se desenvolvessem na tradição popular sobre a imagem de Jesus – a qual acabou se tornando uma “imagem de culto” elaborada pela imaginação coletiva. Por isso, Meier (1998, p. 150), de forma honesta, comenta que: “É preciso levar em conta a criação de lendas na tradição do evangelho”.
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A influência da cultura helenística e romana na formação da identidade cristã
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Duas das mais importantes matrizes para a criação e assimilação de material a tradição de Jesus foi a cultura helenística e a romana. Sendo que: “[...] os camponeses judeus, inspirados por esperanças apocalípticas, não admitiam ser privados da sua liberdade do domínio opressivo estrangeiro e nacional” (HORSLEY, HANSON 1995, p. 63), era inevitável que houvesse antagonismos ao poder imperial regente na Judéia, muitos dos quais se deu através da violência armada, e que se cristalizaram sob a forma de “movimentos messiânicos” cujos principais objetivos era “a restauração da justiça socioeconômica” (HORSLEY, HANSON, 1995, p. 115).
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O próprio Jesus de Nazaré, fundador do movimento que deu origem ao cristianismo, foi violentamente perseguido e sumariamente executado através da crucificação porque as suas reivindicações sob a forma de pregação também negavam enfaticamente os poderes imperiais romanos e os poderes oligárquicos judaicos como legítimos.
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Desse modo, alguns judeus e cristãos poderiam adotar uma política de luta agressiva e direta contra os romanos, enquanto outros judeus e cristãos poderiam adotar outras estratégias, talvez menos explícitas.
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O “culto ao imperador” é um exemplo básico. Tão logo que o império disseminasse esse por todo o território subjugado (incluindo a Palestina judaica), culto este que concebia o imperador como “divino”, “senhor”, “salvador” e “conquistador do universo”, protestos vindo de vários movimentos messiânicos judaicos foram se tornando cada vez mais comuns, pois para os judeus seria impossível reverenciar outra divindade senão Yahweh (Deus).
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Uma das formas usadas pelo cristianismo primitivo para protestar contra o império foi equiparar (ou sobrepujar) Jesus a César como o “Senhor do Universo”. Pelo fato desse protesto ter se dado somente nos âmbitos da mentalidade e do discurso (pois não havia formas de se concretizar na realidade, mas apenas na crença), pode-se encontrar vestígios desse protesto em vários textos bíblicos e principalmente nos Evangelhos.
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Desse modo, um sincretismo religioso, em que elementos helênicos e atribuições lendárias romanos foram assimilados pela memória cristã primitiva, foi motivado pelo do antagonismo existente contra o Império Romano.
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Termos como “evangelho”, “salvador”, “fé”, “senhor”, “assembléias” (igrejas), foram termos cunhados pelo culto imperial e tomados pelo cristianismo primitivo como termos de praxe. De fato, vários atributos de César foram relacionados à figura de Jesus Cristo nas comunidades cristãs primitivas por causa da influência negativa que a visão imperial do mundo romano exerceu na mente dos primeiros cristãos. Era uma forma de “desafiar” o poder imperial romano.
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Continuando, Horsley (ibid., p. 29) lembra que:
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As cidades erigiam monumentos com inscrições que expressavam o credo do florescente culto ao imperador. Uma inscrição procedente da Assembléia Provincial da Ásia (Ásia Menor ocidental) datada do ano 9 a.C. oferece uma expressão vívida das honras divinas e do culto dedicado ao imperador como o salvador que trouxera paz e realizações:
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“Ó diviníssimo César... devemos considerá-lo igual ao Princípio de todas as coisas...; pois quando tudo caía [na desordem] e pendia para dissolução, ele restabeleceu a ordem e deu ao mundo inteiro uma nova aura; César... a boa fortuna comum de todos... O início da vida e da vitalidade... Todas as cidades adotam unanimemente o aniversário do divino César como o novo início do ano... Enquanto a Providência, que regulou toda a nossa existência... levou a nossa vida ao ápice da perfeição ao nos dar [o imperador] Augusto, a quem ela [Providência] encheu de força para o bem-estar dos homens, e que sendo enviado a nós e a nossos descendentes como Salvador, pôs fim à guerra e colocou todas as coisas em ordem; e [por isso,] tendo se tornado [deus] manifesto (phaneis), César realizou todas as esperanças de tempos anteriores... ao superar todos os benfeitores que o precederam..., e enquanto, finalmente, o aniversário do deus [Augusto] se tornou para o mundo inteiro o começo de boas-novas (euangelion) com relação a ele [portanto, que uma nova era comece a partir de seu nascimento]. (OGIS 2.#458)”.
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Crossan (2004, p. 450) afirma que: “Isso não é, já se vê, apenas uma série de coincidências acidentais”, e complementa: “Esse paralelismo fundamental é, portanto, antagonismo profundo: dois programas escatológicos que se chocam um com o outro. O cristianismo sabia disso desde o início e de maneira clara. Roma sabia disso desde o início, mas de maneira obscura” (CROSSAN, 2004, p. 451).
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O simbolismo do discurso antiimperialista nos anúncios sobre o nascimento de Jesus no Evangelho de Lucas
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De acordo com alguns pesquisadores, essa relação de antagonismo entre o Cristianismo e o Império Romano encarnou-se em narrativas simbólicas nos relatos da infância de Jesus nos evangelhos bíblicos – principalmente no Evangelho de Lucas.
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De fato, como a obra lucana é dupla – o terceiro evangelho e o Atos dos Apóstolos – podemos também perceber um duplo objetivo que vez por hora se entrelaçam em todas as narrativas: descrever a expansão do cristianismo como acontecimento de importância cósmica, pondo-a na estrutura cronológica do mundo, da historia e dos governantes seculares, os quais, todos, serão afetados por eles.
