Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de História das Religiões, v. 2, p. 259-276, 2009.
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O IMPÉRIO E A CRUZ: REFLEXOS DA TEOLOGIA IMPERIAL ROMANA NA CRISTOLOGIA DA IGREJA PRIMITIVA (parte 01)
Prof. Vieira Lima Jr.
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Considerações iniciais
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O presente trabalho propõe a existência de um forte antagonismo cristão ao Império Romano no primeiro século e de um conflito ideológico em relação ao culto imperial romano que pode ser rastreado nos textos do Novo Testamento a partir de novas abordagens hermenêuticas e histórico-exegética, revelando que o cristianismo começou como uma religião de protesto e resistência ideológica, essencialmente de cunho antiimperialista e consolidou diversas formas de protesto em seus discursos. Porém, foi um protesto velado: simbolismos que degradavam o imperador na mesma medida em que elevava a figura de Jesus, declarações de que Jesus era o “Senhor” do mundo, que implicava ser ele o verdadeiro imperador e não César, narrativas parabólicas sobre a expulsão dos romanos das terras judaicas, e a criação do epíteto “Besta” para designar todo o Império.
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No entanto, para que se possa analisar tal realidade histórica, é necessário que comecemos a partir da situação dos judeus da Palestina do século I. Subjugados por um império estrangeiro (Roma) e possuindo uma rica tradição político-religiosa e nacional, os judeus lembravam-se amargamente da época em que foram subjugados e deportados pelo Império Babilônico, no século VII a.C., até que um rei libertador (Ciro, o Grande, da Pérsia) concedeu-lhes a liberdade que tanto aspiravam, sendo proclamado “ungido” (messias) (SCARDELAI, 1998).
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A memória do chamado “Cativeiro Babilônico” ficou gravada para sempre nas tradições judaicas como símbolo da opressão, da desgraça e da vergonha. Por isso, era inevitável que tais lembranças se associassem a situação presente, e que o povo judeu visse no Império Romano uma nova “Babilônia” , um novo símbolo da opressão, da desgraça e da vergonha.
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De acordo com Horsley e Hanson (1995, p. 43):
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Depois do governo duramente opressivo dos reis dependentes de Roma (Herodes e seus filhos), seguiu o governo direto dos governadores do império estrangeiro, algo que os judeus não tinham experimentado desde a conquista babilônica e persa inicial.
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A presença romana representou um choque na mente dos judeus da Palestina da época de Jesus, pois simbolizava não somente a escravidão, mas também a distância do povo em relação a Deus.
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O presente trabalho, ao propor a existência de um forte antagonismo cristão ao Império Romano no primeiro século e de um conflito ideológico em relação aos primeiros cristãos com o culto imperial romano que pode ser rastreado nos textos do Novo Testamento, começa, contraditoriamente, enfatizando a impossibilidade de tal idéia.
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Novas abordagens hermenêuticas e histórico-exegéticas tem revelado que o cristianismo começou como uma religião antiimperialista e consolidou diversas formas de protesto em seus discursos. Porém, foi um protesto velado: simbolismos que degradavam o imperador na mesma medida em que elevava a figura de Jesus, declarações de que Jesus era o “Senhor” do mundo, que implicava ser ele o verdadeiro imperador e não César, narrativas parabólicas sobre a expulsão dos romanos das terras judaicas, e a criação do epíteto “Besta” para designar todo o Império.
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O objetivo do presente trabalho é apresentar indícios, ainda que indiretos (mas nem por isso inconclusivos) da existência de um discurso antiimperialista nas narrativas dos Evangelhos bíblicos e de outros escritos neotestamentários.
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A partir da constatação desses indícios, propomos que a influência da ideologia e propaganda imperiais romanas foi decisiva para a formação da imagem de culto a Jesus Cristo, que se moldou na medida em que os escritos do Novo Testamento eram escritos.
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O trabalho parte de uma abordagem historiográfica e comparativa, onde se analisa o material bibliográfico contemporâneo e se faz uma análise na documentação textual antiga, principalmente de antigos documentos cristãos e romanos. Esperamos com isso trazer novas luzes sobre as origens do cristianismo e seu lugar no mundo mediterrâneo e judaico do qual nasceu e floresceu.
