John Dominic Crossan é um dos pesquisadores pioneiros na ênfase da natureza profético-historicizada da narrativa da Paixão e Ressurreição de Jesus nos Evangelhos Bíblicos. Segundo ele, 80% dos detalhes da Paixão de Jesus não correspondem a lembranças e/ou tradição recebida dos fatos que ocorreram na morte de Jesus. Os detalhes da paixão de Jesus foram criações artificiais da igreja, forjados primitivamente pelos primeiros membros do movimento e se desenvolvendo a partir de modelos idealizados sobre citações antigas a partir de uma leitura reflexiva dos textos das Escrituras judaicas – que mais tarde seriam chamadas de “Antigo Testamento” pelos cristãos.
Esse ato de “forjar” narrativas a partir de profecias antigas é chamado de “Profecia Historicizada”. Crossan (ibid., p. 85) define profecia historicizada como “um evento histórico criado para cumprir uma antiga profecia”.
Tal ato foi motivado, no cristianismo primitivo, pela necessidade de confirmar a messianicidade de Jesus, enquadrando-o em modelos bíblicos pré-existentes para que possa haver uma prova escritural da ascendência divina e profética de Jesus, uma forma de legitimação. Desse modo, os cristãos poderiam apresentar suas crenças diante de judeus e pagãos de forma justificada. O antigo credo cristão de 1Cotintios 15, por exemplo, apela as Escrituras hebraicas como forma de legitimar a natureza profética da morte e ressurreição de Jesus: “Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”.
O fenomeno da historicização é bastante familiar; historicizar não se consiste em transfor algo em fato histórico – ainda que o objetivo original de uma pessoa ao fazê-lo seja esse -, mas em transformar alguma coisa, como idéia, pensamento, frase, etc. em uma narrativa ou conto.
O fenomeno da historicização é bastante frequente; costumamos, inconscientemente, historicizar preocupações através de sonhos, os quais muitas vezes nem sequer precisam de simbolismo para sabermos do que se trata.
Na História, a historicização se constitui num processo, dissimuladamente deliberado ou não, de se criar narrativas e dar a ela status de acontecimento real. Muitos mau (ou Mal)-entendidos na História deram a luz supostos fatos históricos que até hoje são reverenciados como acontecimentos históricos.
A historização, dessa forma, serve como uma das formas mais acessiveis e mais usadas de se criar ficções, tanto literárias quanto históricas, e por isso todo o historiador deve se atentar a ela.
O historiador Carlo Ginzburg (2002) mostra o quão a História pode ser prejudicada pela tendência de permitir que motivos ideológicos (idéias) e forças de diversas naturezas tendenciosas prevaleçam sobre a plausibilidade e factualidade histórica. Ginzburg apresenta o caso de um padre jesuíta chamado Le Golbien que, ao descrever o incidente de uma rebelião indígena em pleno século XVII, numa ilha das Filipinas (rebelião esta, diga-se de passagem, que ele conhecia apenas mediante poucos dados transmitidos em cartas, e nenhuma citação direta de qualquer fala de qualquer nativo), “narra” um longo e altamente eloqüente discurso que foi aceito historicamente na época como sendo de um índio guerreiro destacado.
O discurso do índio é tão magnífico e tão portador de recursos retóricos, que Ginzburg consegue ver paralelos dele na literatura clássica, quanto à retórica, e em Montaigne, quanto às idéias. Nesse caso, Ginzburg prova que tal discurso jamais foi de fato pronunciado por quaisquer indígenas, mas que na verdade expressava o pensamento ideológico do autor, que foi expresso pela “boca do índio”. Assim, o padre Le Golbien deu corpo e alma a sua ideologia, sem precisar arriscar o pescoço, ao “historicizar” sob a forma de discurso um pensamento seu posto na boca de outra pessoa. O pensamento do padre Le Golbien acerca do “bom selvagem” se baseou em Montaigne que:
“Le Golbien transformou as argumentações de Montaigne numa arenga e o bom selvagem em Hurao, o líder indígena das ilhas Marianas, cheio de ódio contra a civilização européia. Ao realizar essa manobra retórica, Le Golbien se inspirou, se não me engano, num famoso fragmento de Tácido”. (ibid., p. 93).