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Desse modo, Lucas tentou traçar a rota que mudaria o curso do mundo mediterrâneo – a rota do cristianismo. Por isso, coloriu suas narrativas com detalhes exatos – ou melhor, “vivos” – do mundo mediterrâneo, na medida em que narrava o processo de expansão missionária crista.
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O discurso de Paulo no Areópago, em Atenas, narrado em Atos 17, ilustra muito bem isso: era o cristianismo entrando e agitando o mundo secular dominado pelo Império Romano. Em Atos dos Apóstolos, Lucas dedica em atenção especial em citar, apuradamente, governantes e instituições políticas de varias polis e regiões da Ásia Menor e do Mediterrâneo, incluindo Instituições religiosas: Os “Neokoros” (Guardiões do Templo de Ártemis), os ouvires de Efeso, o procônsul Sergio Paulo, Gálio o procônsul da Acaia, os procônsules da Ásia, os “litores”, os “politarcas”, o Areópago (onde se faziam discursos políticos), o “homem principal de Malta”, “estratopedarca”, os tetrarcas, Quirino, etc.
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Um exemplo desse sincronismo artificial lucano entre o cristianismo e o mundo greco-romano pode ser ilustrado quando o autor do Evangelho de Lucas (3.1,22) introduz sua narrativa sobre o ministério terreno de Jesus da seguinte forma:
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No ano décimo quinto do império de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judéia, Herodes tetrarca da Galiléia, seu irmão Filipe tetrarca da Ituréia e da Traconítide, e Lisânias tetrarca de Abilene, sob o pontificado de Anás e Caifás, [...] o Espírito Santo desceu sobre [Jesus] em forma corporal, como pomba. E do céu veio uma voz: “Tu és o meu Filho; eu, hoje, te gerei”.
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A atenção enfática dada por esse evangelista aos governantes locais – e principalmente romanos – é ressaltada no relato sobre o nascimento de Jesus, que se deu, segundo o autor lucano, nos dias em que Quirino era governador da Síria, quando César Augusto promulgou um edito determinando que todo o mundo sob o jugo romano fosse recenseado (Lucas 2.1,2).
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Scardelai (1998, p. 131), ao observar o encadeamento existente no Evangelho de Lucas entre os acontecimentos que envolvem Jesus e os acontecimentos imperiais, como o recenseamento, exclama: “Não se sabe qual teria sido o interesse particular de Lucas em ligar o nascimento de Jesus ao censo”.
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Brown (2005, p. 496), por outro lado, afirma que o interesse particular de Lucas em ligar o nascimento de Jesus a esses acontecimentos romanos não é de todo desconhecido, e que não somente o nascimento, mas também seu ministério é colocado em uma consonância cronológica com o tempo romano, numa forma deliberada de justapor Jesus ao império:
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Lc 3,1-2 descreve o início do ministério [de Jesus] como acontecimento de importância cósmica, pondo-o na estrutura cronológica do mundo e dos governantes locais que, em última instância, serão afetados por ele. Do lado romano da lista de governantes, há Tibério César, o imperador, e depois Pôncio Pilatos, o governador local da Judéia – Lucas e seus leitores sabem que as ondas provocadas pela imersão de Jesus no Jordão vão finalmente começar a mudar o curso do Tibre[3]. E, assim, não é surpreendente que, quando retrocede o momento cristológico para a concepção e o nascimento de Jesus, Lucas dê ao nascimento também um lugar na estrutura cronológica dos governantes mundiais e locais, ao mencionar Augusto César, o imperador romano, e, em seguida, Quirino, o legado local da Síria. Ironicamente, o imperador romano, a figura mais poderosa do mundo, serve ao plano de Deus, promulgando um edito para o recenseamento de toda a terra. Ele proporciona o cenário apropriado para o nascimento de Jesus, o Salvador de todas aquelas pessoas que estão sendo registradas.
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Desse modo, os relatos lucanos seria uma resposta à propaganda imperial romana e a sua ideologia imperial e cultual.
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De acordo com Bonz (apud Koester, 2005, p. 55), o autor do Evangelho de Lucas (que foi o mesmo autor de Atos dos Apóstolos) não estava alheio aos meios propagandísticos do culto imperial: “o modelo literário da obra de Lucas foi a antiga epopéia grega recriada na obra latina de Eneida, de Virgilio”. A Eneida, de fato, trata sobre as origens de Roma e realiza elogios publicitários a César Augusto.
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Desse modo, o Evangelho de Lucas apresenta justaposições explícitas entre Jesus e César Augusto, em um jogo claro de contraposições em que a figura de Jesus Cristo não apenas assimila atributos e designações augustianas, mas também é colocado em um nível superior ao imperador romano.
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Em Lucas 2.1,9-11 (grifo nosso) consta o seguinte:
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Naqueles dias [do nascimento de Jesus], apareceu um edito de César Augusto [Καίσαρος Αὐγούστου], ordenando o recenseamento de todo o mundo habitado. [...] O anjo do Senhor apareceu-lhes [a José, Maria e aos pastores] e a glória do Senhor envolveu-os de luz; e ficaram tomados de grande temor. O anjo, porém, disse-lhe: “Não temais! Eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor, na cidade de Davi”.
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De acordo com Brown (2005), a intenção de Lucas, nessa passagem, é proporcionar ao nascimento de Jesus um lugar na estrutura cronológica de governantes mundiais e locais, ao mencionar Augusto César, o imperador, e em seguida, Quirino, o legado local da Síria.
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Na referida passagem, o autor do Evangelho de Lucas usa a palavra Αὐγούστου [Augoustou] para designar o César Augusto. Esse uso específico, que se caracteriza pela transliteração grega de um nome latim (e não em grego), não é comum. Em Atos 25.21-25, o autor usa a palavra grega Sebastos, equivalente grego do latim, como título. Desse modo, o autor de Lucas usa o nome individual de César com o objetivo de contrapô-lo ao nome de Jesus, também apresentado de forma individual (BROWN, 2005, p. 793).