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Cristianismo, circularidade cultural e o conceito de transformação intercultural
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Carlo Ginzburg (2006, p. 10), ao fazer alusão a “circularidade” da cultura na Europa pré-industrial, afirma que: “Entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas [...] [existe] um relacionamento circular feito de influencias recíprocas, que se move de baixo para cima, bem como de cima para baixo”.
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Uma das formas de circularidade da cultura reside no processo de transformação de determinado elemento cultural sofre no decorrer das influencias recíprocas. De fato, pode-se observar que diversos elementos culturais, mesmo aqueles que sofrem resistência e rejeição, não são ao todo “abandonados”, mas, ao invés disso, são transformados e assim penetram no âmago cultural de diferentes classes, sejam elas dominantes ou subalternas, constituindo um jogo de metamorfoses dialéticas.
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Uma forma de transformação é realizada no processo de sincretismo religioso, como acontece com a religião cristã. De fato, é notório que o imaginário mágico-taumaturgico do cristianismo traz consigo diversos paralelos com outras formas de manifestação do imaginário mágico em geral, principalmente o pagão. Principalmente em nível popular, se observa que diversos elementos pertencentes ao âmbito extra-cristão, ao invés de serem eliminados, são simplesmente transformados, absorvidos e assimilados as formas de culto populares, influenciando até mesmo as formas normativas da religião cristã – constituindo um “sincretismo religioso”.
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O antiimperialismo no livro de Apocalipse de João
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O Apocalipse de João descreve, de modo metafórico, as experiências de perseguição, opressão e violência que as comunidades cristãs sofreram no último quarto do primeiro século, exercidas pelo império opressor. A referência ao sangue dos mártires e do cordeiro degolado (Apoc. 1.5,7; 5.6,9,12; 7.14; 12.11; 19.7,9,13), do qual Deus “toma vingança” (6.10; 19.2), o testemunho do próprio autor, denominado João, que havia sofrido perseguição, razão para ter sido exilado na ilha do Patmos (1.9), sendo que um de seus companheiros, chamado “Antipas”, havia sofrido destino pior, sendo martirizado (2.13), mostra como as perseguições aos cristãos eram comuns no final do primeiro século e quanto a comunidade cristã ansiava por denunciar esses crimes do império.
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Na ocasião da abertura do quinto selo, são vistas debaixo do altar as almas de pessoas degoladas por causa do testemunho dado a Cristo (6.9-11). Do mesmo modo, as duas testemunhas de Deus são assassinadas em Jerusalém, em peleja contra a “Besta” (Roma) (11.7-8). O “dragão”, símbolo do império romano, guerreia injustamente contra os filhos da mulher (a igreja) (12.17). Apocalipse 13 realiza uma descrição detalhada acerca dos mecanismos econômicos de opressão e violência que caracterizaram ao império romano (13.16-17). Os capítulos 17.18 descrevem em detalhe a riqueza obscena da “Babilônia” (Roma), a “grande prostituta” que se conluia com os reis da terra.
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Desse modo, o tema do martírio cristão imposto pelo Império Romano e sua denuncia é central para o autor desse livro.
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Na época em que o livro de Apocalipse de João foi escrito, o imperador Domiciano se conclamava “Senhor e Deus” (dominus et deus) (KOESTER, 2005, p. 269), e portanto foi o principal inspirador da repulsa ao culto imperial apresentado de forma explícita porém simbólica ao longo de todo o livro de Apocalipse.
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No ano 112 d.C., Plínio II, governador romano da Bitínia, província da Ásia Menor, envia uma carta ao imperador Trajano a respeito dos “cristãos”, os quais estavam sendo acusados de vários crimes: negavam-se a dar culto ao imperador, mas somente cantavam hinos a “Cristo como único Deus” e observavam certos preceitos como não furtar, não roubar, não cometer adultério e não enganar. Desse modo, fica claro que a repulsa cristã ao culto imperial era constante no começo do século II d.C. e no final do primeiro século.
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Inúmeras são as referências antiimperialistas no livro de Apocalipse. No entanto, nos concentraremos em somente uma: o simbolismo da besta. De acordo com Koester (2005, p. 271), da época em que o Apocalipse de João foi escrito “era necessário encontrar uma resposta que desse sentido à experiência da igreja cristã aflita e temerosa. O profeta João se propõe a dar essa resposta e a fortalecer a visão de que Cristo e não César era o governante predestinado do mundo”.