Quando Ginzburg diz que Le Golbien transformou as argumentações de Montaigne numa arenga, ele está fazendo uma alusão a este processo de historicização. Em geral, Ginzburg utiliza o mesmo método que os estudiosos usam nas narrativas bíblicas para testar a sua historicidade.
Passemos para um exemplo mais próximo do cristianismo.
Um evangelho apócrifo bastante recente em relação aos demais, o Evangelho de Pseudo-Mateus da infância de Jesus, acrescenta novos fatos à vida de Jesus sobre os anos que seguiram seu nascimento. Tais fatos, combinados com os fatos já conhecidos dos evangelhos canônicos, que se caracterizam pela exuberância e características indubitavelmente míticas e lendárias, foram reconhecidos pelos estudiosos não como história relembrada, mas como produto da imaginação criativa do autor esse evangelho apócrifo.
O Evangelho de Pseudo-Mateus embeleza sua imaginação criativa ao usar pequenas citações veterotestamentárias como modelo para se criar uma narrativa sobre Jesus. A isso se chamada de Profecia Historicizada. Existem pelo menos quatro exemplos desse evangelho do que podemos chamar de Profecia Historicizada.
Jesus e a profecia do boi e do burrico
O autor do evangelho de Pseudo-Mateus (in: PROENÇA, 2005, p. 505) “enriquece” nossos conhecimentos sobre a infância de Jesus oriundo dos demais evangelhos canônicos com o seguinte relato:
“No terceiro dia depois do nascimento do Senhor, Maria saiu da caverna; ela foi até o estábulo e colocou a criança numa manjedoura, e um boi e um burrico o adoraram. Então aquilo que foi dito através do profeta Isaías se cumpriu: “O boi conhece seu proprietário e o burrico a manjedoura de seu senhor”.
Na verdade, é muito fácil de ver aqui a “profecia” criando o evento do que o evento real recorrendo ao seu paralelo na profecia.
Jesus e os dragões
De acordo com o evangelho de Pseudo-Mateus, o Jesus menino “enfrenta” dragões, de modo em que prova sua ascendência divina a manifestar seu poder e autoridade, e remete relato a um suposto cumprimento de uma profecia:
“Quando eles chegaram a uma determinada caverna e quiseram descansar nela, Maria desceu da mula de carga e, sentando-se, segurou Jesus no colo. Havia três rapazes viajando com José e uma menina com Maria. E eis que, de repente, muitos dragões saíram da caverna. Quando os rapazes viram-nos na frente deles, eles gritaram com grande medo. Então Jesus desceu do colo de sua mãe, e ficou de pé diante dos dragões. Eles, porém, o adoraram, e, enquanto adoravam, recuaram. Então aquilo que foi dito através do profeta Davi se cumpriu: ‘Vos dragões da terra, louvai o Senhor, vós dragões e todas as criaturas do abismo’” (ibid., loc. cit.).
Note que a passagem dos Salmos citada pelo autor desse evangelho apócrifo em nada indica que o menino-messias iria submeter dragões diante do medo de sua família. No entanto, existem elementos-chave na citação que serviram para dar conteúdo ao relato: a palavra “terra” se transforma em “caverna”; o temor que o simples ato de imaginar essas criaturas fictícias causa, é materializado no medo dos rapazes na narrativa; ou louvor que os dragões prestam ao Senhor nos Salmos é narrado literalmente como reconhecimento e a adoração prestada pelos dragões à Jesus.
Jesus e os lobos
O evangelho de Pseudo-Mateus também narra o fictício episodio dos lobos e leões que escoltavam a carroça em que o menino Jesus viajava.
“Eles [José, Maria, Jesus e os demais] viajavam entre os lobos e não estavam amedrontados; não houve dano de um para o outro. Então aquilo que foi dito pelo profeta se cumpriu: ‘Lobos serão apascentados com os cordeiros, o leão e o boi comerão juntos’. Havia dois bois e a carroça, na qual eles carregavam suas necessidades, que os leões guiavam em sua jornada” (ibid., p. 506).