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Essa contraposição entre Jesus Cristo e César Augusto é ainda mais acentuada pelo uso lucano do termo “hoje” (“Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor”), que denota o nascimento de Jesus e o contrasta às celebrações do dia do nascimento de César Augusto:
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A hipótese de que “neste dia, nasceu [...] um Salvador”, de Lucas (2,11) é alegação cristã contrária à propaganda imperial associada à celebração do aniversário de Augusto é realçada pelas descobertas em Roma que mostram o cuidado empregado na observância do dia do imperador: os cálculos da direção dos raios do Sol naquele dia tinham um papel importante no alinhamento dos monumentos relacionados a Augusto na cidade, a saber, o obelisco em Montecitorio, o Ara Pacis e o mausoléu (BROWN, 2005, p. 793).
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De acordo com Brown (2005, p. 497), a asserção na inscrição Priene de Augusto – “O nascimento do deus marcou o início da Boa-Nova para o mundo” – é reinterpretada por um anjo do Senhor com o brado heráldico: “[...] eu vos anuncio a Boa-Nova de uma grande alegria que será para o povo todo: Para vós, neste dia, nasceu na cidade de Davi um Salvador, que é Messias e Senhor” (Lc 2,10-11). De fato, essa passagem deixa clara a contraposição deliberada efetuada pelo autor do Evangelho de Lucas entre o César Augusto e Jesus Cristo.
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Desse modo, podemos afirmar que a narração lucana do nascimento de Jesus apresenta um “desafio implícito a essa propaganda imperial, não negando os ideais imperiais, mas proclamando que a verdadeira paz do mundo foi trazida por Jesus” (BROWN, 2005, p. 497).
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Brown (2005, p. 497) também comenta que as alusões lucanas a “paz” (cf. Lc 1.79; 2.14) também se enquadram nesse quadro de antagonismos fomentado pelo cristianismo antigo em relação ao culto imperial, pois enquanto os exércitos romanos proclamavam a “pax Augusta”, os exércitos celestiais proclamavam a “paz Christi”.
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A demonstração de extrema sabedoria precoce de Jesus enquanto ainda menino também faz parte do modelo bastante comum do imaginário da época de colocar o herói ou imperador romano como portador da sabedoria divina desde a infância:
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É criação comum em muitas culturas e literaturas fazer do menino o pai do homem, criando histórias da meninice de grandes figuras, que antecipam a grandeza do protagonista. Com freqüência, essas histórias caracterizam um conhecimento surpreendente demonstrado em uma idade entre dez e quatorze anos; por exemplo, histórias de Buda na índia, de Osíris no Egito, de Ciro, o Grande, na Pérsia, de Alexandre Magno na Grécia e de Augusto em Roma. [...] O propósito dessas histórias é mostrar a grandeza do protagonista desde o início de sua maturidade (BROWN, 2005, p. 576).
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De fato, nem César Augusto e nem Jesus de Nazaré escaparam de serem caracterizados como “prodígios” em suas infâncias: o primeiro motivado pela propaganda imperial que rondava em todo o império romano; o segundo motivado pela oposição à teologia imperial, pelo desejo de equiparar (ou mesmo superar) Jesus a César e pelo intento de mostrar a grandeza e a ascendência divina do messias desde o início de sua infância.
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Considerações finais
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Desse modo, torna-se clara a existência de um forte conflito ideológico entre primeiros cristãos e o culto imperial romano, mais especificamente do primeiro em relação ao segundo. Apesar da atitude anti-beligerante do cristianismo primordial em relação ao Império Romano, os cristãos primitivos não aceitaram de bom grado as propostas teológicas do culto que os dominadores traziam, e não se calaram diante da exigência de se prestar reverência e adoração a imagem do imperador.
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O marco desse trabalho foi demonstrar que discursos antiimperialistas estão presentes, ainda que de forma simbólica e camuflada, nos escritos do Novo Testamento cristão, que se constituem os primeiros escritos da religião cristã.
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As influências extra-cristãs na formação do imaginário cristão primitivo foram marcantes, sendo que, enquanto os cristãos primitivos não aceitavam as propostas teológicas do culto a imagem do imperador, utilizavam os elementos desse mesmo culto imperial para construir a imagem de culto a Jesus Cristo. Por isso, podemos concluir que a teologia imperial exerceu um importante papel na construção da cristologia e teologia cristã.
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Referências bibliográficas
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BRIEND, Jacques et al (org.). A criação e o dilúvio segundo os textos do oriente médio antigo. São Paulo: Paulinas, 1990.
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BROWN, Raymond E. O Nascimento do Messias: comentário das narrativas da infância nos evangelhos de Mateus e Lucas. São Paulo: Paulinas, 2005 (Coleção bíblia e história).
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CASSIO DIONE. Storia Romana. Traduzione di Alessandro Stroppa. Milano: BUR, 1998.
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COLLINS, Adela Yarbro. The combath myth in the Book of Revelation. Eugene: Wipf and Stock Publishers, 2001.
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CRAWFORD, M. H. Roman imperial coin types and the formation of public opinion. In: BROOKE, C. N. L. et al. (eds). Studies in Numismatic Method Presented to Philip Grierson. Cambridge: Cambridge University Press, 1983,
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CROSSAN, John Dominic. O nascimento do Cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2004.
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GINZBURG, Carlo. O queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006,
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GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. 8.ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
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HANSON, John S.; HORSLEY, Richard A. Bandidos, profetas e messias: movimentos populares no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1995.
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HORSLEY, Richard A. Jesus e o império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. Tradução de Euclides Luiz Calloni. São Paulo: Paulus, 2004.
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KNOHL, Israel. O Messias antes de Jesus. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2001.
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KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento: História e literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2005. Vol. II.