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Koester (2005, p. 274, 275) comenta que, para o autor do livro de Apocalipse, o Estado romano (13.1-10) e seu governante (13.11-18) são os verdadeiros inimigos do reino divino na terra, como um poder oposto a Deus:
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Este inimigo de Deus exerce seu poder maléfico por meio da adoração, o culto ao imperador, que perverte e destrói todas as nações (13.6-10,15-17). A única alternativa é fidelidade ao Cordeiro (14.1,5). João não censura o mal no mundo em geral, mas atribui esse mal a uma única causa: o culto ao imperador. [...] Nas afirmações sobre Roma, e especialmente na lamentação dos mercadores depois da queda de Roma, a crítica ao poder econômico que domina o mundo, consubstanciado em Roma, é o ponto central.
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A justaposição entre Cristo e a Besta e seu falso profeta por João reflete claramente a oposição do cristianismo e de seu Messias ao poder imperial personificado na figura de César. Segundo Koester (2005, p. 275), a simbologia numérica do Apocalipse retrata César Nero, que seria concebido pelos seus adoradores como “um messias pagão”:
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É admissível que o número 666 (13,18), o número 8 (17,11) e também a interpretação do animal (13,3;17,10-12) se refiram ao retorno esperado do imperador Nero, o Nero Redvivus. 1 + 2 + 3 +...+ 8 = 36 e 1 + 2 + 3 +...+ 36 = 666, o que é o equivalente das letras CAESAR NERON no sistema numérico grego. O Nero Redvivus, que é rejeitado por João, não é o perseguidor cruel dos cristãos , mas a figura amada de crenças populares disseminadas, uma espécie de figura messiânica pagã.
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Já Knohl (2001, p. 46) afirma que o simbolismo da Besta é anterior a Cesár Nero, remontando a Augusto César, sendo que a descrição da narrativa apocalíptica se enquadra de forma mais adequada no contexto desse imperador romano:
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Ao longo da história do cristianismo, todos os tipos de interpretações foram sugeridos para a visão das duas bestas, mas ao que consta até agora nenhuma explicação realmente convincente foi dada. Em minha opinião, a chave para o entendimento da visão é nos conscientizarmos de que João, que parece ter escrito o livro da Revelação (ou Apocalipse) por volta de 80 E.C., se valeu de uma composição mais antiga, redigida no início do século I E.C., durante o reinado de Augusto.
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Para demonstrar que o simbolismo apocalíptico da Besta remonta a Augusto César, Knohl (KNHOL, 2001, p. 46. Cf. SUETÔNIO, 2006, p. 135) afirma que existe uma relação muito próxima entre as características da Besta de dois chifres e o símbolo imperial de Augusto, a saber, o signo de Capricórnio:
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A segunda besta é descrita com dois chifres como os de um cordeiro e com fala de dragão. Essa estranha combinação de dragão com chifres de cordeiro pode ser devidamente explicada pela propaganda com relação à origem divina de Augusto. A figura de um cabrito ou um bode com dois chifres – o Capricórnio – ocupava um lugar destacado no mito da divindade de Augusto, pois era o signo do mês de sua concepção.
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De fato, a figura de um Capricórnio, um tipo de bode com corpo de peixe e dois chifres sustentando o globo do mundo, aparece em moedas romanas da época sob a inscrição “Augustus” (CRAWFORD, 1983, p. 52).
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Já a alusão apocalíptica ao dragão pode também remontar ao imperador Augusto. De acordo com Suetônio e Cássio Dion (CASSIO DIONE, 1998. cf. 45.1,2), a Átia, mãe de Augusto, afirmou ter mantido relações sexuais com um dragão (serpente, segundo outras versões), enquanto dormia no templo de Apolo e que naquele momento concebia Augusto, que nasceria nove meses depois.
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O dragão simbolizava o deus Apolo (o deus protetor ou o “pai”, segundo o imaginário da época, de Augusto), cujo título “Apolo Pítico” havia recebido depois que matou Píton, um terrível dragão que vivia na caverna de Delfos (Cf. COLLINS, 2001) . Por isso, Augusto também foi representado como Apolo, como um dragão.