Note que na frase “lobos serão apascentados com os cordeiros, o leão e o boi comerão juntos” não há nenhuma indicação de que a mesma se cumpra ou deveria se cumprir no contexto da vida particular de nenhuma pessoa especifica, nem na do messias, e nem na vida de Jesus. Se, no entanto, fossemos argumentar isso para um historicizador como o autor do evangelho de Pseudo-Mateus, seriamos rechaçados.
Se para nós o fato de que tais passagens serem extremamente vagas e totalmente descontextualizadas nos impedem, por causa do bom senso, de realizarmos o que o autor desse evangelho apócrifo faz (e o que, indubitavelmente, os autores não somente dos evangelhos canônicos, mas de toda literatura neotestamentária fazem), por outro lado, para esses antigos historicizadores de profecias (tanto os autores de evangelhos apócrifos como de evangelhos canônicos) o fato delas serem vagas e descontextualizadas não impediam que fossem historicizadas. Muito pelo contrário. Na verdade, isso era o pré-requisito básico para que a historicização pudesse ser realizada e o sinal de que deveria ser realizada.
Historicizar significava não somente que a mão de Deus estava por trás dessa interpretação, mas também (principalmente pelo fato dessas passagens serem vagas quando descontextualizadas) proporcionava uma sensação de irrefutabilidade dessa historização. A aparente infalseabilidade dessa interpretação era prova de que se tratava de uma interpretação inspirada e oriunda de Deus.
Jesus e os ídolos egípcios
Por último, o evangelho de Pseudo-Mateus também nos apresenta um relato fictício de Jesus e sua família em um templo egípcio e do suposto acontecimento sobrenatural que se seguiu.
“E aconteceu que, quando a abençoadíssima Maria, com seu filho, entrou no templo, todos os ídolos foram jogados ao chão, ficando todos esmagados, convulsos e com suas faces despedaçadas. Assim ele revelaram abertamente que eram nada. Então aquilo que foi dito pelo profeta Isaías se cumpriu: ‘Eis que o Senhor Virá numa nuvem ligeira e entrará no Egito, e todos os ídolos feitos pelos egípcios serão removidos de sua presença’” (ibid., p. 507).
Diante dos exemplos aqui apresentados do evangelho apócrifo de Pseudo-Mateus, o leitor pode deduzir que a exercício de historicização de citações veterotestamentárias pode ser praticada infinitamente, cada historização correspondendo às noções preconcebidas e intuitos teológicos de cada autor, cada citação sendo distorcida, descontextualizada, reelaborada a adaptada para servir aos propósitos de cada historicizador. De fato, se deliberadamente nos dispuséssemos a historicizar toda passagem bíblica que achássemos pertinentes, então o epílogo do evangelho canônico de João (21.25) estaria certo em dizer: “Se fossem escritas [todas as outras coisas que Jesus fez] uma por uma, creio que o mundo não poderia conter os livros que se escreveriam”. A potencialidade prática da historicização de passagens a Bíblia judaica não tem limites e muito menos freios.
Tais exemplos oriundos desse evangelho são exemplos vivos e inegáveis de que uma narrativa relativamente longa e/ou detalhada pode ser criada a partir de uma pequena citação das Escrituras judaicas e que tal prática também foi uma realidade nos séculos que se seguiram a morte de Jesus.
Citamos esses exemplos porque temos pleno conhecimento de que o comprometimento emocional que a civilização ocidental possui em relação às narrativas da paixão de Jesus apresentadas nos evangelhos são muito fortes e basta somente isso para que rejeitem de forma aprioristica e indignada a realidade das Profecias Historicizadas. Como nenhum cristão possui qualquer comprometimento emocional com o evangelho apócrifo de Pseudo-Mateus, torna-se muito mais fácil perceber e aceitar o processo de historização acontecendo nesse evangelho.
Bibliografia
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. 4ª impressão. São Paulo: Ed. Paulus, 2006.
CROSSAN, John Dominic. Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus. Tradução: Nádia Lamas. Rio de Janeiro: Imago ed., 1995.
GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
PROENÇA, Eduardo de (org.). Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia. São Paulo: Fonte editorial, 2005.
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