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MEIER, John P. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: as raízes do problema e da pessoa. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1993. Vol. I.
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_____________. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: Milagres. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Vol. II, livro III.
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SCARDELAI, Donizete. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus: Jesus e outros messias. São Paulo: Paulus, 1998.
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Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de História das Religiões, v. 2, p. 259-276, 2009.
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A preocupação desse evangelista com a missão gentílica e diversos aspectos do mundo mediterrâneo faz de seu evangelho o “Evangelho dos Gentios”, e de seu Atos dos Apóstolos a primeira tentativa de se criar uma “historia das origens cristas” de que temos noticia – ambos constituindo uma unidade documental que, no presente trabalho, será tratada dessa maneira.
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É nesse contexto que começam a surgir dentro de sua narrativa evangélica paralelos entre Jesus e outros personagens importantes da historia pagã, principalmente os imperadores romanos.
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O Jesus que o “Evangelho dos Gentios” apresenta é um Jesus helenizado, elaborado de acordo com as ideologias e imperativos da igreja primitiva e de acordo com as intenções literárias desse evangelista. Os elementos helênicos existentes nesse evangelho são gritantes, todos revelando o antagonismo existente contra o império romano e as atribuições lendárias à memória cristã decorrentes desse antagonismo.
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A infância de Jesus, relatada por Lucas, corresponde a um período, do ponto de vista histórico, bastante problemático, mas também bastante rico em atribuições do imaginário.
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Meier (1993, p. 208, grifo nosso) comenta que:
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Pouco ou nada se pode dizer com certeza ou alto grau de probabilidade sobre o nascimento, a infância e os primeiros anos da vasta maioria das figuras históricas do antigo mundo mediterrâneo. Em casos excepcionais de personagens proeminentes, como Alexandre, o Grande, ou o Imperador Otávio Augusto, alguns fatos foram preservados, embora frequentemente entremeados de elementos míticos e lendários. O mesmo padrão é encontrado no Antigo Testamento [...] A tendência à expansão desses elementos “midráshicos[1]” continua para além das Escrituras Canônicas e em várias “recontagens” das narrativas do Antigo Testamento, como por exemplo em Antiguidades Judaicas, de Josefo, e na Vida de Moisés, de Fílon, assim como nos midrashim posteriores rabínicos. Considerando-se este fenômeno de histórias de nascimentos ou infância prodigiosas, compostas para celebrar antigos heróis, judeus e pagãos igualmente, devemos encarar com cautela as Narrativas da Infância de Jesus incluídas nos Capítulos 1 e 2 de Mateus e Lucas.
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De fato, no que se refere às narrativas da infância de Jesus não se pode identificar quaisquer traço de historicidade que possa oferecer informações confiáveis (MEIER, 1993, p. 211). A criação de ficções e a assimilação de elementos lendários são comuns nesse tipo de relato. Isso porque a existência de lacunas nas tradições de Jesus que precisavam ser preenchidas era imensa. Existem lacunas em praticamente todas as dimensões do conhecimento histórico sobre Jesus, transmitidas pelas fontes antigas: nos ensinamentos, relatos, mensagem, atos, ditos, infância, puberdade, nascimento, caráter, personalidade, etc.
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Um dos diversos exemplos que podem ser tomados para ilustrar esse fato se consiste nas estórias bíblicas sobre o nascimento e infância de Jesus. Segundo Brown (2005), toda a tradição herdada sobre Jesus se limita ao tempo de duração de seu ministério[2], o que significa que não existiram materiais tradicionais antigos sobre a infância de Jesus.
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Essa ausência de materiais antigos sobre a infância de Jesus possibilitou a elaboração de materiais que foram assimilados pela tradição e passaram a fazer parte da memória de Jesus. A criação dessas lacunas ajudou no processo de metamorfose da imagem de Jesus, a qual começou antes desses documentos terem sido escritos:
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Não se deve perder de vista que a redação final dos evangelhos não foi feita sem antes ter passado por um complexo período oral, havendo, portanto, uma seleção natural dos relatos que estavam sendo redigidos. Esse processo, longo e gradual, influenciou o rumo teológico que estava em formação nas comunidades cristãs (SCARDELAI, 1998, p. 299).
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Essa fase de metamorfoses da imagem de Jesus anterior aos escritos bíblicos é denominada de “fase oral” das tradições cristãs primitivas. Foi nessa fase que criaram diversas concepções e estórias sobre Jesus – muitas das quais oriundas da imaginação popular e não da memória recebida.
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Tradições populares são elementos constantes de todas as culturas, caracterizadas pela “oralidade” e se metamorfoseiam de acordo com a imaginação individual ou coletiva. São características básicas e bastantes presentes na história da cultura de todas as civilizações.
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A redação dos Evangelhos bíblicos se deu uma etapa mais avançada da história do cristianismo primitivo, cujo intuito foi “oficializar” as tradições recebidas “populares” que mais tarde se tornaram o núcleo da fé cristã ocidental.
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Tradições orais possuem características bastante específicas. De acordo com Arens (2007, p. 71-72), “pelo fato mesmo da comunicação ao longo do tempo, em toda comunicação oral se produz uma série de alterações”.
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De fato, o período oral das tradições de Jesus foi o bastante para que várias lendas e acréscimos se desenvolvessem na tradição popular sobre a imagem de Jesus – a qual acabou se tornando uma “imagem de culto” elaborada pela imaginação coletiva. Por isso, Meier (1998, p. 150), de forma honesta, comenta que: “É preciso levar em conta a criação de lendas na tradição do evangelho”.