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Desse modo, o simbolismo da besta de dois chifres que falava como um dragão representava o imperador Augusto. Os dons proféticos de Apolo, que inspirada os oráculos de Delfos, foram atribuídos a Augusto, sendo que:
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O autor da visão do Apocalipse argumentava contra a propaganda de Augusto, sustentando que este não era um verdadeiro, mas sim um falso profeta, que falava como um dragão. [...]. Enquanto Augusto usava o mito de Apolo com o fim de conferir a divindade deste a si mesmo, o autor da visão usou o mesmo mito para representá-lo como um terrível dragão (KNHOL, 2001, p. 48).
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Desse modo, ao associar a figura do imperador com um dragão e uma besta selvagem (principalmente com a besta de Daniel) o autor de Apocalipse contrapõe, de modo simbólico, o cristianismo e seu messias ao império romano e seu imperador, numa forma de protesto ao culto e a hegemonia romano do mundo – cujo verdadeiro imperador não é outro senão Jesus Cristo.
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A imagem da primeira besta, por sua vez, que foi adorada pelos habitantes da terra a mando do falso profeta (13.12), representa Roma, cuja uma das cabeças foi “ferida mortalmente” por um golpe desferido contra ela. De acordo com Knhol (2001, p. 48, 49):
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O golpe na cabeça foi desferido pelos conspiradores que assassinaram Júlio César, mas o império romano se recuperou e continuou a dominar o mundo. Portanto, a imagem da primeira besta, que o falso profeta havia convencido todos os habitantes da terra a adorar, era a estátua representando o Império Romano. O fato é explicado por Suetônio, que registra a ordem de Augusto para a colocação de uma estátua da deusa Roma, símbolo do Império Romano, junto à estátua do imperador nos templos erigidos em sua honra. Augusto era o falso profeta do culto imperial à estátua de Roma.
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Para Knohl (2001, p. 52), o indício mais certo de que Augusto e seu culto imperial é o foco no capítulo 11, 12 e 13 de Apocalipse consiste na declaração sobre o átrio externo do templo de Jerusalém: “Foi-me dada uma vara semelhante a uma vara de agrimensor, e disseram-me: Levanta-te! Mede o templo de Deus e o altar com seus adoradores. O átrio fora do templo, porém, deixa-o de lado e não o meças: foi dado aos gentios” (Apocalipse 11.2,3).
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Na ocasião da Guerra Judaica contra Roma, que se deu entre os anos 66 e 70 d.C., os romanos capturaram tanto o átrio quanto o templo. Por isso, a descrição apocalíptica não se enquadra com estes eventos. No entanto, durante a revolta dirigida pelos judeus contra o sucessor de Herodes Magno, Arquelau, no ano 4 a.C., os soldados romanos entraram no átrio do Templo e saquearam o tesouro, ateando fogo às câmaras externas do pátio, mas não entrando nos recintos interiores do Templo. De acordo com Knohl (2001, p. 52, 53), a realidade histórica do ano 4 a.C. se enquadra na passagem de Apocalipse 11.1-2 bem mais que a realidade histórica do ano 70 a.C.:
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A revolta de 4 a.C, foi brutalmente esmagada por Quintílio Varo, legado de Augusto para a Síria. Varo chegou da Síria com duas legiões e outras forças. Os soldados de seu exercito semeavam a destruição por onde passavam e violavam as mulheres; Varo crucificou dois mil dos rebeldes e outros foram feitos prisioneiros e vendidos como escravos. Os judeus consideraram Augusto, o César romano, responsável pela brutal repressão da revolta e pelo incêndio do pátio do Templo. [...] Aos olhos dos judeus, ele foi responsável pelas ações de seu legado Varo e seus soldados. À luz desse pano de fundo, podemos entender por que Augusto é pintado com tanto ódio nas fontes que temos examinado.
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Portanto, de uma forma ou de outra, fica claro o lugar central de Roma na crítica antiimperial do Apocalipse de João. Por isso, a contraposição acalorada para com Roma a transforma, nesse apocalipse, em uma Babilônia, a mãe das prostitutas, embriagada com o sangue dos santos e mártires (17.5-6). É a partir desse viés que João espera nada menos que sua destruição total e a restituição do reino da terra para seu verdadeiro senhor: “O sétimo anjo tocou a trombeta. Ressoaram então no céu altas vozes que diziam: O império de nosso Senhor e de seu Cristo estabeleceu-se sobre o mundo, e ele reinará pelos séculos dos séculos” (Apocalipse 11.15).
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Continua...
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Considerações iniciais
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O presente trabalho propõe a existência de um forte antagonismo cristão ao Império Romano no primeiro século e de um conflito ideológico em relação ao culto imperial romano que pode ser rastreado nos textos do Novo Testamento a partir de novas abordagens hermenêuticas e histórico-exegética, revelando que o cristianismo começou como uma religião de protesto e resistência ideológica, essencialmente de cunho antiimperialista e consolidou diversas formas de protesto em seus discursos. Porém, foi um protesto velado: simbolismos que degradavam o imperador na mesma medida em que elevava a figura de Jesus, declarações de que Jesus era o “Senhor” do mundo, que implicava ser ele o verdadeiro imperador e não César, narrativas parabólicas sobre a expulsão dos romanos das terras judaicas, e a criação do epíteto “Besta” para designar todo o Império.
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No entanto, para que se possa analisar tal realidade histórica, é necessário que comecemos a partir da situação dos judeus da Palestina do século I. Subjugados por um império estrangeiro (Roma) e possuindo uma rica tradição político-religiosa e nacional, os judeus lembravam-se amargamente da época em que foram subjugados e deportados pelo Império Babilônico, no século VII a.C., até que um rei libertador (Ciro, o Grande, da Pérsia) concedeu-lhes a liberdade que tanto aspiravam, sendo proclamado “ungido” (messias) (SCARDELAI, 1998).
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A memória do chamado “Cativeiro Babilônico” ficou gravada para sempre nas tradições judaicas como símbolo da opressão, da desgraça e da vergonha. Por isso, era inevitável que tais lembranças se associassem a situação presente, e que o povo judeu visse no Império Romano uma nova “Babilônia” , um novo símbolo da opressão, da desgraça e da vergonha.
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De acordo com Horsley e Hanson (1995, p. 43):
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Depois do governo duramente opressivo dos reis dependentes de Roma (Herodes e seus filhos), seguiu o governo direto dos governadores do império estrangeiro, algo que os judeus não tinham experimentado desde a conquista babilônica e persa inicial.
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A presença romana representou um choque na mente dos judeus da Palestina da época de Jesus, pois simbolizava não somente a escravidão, mas também a distância do povo em relação a Deus.
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O presente trabalho, ao propor a existência de um forte antagonismo cristão ao Império Romano no primeiro século e de um conflito ideológico em relação aos primeiros cristãos com o culto imperial romano que pode ser rastreado nos textos do Novo Testamento, começa, contraditoriamente, enfatizando a impossibilidade de tal idéia.
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Novas abordagens hermenêuticas e histórico-exegéticas tem revelado que o cristianismo começou como uma religião antiimperialista e consolidou diversas formas de protesto em seus discursos. Porém, foi um protesto velado: simbolismos que degradavam o imperador na mesma medida em que elevava a figura de Jesus, declarações de que Jesus era o “Senhor” do mundo, que implicava ser ele o verdadeiro imperador e não César, narrativas parabólicas sobre a expulsão dos romanos das terras judaicas, e a criação do epíteto “Besta” para designar todo o Império.
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O objetivo do presente trabalho é apresentar indícios, ainda que indiretos (mas nem por isso inconclusivos) da existência de um discurso antiimperialista nas narrativas dos Evangelhos bíblicos e de outros escritos neotestamentários.
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A partir da constatação desses indícios, propomos que a influência da ideologia e propaganda imperiais romanas foi decisiva para a formação da imagem de culto a Jesus Cristo, que se moldou na medida em que os escritos do Novo Testamento eram escritos.
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O trabalho parte de uma abordagem historiográfica e comparativa, onde se analisa o material bibliográfico contemporâneo e se faz uma análise na documentação textual antiga, principalmente de antigos documentos cristãos e romanos. Esperamos com isso trazer novas luzes sobre as origens do cristianismo e seu lugar no mundo mediterrâneo e judaico do qual nasceu e floresceu.
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Cristianismo, circularidade cultural e o conceito de transformação intercultural
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Carlo Ginzburg (2006, p. 10), ao fazer alusão a “circularidade” da cultura na Europa pré-industrial, afirma que: “Entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas [...] [existe] um relacionamento circular feito de influencias recíprocas, que se move de baixo para cima, bem como de cima para baixo”.