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A influência da cultura helenística e romana na formação da identidade cristã
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Duas das mais importantes matrizes para a criação e assimilação de material a tradição de Jesus foi a cultura helenística e a romana. Sendo que: “[...] os camponeses judeus, inspirados por esperanças apocalípticas, não admitiam ser privados da sua liberdade do domínio opressivo estrangeiro e nacional” (HORSLEY, HANSON 1995, p. 63), era inevitável que houvesse antagonismos ao poder imperial regente na Judéia, muitos dos quais se deu através da violência armada, e que se cristalizaram sob a forma de “movimentos messiânicos” cujos principais objetivos era “a restauração da justiça socioeconômica” (HORSLEY, HANSON, 1995, p. 115).
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O próprio Jesus de Nazaré, fundador do movimento que deu origem ao cristianismo, foi violentamente perseguido e sumariamente executado através da crucificação porque as suas reivindicações sob a forma de pregação também negavam enfaticamente os poderes imperiais romanos e os poderes oligárquicos judaicos como legítimos.
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Desse modo, alguns judeus e cristãos poderiam adotar uma política de luta agressiva e direta contra os romanos, enquanto outros judeus e cristãos poderiam adotar outras estratégias, talvez menos explícitas.
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O “culto ao imperador” é um exemplo básico. Tão logo que o império disseminasse esse por todo o território subjugado (incluindo a Palestina judaica), culto este que concebia o imperador como “divino”, “senhor”, “salvador” e “conquistador do universo”, protestos vindo de vários movimentos messiânicos judaicos foram se tornando cada vez mais comuns, pois para os judeus seria impossível reverenciar outra divindade senão Yahweh (Deus).
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Uma das formas usadas pelo cristianismo primitivo para protestar contra o império foi equiparar (ou sobrepujar) Jesus a César como o “Senhor do Universo”. Pelo fato desse protesto ter se dado somente nos âmbitos da mentalidade e do discurso (pois não havia formas de se concretizar na realidade, mas apenas na crença), pode-se encontrar vestígios desse protesto em vários textos bíblicos e principalmente nos Evangelhos.
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Desse modo, um sincretismo religioso, em que elementos helênicos e atribuições lendárias romanos foram assimilados pela memória cristã primitiva, foi motivado pelo do antagonismo existente contra o Império Romano.
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Termos como “evangelho”, “salvador”, “fé”, “senhor”, “assembléias” (igrejas), foram termos cunhados pelo culto imperial e tomados pelo cristianismo primitivo como termos de praxe. De fato, vários atributos de César foram relacionados à figura de Jesus Cristo nas comunidades cristãs primitivas por causa da influência negativa que a visão imperial do mundo romano exerceu na mente dos primeiros cristãos. Era uma forma de “desafiar” o poder imperial romano.
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Continuando, Horsley (ibid., p. 29) lembra que:
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As cidades erigiam monumentos com inscrições que expressavam o credo do florescente culto ao imperador. Uma inscrição procedente da Assembléia Provincial da Ásia (Ásia Menor ocidental) datada do ano 9 a.C. oferece uma expressão vívida das honras divinas e do culto dedicado ao imperador como o salvador que trouxera paz e realizações:
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“Ó diviníssimo César... devemos considerá-lo igual ao Princípio de todas as coisas...; pois quando tudo caía [na desordem] e pendia para dissolução, ele restabeleceu a ordem e deu ao mundo inteiro uma nova aura; César... a boa fortuna comum de todos... O início da vida e da vitalidade... Todas as cidades adotam unanimemente o aniversário do divino César como o novo início do ano... Enquanto a Providência, que regulou toda a nossa existência... levou a nossa vida ao ápice da perfeição ao nos dar [o imperador] Augusto, a quem ela [Providência] encheu de força para o bem-estar dos homens, e que sendo enviado a nós e a nossos descendentes como Salvador, pôs fim à guerra e colocou todas as coisas em ordem; e [por isso,] tendo se tornado [deus] manifesto (phaneis), César realizou todas as esperanças de tempos anteriores... ao superar todos os benfeitores que o precederam..., e enquanto, finalmente, o aniversário do deus [Augusto] se tornou para o mundo inteiro o começo de boas-novas (euangelion) com relação a ele [portanto, que uma nova era comece a partir de seu nascimento]. (OGIS 2.#458)”.
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Crossan (2004, p. 450) afirma que: “Isso não é, já se vê, apenas uma série de coincidências acidentais”, e complementa: “Esse paralelismo fundamental é, portanto, antagonismo profundo: dois programas escatológicos que se chocam um com o outro. O cristianismo sabia disso desde o início e de maneira clara. Roma sabia disso desde o início, mas de maneira obscura” (CROSSAN, 2004, p. 451).
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O simbolismo do discurso antiimperialista nos anúncios sobre o nascimento de Jesus no Evangelho de Lucas
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De acordo com alguns pesquisadores, essa relação de antagonismo entre o Cristianismo e o Império Romano encarnou-se em narrativas simbólicas nos relatos da infância de Jesus nos evangelhos bíblicos – principalmente no Evangelho de Lucas.
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De fato, como a obra lucana é dupla – o terceiro evangelho e o Atos dos Apóstolos – podemos também perceber um duplo objetivo que vez por hora se entrelaçam em todas as narrativas: descrever a expansão do cristianismo como acontecimento de importância cósmica, pondo-a na estrutura cronológica do mundo, da historia e dos governantes seculares, os quais, todos, serão afetados por eles.
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Desse modo, Lucas tentou traçar a rota que mudaria o curso do mundo mediterrâneo – a rota do cristianismo. Por isso, coloriu suas narrativas com detalhes exatos – ou melhor, “vivos” – do mundo mediterrâneo, na medida em que narrava o processo de expansão missionária crista.
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O discurso de Paulo no Areópago, em Atenas, narrado em Atos 17, ilustra muito bem isso: era o cristianismo entrando e agitando o mundo secular dominado pelo Império Romano. Em Atos dos Apóstolos, Lucas dedica em atenção especial em citar, apuradamente, governantes e instituições políticas de varias polis e regiões da Ásia Menor e do Mediterrâneo, incluindo Instituições religiosas: Os “Neokoros” (Guardiões do Templo de Ártemis), os ouvires de Efeso, o procônsul Sergio Paulo, Gálio o procônsul da Acaia, os procônsules da Ásia, os “litores”, os “politarcas”, o Areópago (onde se faziam discursos políticos), o “homem principal de Malta”, “estratopedarca”, os tetrarcas, Quirino, etc.
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Um exemplo desse sincronismo artificial lucano entre o cristianismo e o mundo greco-romano pode ser ilustrado quando o autor do Evangelho de Lucas (3.1,22) introduz sua narrativa sobre o ministério terreno de Jesus da seguinte forma:
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No ano décimo quinto do império de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judéia, Herodes tetrarca da Galiléia, seu irmão Filipe tetrarca da Ituréia e da Traconítide, e Lisânias tetrarca de Abilene, sob o pontificado de Anás e Caifás, [...] o Espírito Santo desceu sobre [Jesus] em forma corporal, como pomba. E do céu veio uma voz: “Tu és o meu Filho; eu, hoje, te gerei”.
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A atenção enfática dada por esse evangelista aos governantes locais – e principalmente romanos – é ressaltada no relato sobre o nascimento de Jesus, que se deu, segundo o autor lucano, nos dias em que Quirino era governador da Síria, quando César Augusto promulgou um edito determinando que todo o mundo sob o jugo romano fosse recenseado (Lucas 2.1,2).
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Scardelai (1998, p. 131), ao observar o encadeamento existente no Evangelho de Lucas entre os acontecimentos que envolvem Jesus e os acontecimentos imperiais, como o recenseamento, exclama: “Não se sabe qual teria sido o interesse particular de Lucas em ligar o nascimento de Jesus ao censo”.
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Brown (2005, p. 496), por outro lado, afirma que o interesse particular de Lucas em ligar o nascimento de Jesus a esses acontecimentos romanos não é de todo desconhecido, e que não somente o nascimento, mas também seu ministério é colocado em uma consonância cronológica com o tempo romano, numa forma deliberada de justapor Jesus ao império:
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Lc 3,1-2 descreve o início do ministério [de Jesus] como acontecimento de importância cósmica, pondo-o na estrutura cronológica do mundo e dos governantes locais que, em última instância, serão afetados por ele. Do lado romano da lista de governantes, há Tibério César, o imperador, e depois Pôncio Pilatos, o governador local da Judéia – Lucas e seus leitores sabem que as ondas provocadas pela imersão de Jesus no Jordão vão finalmente começar a mudar o curso do Tibre[3]. E, assim, não é surpreendente que, quando retrocede o momento cristológico para a concepção e o nascimento de Jesus, Lucas dê ao nascimento também um lugar na estrutura cronológica dos governantes mundiais e locais, ao mencionar Augusto César, o imperador romano, e, em seguida, Quirino, o legado local da Síria. Ironicamente, o imperador romano, a figura mais poderosa do mundo, serve ao plano de Deus, promulgando um edito para o recenseamento de toda a terra. Ele proporciona o cenário apropriado para o nascimento de Jesus, o Salvador de todas aquelas pessoas que estão sendo registradas.
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Desse modo, os relatos lucanos seria uma resposta à propaganda imperial romana e a sua ideologia imperial e cultual.
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De acordo com Bonz (apud Koester, 2005, p. 55), o autor do Evangelho de Lucas (que foi o mesmo autor de Atos dos Apóstolos) não estava alheio aos meios propagandísticos do culto imperial: “o modelo literário da obra de Lucas foi a antiga epopéia grega recriada na obra latina de Eneida, de Virgilio”. A Eneida, de fato, trata sobre as origens de Roma e realiza elogios publicitários a César Augusto.
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Desse modo, o Evangelho de Lucas apresenta justaposições explícitas entre Jesus e César Augusto, em um jogo claro de contraposições em que a figura de Jesus Cristo não apenas assimila atributos e designações augustianas, mas também é colocado em um nível superior ao imperador romano.
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Em Lucas 2.1,9-11 (grifo nosso) consta o seguinte:
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Naqueles dias [do nascimento de Jesus], apareceu um edito de César Augusto [Καίσαρος Αὐγούστου], ordenando o recenseamento de todo o mundo habitado. [...] O anjo do Senhor apareceu-lhes [a José, Maria e aos pastores] e a glória do Senhor envolveu-os de luz; e ficaram tomados de grande temor. O anjo, porém, disse-lhe: “Não temais! Eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor, na cidade de Davi”.
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De acordo com Brown (2005), a intenção de Lucas, nessa passagem, é proporcionar ao nascimento de Jesus um lugar na estrutura cronológica de governantes mundiais e locais, ao mencionar Augusto César, o imperador, e em seguida, Quirino, o legado local da Síria.
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Na referida passagem, o autor do Evangelho de Lucas usa a palavra Αὐγούστου [Augoustou] para designar o César Augusto. Esse uso específico, que se caracteriza pela transliteração grega de um nome latim (e não em grego), não é comum. Em Atos 25.21-25, o autor usa a palavra grega Sebastos, equivalente grego do latim, como título. Desse modo, o autor de Lucas usa o nome individual de César com o objetivo de contrapô-lo ao nome de Jesus, também apresentado de forma individual (BROWN, 2005, p. 793).
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Essa contraposição entre Jesus Cristo e César Augusto é ainda mais acentuada pelo uso lucano do termo “hoje” (“Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor”), que denota o nascimento de Jesus e o contrasta às celebrações do dia do nascimento de César Augusto:
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A hipótese de que “neste dia, nasceu [...] um Salvador”, de Lucas (2,11) é alegação cristã contrária à propaganda imperial associada à celebração do aniversário de Augusto é realçada pelas descobertas em Roma que mostram o cuidado empregado na observância do dia do imperador: os cálculos da direção dos raios do Sol naquele dia tinham um papel importante no alinhamento dos monumentos relacionados a Augusto na cidade, a saber, o obelisco em Montecitorio, o Ara Pacis e o mausoléu (BROWN, 2005, p. 793).