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Uma das formas de circularidade da cultura reside no processo de transformação de determinado elemento cultural sofre no decorrer das influencias recíprocas. De fato, pode-se observar que diversos elementos culturais, mesmo aqueles que sofrem resistência e rejeição, não são ao todo “abandonados”, mas, ao invés disso, são transformados e assim penetram no âmago cultural de diferentes classes, sejam elas dominantes ou subalternas, constituindo um jogo de metamorfoses dialéticas.
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Uma forma de transformação é realizada no processo de sincretismo religioso, como acontece com a religião cristã. De fato, é notório que o imaginário mágico-taumaturgico do cristianismo traz consigo diversos paralelos com outras formas de manifestação do imaginário mágico em geral, principalmente o pagão. Principalmente em nível popular, se observa que diversos elementos pertencentes ao âmbito extra-cristão, ao invés de serem eliminados, são simplesmente transformados, absorvidos e assimilados as formas de culto populares, influenciando até mesmo as formas normativas da religião cristã – constituindo um “sincretismo religioso”.
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O antiimperialismo no livro de Apocalipse de João
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O Apocalipse de João descreve, de modo metafórico, as experiências de perseguição, opressão e violência que as comunidades cristãs sofreram no último quarto do primeiro século, exercidas pelo império opressor. A referência ao sangue dos mártires e do cordeiro degolado (Apoc. 1.5,7; 5.6,9,12; 7.14; 12.11; 19.7,9,13), do qual Deus “toma vingança” (6.10; 19.2), o testemunho do próprio autor, denominado João, que havia sofrido perseguição, razão para ter sido exilado na ilha do Patmos (1.9), sendo que um de seus companheiros, chamado “Antipas”, havia sofrido destino pior, sendo martirizado (2.13), mostra como as perseguições aos cristãos eram comuns no final do primeiro século e quanto a comunidade cristã ansiava por denunciar esses crimes do império.
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Na ocasião da abertura do quinto selo, são vistas debaixo do altar as almas de pessoas degoladas por causa do testemunho dado a Cristo (6.9-11). Do mesmo modo, as duas testemunhas de Deus são assassinadas em Jerusalém, em peleja contra a “Besta” (Roma) (11.7-8). O “dragão”, símbolo do império romano, guerreia injustamente contra os filhos da mulher (a igreja) (12.17). Apocalipse 13 realiza uma descrição detalhada acerca dos mecanismos econômicos de opressão e violência que caracterizaram ao império romano (13.16-17). Os capítulos 17.18 descrevem em detalhe a riqueza obscena da “Babilônia” (Roma), a “grande prostituta” que se conluia com os reis da terra.
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Desse modo, o tema do martírio cristão imposto pelo Império Romano e sua denuncia é central para o autor desse livro.
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Na época em que o livro de Apocalipse de João foi escrito, o imperador Domiciano se conclamava “Senhor e Deus” (dominus et deus) (KOESTER, 2005, p. 269), e portanto foi o principal inspirador da repulsa ao culto imperial apresentado de forma explícita porém simbólica ao longo de todo o livro de Apocalipse.
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No ano 112 d.C., Plínio II, governador romano da Bitínia, província da Ásia Menor, envia uma carta ao imperador Trajano a respeito dos “cristãos”, os quais estavam sendo acusados de vários crimes: negavam-se a dar culto ao imperador, mas somente cantavam hinos a “Cristo como único Deus” e observavam certos preceitos como não furtar, não roubar, não cometer adultério e não enganar. Desse modo, fica claro que a repulsa cristã ao culto imperial era constante no começo do século II d.C. e no final do primeiro século.
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Inúmeras são as referências antiimperialistas no livro de Apocalipse. No entanto, nos concentraremos em somente uma: o simbolismo da besta. De acordo com Koester (2005, p. 271), da época em que o Apocalipse de João foi escrito “era necessário encontrar uma resposta que desse sentido à experiência da igreja cristã aflita e temerosa. O profeta João se propõe a dar essa resposta e a fortalecer a visão de que Cristo e não César era o governante predestinado do mundo”.
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Koester (2005, p. 274, 275) comenta que, para o autor do livro de Apocalipse, o Estado romano (13.1-10) e seu governante (13.11-18) são os verdadeiros inimigos do reino divino na terra, como um poder oposto a Deus:
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Este inimigo de Deus exerce seu poder maléfico por meio da adoração, o culto ao imperador, que perverte e destrói todas as nações (13.6-10,15-17). A única alternativa é fidelidade ao Cordeiro (14.1,5). João não censura o mal no mundo em geral, mas atribui esse mal a uma única causa: o culto ao imperador. [...] Nas afirmações sobre Roma, e especialmente na lamentação dos mercadores depois da queda de Roma, a crítica ao poder econômico que domina o mundo, consubstanciado em Roma, é o ponto central.
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A justaposição entre Cristo e a Besta e seu falso profeta por João reflete claramente a oposição do cristianismo e de seu Messias ao poder imperial personificado na figura de César. Segundo Koester (2005, p. 275), a simbologia numérica do Apocalipse retrata César Nero, que seria concebido pelos seus adoradores como “um messias pagão”:
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É admissível que o número 666 (13,18), o número 8 (17,11) e também a interpretação do animal (13,3;17,10-12) se refiram ao retorno esperado do imperador Nero, o Nero Redvivus. 1 + 2 + 3 +...+ 8 = 36 e 1 + 2 + 3 +...+ 36 = 666, o que é o equivalente das letras CAESAR NERON no sistema numérico grego. O Nero Redvivus, que é rejeitado por João, não é o perseguidor cruel dos cristãos , mas a figura amada de crenças populares disseminadas, uma espécie de figura messiânica pagã.
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Já Knohl (2001, p. 46) afirma que o simbolismo da Besta é anterior a Cesár Nero, remontando a Augusto César, sendo que a descrição da narrativa apocalíptica se enquadra de forma mais adequada no contexto desse imperador romano:
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Ao longo da história do cristianismo, todos os tipos de interpretações foram sugeridos para a visão das duas bestas, mas ao que consta até agora nenhuma explicação realmente convincente foi dada. Em minha opinião, a chave para o entendimento da visão é nos conscientizarmos de que João, que parece ter escrito o livro da Revelação (ou Apocalipse) por volta de 80 E.C., se valeu de uma composição mais antiga, redigida no início do século I E.C., durante o reinado de Augusto.
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Para demonstrar que o simbolismo apocalíptico da Besta remonta a Augusto César, Knohl (KNHOL, 2001, p. 46. Cf. SUETÔNIO, 2006, p. 135) afirma que existe uma relação muito próxima entre as características da Besta de dois chifres e o símbolo imperial de Augusto, a saber, o signo de Capricórnio:
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A segunda besta é descrita com dois chifres como os de um cordeiro e com fala de dragão. Essa estranha combinação de dragão com chifres de cordeiro pode ser devidamente explicada pela propaganda com relação à origem divina de Augusto. A figura de um cabrito ou um bode com dois chifres – o Capricórnio – ocupava um lugar destacado no mito da divindade de Augusto, pois era o signo do mês de sua concepção.
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De fato, a figura de um Capricórnio, um tipo de bode com corpo de peixe e dois chifres sustentando o globo do mundo, aparece em moedas romanas da época sob a inscrição “Augustus” (CRAWFORD, 1983, p. 52).
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Já a alusão apocalíptica ao dragão pode também remontar ao imperador Augusto. De acordo com Suetônio e Cássio Dion (CASSIO DIONE, 1998. cf. 45.1,2), a Átia, mãe de Augusto, afirmou ter mantido relações sexuais com um dragão (serpente, segundo outras versões), enquanto dormia no templo de Apolo e que naquele momento concebia Augusto, que nasceria nove meses depois.
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O dragão simbolizava o deus Apolo (o deus protetor ou o “pai”, segundo o imaginário da época, de Augusto), cujo título “Apolo Pítico” havia recebido depois que matou Píton, um terrível dragão que vivia na caverna de Delfos (Cf. COLLINS, 2001) . Por isso, Augusto também foi representado como Apolo, como um dragão.