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De acordo com Brown (2005, p. 497), a asserção na inscrição Priene de Augusto – “O nascimento do deus marcou o início da Boa-Nova para o mundo” – é reinterpretada por um anjo do Senhor com o brado heráldico: “[...] eu vos anuncio a Boa-Nova de uma grande alegria que será para o povo todo: Para vós, neste dia, nasceu na cidade de Davi um Salvador, que é Messias e Senhor” (Lc 2,10-11). De fato, essa passagem deixa clara a contraposição deliberada efetuada pelo autor do Evangelho de Lucas entre o César Augusto e Jesus Cristo.
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Desse modo, podemos afirmar que a narração lucana do nascimento de Jesus apresenta um “desafio implícito a essa propaganda imperial, não negando os ideais imperiais, mas proclamando que a verdadeira paz do mundo foi trazida por Jesus” (BROWN, 2005, p. 497).
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Brown (2005, p. 497) também comenta que as alusões lucanas a “paz” (cf. Lc 1.79; 2.14) também se enquadram nesse quadro de antagonismos fomentado pelo cristianismo antigo em relação ao culto imperial, pois enquanto os exércitos romanos proclamavam a “pax Augusta”, os exércitos celestiais proclamavam a “paz Christi”.
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A demonstração de extrema sabedoria precoce de Jesus enquanto ainda menino também faz parte do modelo bastante comum do imaginário da época de colocar o herói ou imperador romano como portador da sabedoria divina desde a infância:
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É criação comum em muitas culturas e literaturas fazer do menino o pai do homem, criando histórias da meninice de grandes figuras, que antecipam a grandeza do protagonista. Com freqüência, essas histórias caracterizam um conhecimento surpreendente demonstrado em uma idade entre dez e quatorze anos; por exemplo, histórias de Buda na índia, de Osíris no Egito, de Ciro, o Grande, na Pérsia, de Alexandre Magno na Grécia e de Augusto em Roma. [...] O propósito dessas histórias é mostrar a grandeza do protagonista desde o início de sua maturidade (BROWN, 2005, p. 576).
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De fato, nem César Augusto e nem Jesus de Nazaré escaparam de serem caracterizados como “prodígios” em suas infâncias: o primeiro motivado pela propaganda imperial que rondava em todo o império romano; o segundo motivado pela oposição à teologia imperial, pelo desejo de equiparar (ou mesmo superar) Jesus a César e pelo intento de mostrar a grandeza e a ascendência divina do messias desde o início de sua infância.
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Considerações finais
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Desse modo, torna-se clara a existência de um forte conflito ideológico entre primeiros cristãos e o culto imperial romano, mais especificamente do primeiro em relação ao segundo. Apesar da atitude anti-beligerante do cristianismo primordial em relação ao Império Romano, os cristãos primitivos não aceitaram de bom grado as propostas teológicas do culto que os dominadores traziam, e não se calaram diante da exigência de se prestar reverência e adoração a imagem do imperador.
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O marco desse trabalho foi demonstrar que discursos antiimperialistas estão presentes, ainda que de forma simbólica e camuflada, nos escritos do Novo Testamento cristão, que se constituem os primeiros escritos da religião cristã.
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As influências extra-cristãs na formação do imaginário cristão primitivo foram marcantes, sendo que, enquanto os cristãos primitivos não aceitavam as propostas teológicas do culto a imagem do imperador, utilizavam os elementos desse mesmo culto imperial para construir a imagem de culto a Jesus Cristo. Por isso, podemos concluir que a teologia imperial exerceu um importante papel na construção da cristologia e teologia cristã.
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Referências bibliográficas
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SCARDELAI, Donizete. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus: Jesus e outros messias. São Paulo: Paulus, 1998.
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Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de História das Religiões, v. 2, p. 259-276, 2009.
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[1] Midrash, ou Midraxe, é o termo usado para se designar um gênero literário bastante comum entre os judeus na época de Jesus, em que passagens do Antigo Testamento são usadas em um novo contexto com um novo sentido. Através do Midrash, pode-se criar narrativas fictícias e tomá-las como verdadeiras, sendo que sempre se poderá alegar que a correspondente passagem no Antigo Testamento foi “profética” (Brown, 2005, p. 663).
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[1] Midrash, ou Midraxe, é o termo usado para se designar um gênero literário bastante comum entre os judeus na época de Jesus, em que passagens do Antigo Testamento são usadas em um novo contexto com um novo sentido. Através do Midrash, pode-se criar narrativas fictícias e tomá-las como verdadeiras, sendo que sempre se poderá alegar que a correspondente passagem no Antigo Testamento foi “profética” (Brown, 2005, p. 663).
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[2] O ministério de Jesus durou 1 (um) ano, segundo os Evangelhos sinópticos, e 3 (três) anos, segundo o Evangelho de João, do ano 29 d.C. a 31 d. (Meier, 1993).
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[3] O Tibre é um rio no território italiano, com nascente na Toscana, cujas margens passam por Roma (cf. GIORDANI, 1985).
3 comentários:
Quanto a questão das fontes, John.P. Méyer observou:
"(...)Quaisquer concordâncias entre os dois [Mateus e Lucas] nessas narrativas se tornam historicamente significativas, em especial quando o critério da múltipla confirmação é invocado. Essas concordâncias em duas narrativas independentes e profundamente contrastantes representariam, no mínimo, um recurso a uma tradição mais antiga, e não a criação dos evangelistas".