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Desse modo, o simbolismo da besta de dois chifres que falava como um dragão representava o imperador Augusto. Os dons proféticos de Apolo, que inspirada os oráculos de Delfos, foram atribuídos a Augusto, sendo que:
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O autor da visão do Apocalipse argumentava contra a propaganda de Augusto, sustentando que este não era um verdadeiro, mas sim um falso profeta, que falava como um dragão. [...]. Enquanto Augusto usava o mito de Apolo com o fim de conferir a divindade deste a si mesmo, o autor da visão usou o mesmo mito para representá-lo como um terrível dragão (KNHOL, 2001, p. 48).
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Desse modo, ao associar a figura do imperador com um dragão e uma besta selvagem (principalmente com a besta de Daniel) o autor de Apocalipse contrapõe, de modo simbólico, o cristianismo e seu messias ao império romano e seu imperador, numa forma de protesto ao culto e a hegemonia romano do mundo – cujo verdadeiro imperador não é outro senão Jesus Cristo.
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A imagem da primeira besta, por sua vez, que foi adorada pelos habitantes da terra a mando do falso profeta (13.12), representa Roma, cuja uma das cabeças foi “ferida mortalmente” por um golpe desferido contra ela. De acordo com Knhol (2001, p. 48, 49):
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O golpe na cabeça foi desferido pelos conspiradores que assassinaram Júlio César, mas o império romano se recuperou e continuou a dominar o mundo. Portanto, a imagem da primeira besta, que o falso profeta havia convencido todos os habitantes da terra a adorar, era a estátua representando o Império Romano. O fato é explicado por Suetônio, que registra a ordem de Augusto para a colocação de uma estátua da deusa Roma, símbolo do Império Romano, junto à estátua do imperador nos templos erigidos em sua honra. Augusto era o falso profeta do culto imperial à estátua de Roma.
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Para Knohl (2001, p. 52), o indício mais certo de que Augusto e seu culto imperial é o foco no capítulo 11, 12 e 13 de Apocalipse consiste na declaração sobre o átrio externo do templo de Jerusalém: “Foi-me dada uma vara semelhante a uma vara de agrimensor, e disseram-me: Levanta-te! Mede o templo de Deus e o altar com seus adoradores. O átrio fora do templo, porém, deixa-o de lado e não o meças: foi dado aos gentios” (Apocalipse 11.2,3).
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Na ocasião da Guerra Judaica contra Roma, que se deu entre os anos 66 e 70 d.C., os romanos capturaram tanto o átrio quanto o templo. Por isso, a descrição apocalíptica não se enquadra com estes eventos. No entanto, durante a revolta dirigida pelos judeus contra o sucessor de Herodes Magno, Arquelau, no ano 4 a.C., os soldados romanos entraram no átrio do Templo e saquearam o tesouro, ateando fogo às câmaras externas do pátio, mas não entrando nos recintos interiores do Templo. De acordo com Knohl (2001, p. 52, 53), a realidade histórica do ano 4 a.C. se enquadra na passagem de Apocalipse 11.1-2 bem mais que a realidade histórica do ano 70 a.C.:
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A revolta de 4 a.C, foi brutalmente esmagada por Quintílio Varo, legado de Augusto para a Síria. Varo chegou da Síria com duas legiões e outras forças. Os soldados de seu exercito semeavam a destruição por onde passavam e violavam as mulheres; Varo crucificou dois mil dos rebeldes e outros foram feitos prisioneiros e vendidos como escravos. Os judeus consideraram Augusto, o César romano, responsável pela brutal repressão da revolta e pelo incêndio do pátio do Templo. [...] Aos olhos dos judeus, ele foi responsável pelas ações de seu legado Varo e seus soldados. À luz desse pano de fundo, podemos entender por que Augusto é pintado com tanto ódio nas fontes que temos examinado.
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Portanto, de uma forma ou de outra, fica claro o lugar central de Roma na crítica antiimperial do Apocalipse de João. Por isso, a contraposição acalorada para com Roma a transforma, nesse apocalipse, em uma Babilônia, a mãe das prostitutas, embriagada com o sangue dos santos e mártires (17.5-6). É a partir desse viés que João espera nada menos que sua destruição total e a restituição do reino da terra para seu verdadeiro senhor: “O sétimo anjo tocou a trombeta. Ressoaram então no céu altas vozes que diziam: O império de nosso Senhor e de seu Cristo estabeleceu-se sobre o mundo, e ele reinará pelos séculos dos séculos” (Apocalipse 11.15).
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Continua...
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