- extraído de Um Judeu Marginal. Repensando o Jesus Histórico. Volume Um: As Raízes do Problema e da Pessoa, Rio de Janeiro, Imago, 1993,pp. 213-214.
Então podemos ver um continuum básico entre Mateus e Lucas:
A – Ambos contextualizam o nascimento de Jesus durante o governo de Herodes Magno (Mt. 2.1; Lc. 1.27-34).
B – Maria não tivera relações com José antes de engravidar (Mt.1.18; Lc 1.27-34)
C – José não está envolvido na concepção de Jesus (Mt. 1.18-25; Lc. 1.34)
D – José é da linhagem de Davi (Mt. 1.16-20; Lc. 1.27; 2.4).
E – O anjo anuncia a concepção e o nascimento de Jesus ( Mt. 1.20-21; Lc. 1.28-30)
F – Jesus descende de Davi (Mt.1.1; Lc.1.32)
G – A designação do nome de Jesus antes do nascimento (Mt. 1.21; Lc. 1.31)
H - Jesus virá ao mundo concebido pela ação do Espírito Santo (Mt. 1.18- 20; Lc 1.35)
I – Jesus tem sua vocação como ‘Salvador’ da parte de Deus ( Mt.1.24-25; Lc. 2.11)
J – José e Maria se casaram antes de Jesus nascer (Mt. 1.24-25; Lc. 2. 4-7)
K – Jesus nasce em Belém (Mt. 2.1; Lc. 2.4-7)
L – A família vai residir em Nazaré (Mt. 2.22-23; Lc. 2.39-51)
Claro que cada Evangelho é influenciada pela comunidade de onde vem, e cada editor escolheu quais aspectos do ensinamento de Jesus para enfatizar a servir o seu propósito ao escrever seu Evangelho, conferindo tonalidades de acordo com o que vivia e tinha como propósito ao escrever.
Mas Martin Hengel “Four Gospels And The One Gospel Of Jesus Christ”, e mais recente, Richard Bauckham “Jesus and the Eyewitnesses”, derrubaram as teses a respeito de transmissões orais por “rostos coletivos anônimos”, reportando-se a testemunhas dos eventos para obter legitimação. Isso não implica imparcialidade nem precisão técnica, mas sim um controle, sendo que este último ainda ressalta se reportar a personagens-chave conhecidos das comunidades (que incluiriam parentes de Jesus conversos) e líderes, como os da igreja de Jerusalém que seria um centro irradiador (e guardião) das tradições. A possibilidade inclusive de tradições provenientes da mãe de Jesus, Maria, ou do período do ministério do mesmo com os discípulos. Isso não tomando concordância com os dois em detalhes, de forma alguma, mas pegando um amálgama geral de ambas as contribuições (que poderiam também se somar a linha de crítica que Mark Goodacre faz à perspectiva de fontes que baliza as linhas das críticas das fonte mais radicais).
p.s. pelo que lembro, Méier afirmara que João requereria perto de 3 anos. Afirmou que Marcos 1 ano e Lucas e Mateus 1 ano e alguns meses, pelo menos. Mas afirmou também que eles não requerem que não possa ser mais do que esse período para o ministério de Jesus.
1 – Meier foi bastante honesto ao propor que a tradição oriunda de fonte múltipla e independente deve remontar a tradição. Logicamente, é impossível que qualquer fonte independente sobre um fato tenha inventado esse fato. No entanto, deve-se ressaltar que tal critério não é garantia de verdade, uma vez que, no caso concreto da virgindade de Jesus, existem tradições paralelas que se silenciam e que a contradizem. A opinião do mestre de Meier, Ray Brown, é que os relatos da infância de Jesus carecem de historicidade em geral, e Meier concordou com isso.
2 - Critérios de Historicidade, como o da Múltipla-Escolha, não podem ser aplicados em supostos acontecimentos sobrenaturais/míticos, pois a característica do mito é ser revestido de historicidade. Malinowsky, por exemplo, dizia que a maior parte dos mitos que encontrou erram narrados por supostas testemunhas oculares e por um multidão de testemunhos. Por isso, crenças como Ressurreição e Nascimento Virginal não podem ser confirmados mediante esses critérios. Inclusive estou escrevendo um artigo sobre a “Historicidade do Mito”, tendo como tese a proposta que não se deve avaliar narrativas mitológicas ou suspeitamente mitológicas da mesma forma como se avalia narrativas históricas.
3 – Brown derruba a possibilidade de Maria ter sido uma fonte na infância no livro “O Nascimento do Messias”. Creio que muita tradição remonte aos apóstolos, mas identificar quais é uma tarefa complicada. A origem da tradição pode ser individual, mas a transmissão e as metamorfoses com certeza são coletivas.
4 – Você frisou as concordâncias. Mas as discordâncias são até mesmo mais significativas, por serem tão grosseiras e ambas as narrativas serem tão heterogêneas, trazendo tradições impares e dissonantes. Não estou convencido de que tradições como “nascimento em Belém”, “descendência de Davi”, “José não está envolvido na concepção de Jesus”, “Maria não teve relação”, entre outra seja realmente histórica. Existe tradição antiga contradizendo tais fatos em outras fontes. Além de serem propaganda religiosa para engrandecer a imagem de Jesus, o modelo de narrativa de muito desses fatos pertence à cultura helenística, não a judaica. A propensão a inventar era grande entre os cristãos, já que o conceito de verdade, mentira e ficção eram diferentes do nosso.
Uma questão deve ser colocada na análise do novo testamento: são textos maldosos? Numa época que os fariseus estão em rebeldia, eles são atacados. Suas tradições são atacadas. O personagem do novo testamento, Cristo, tem poderes de cura, mas não ensina nem como usar a penicilina, que é produto da natureza, um fungo. Querem achar o Jesus histórico? Mas nem o nome do homem se sabe. Outra questão é que a organização e a hierarquização da religião não tem nada dos judeus.
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