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terça-feira, 27 de outubro de 2009

LUCAS: PROPAGANDA CRISTÃ COM ROUPAGEM HISTORIOGRÁFICA: O “Evangelho dos Gentios” e o romance da veracidade histórica (Parte 01)

LUCAS: PROPAGANDA CRISTÃ COM ROUPAGEM HISTORIOGRÁFICA:
O “Evangelho dos Gentios” e o romance da veracidade histórica

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Prof. Vieira Lima Júnior
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Comentário inicial:
O presente artigo tenta responder a uma questão que há muito tempo tem despertado a minha curiosidade:
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Por qual motivo Lucas demonstra ser um escritor acurado ao citar de passagem diversas características locais, administrativas e geopolíticas do mundo mediterrâneo oriental com certa exatidão, ao mesmo tempo em que se apresenta como um pesquisador descuidado e incompetente ao descrever (de forma não tão passageira) diversas características locais, sociais e políticas da Palestina judaica da época de Jesus de um modo tão confuso, desleixado e inexato?
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A resposta para essa pergunta reside em seus objetivos literários como cristão e sua agenda ideológica: apresentar o cristianismo adentrando no mundo greco-romano, de um modo que, pelo menos a nível simbólico, viesse a suplantar o Iluminismo grego - razão para Paulo viajar pelas cidades dos grandes filósofos socráticos e pré-socráticos do Mundo Antigo.
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Por isso, longe dos detalhes relativamente exatos que Lucas apresenta em suas descrições sobre o mundo mediterrâneo apontarem para a suposição errônea de que este evangelista deva ser consdierado um "grande historiador", indicam, em contramão, que Lucas era um grande propagandista da religião cristã no mundo greco-romano, e que seu interesse não era histórico, mas sim ideológico, propagandista e religioso.
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Os documentos cristãos cuja autoria tradicional tem sido atribuída a certo “Lucas” e que compõem quase a metade do Novo Testamento, se caracterizam de forma bastante peculiar. O Evangelho de Lucas e o Atos dos Apóstolos constituem documentos diferentes de qualquer outro encontrado dentro ou foram do cânon. Sua principal marca é a personalidade distinta, culta e cativante do autor, bem como sua preocupação com a informação e com a ordem dos acontecimentos narrados, fazendo com que possa – de acordo com alguns comentaristas – equiparar-se a outros escritores talentosos da época clássica, inclusive com historiadores como Josefo, Tácito, Políbio e Tucídides.
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A preocupação desse evangelista com a missão gentílica e diversos aspectos do mundo mediterrâneo faz de seu evangelho o “Evangelho dos Gentios”, e de seu “Atos dos Apóstolos” a primeira tentativa de se criar uma “história das origens cristãs” que temos notícia – ambos constituindo uma unidade documental que, no presente artigo, será tratada dessa maneira. No entanto, ambos os documentos “lucanos” apresentam traços de obscuridade diante dos olhos de seus leitores.
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Primeiramente, a identificação do autor é bastante problemática, cheia de lendas e suposições. Porém, acredita-se que o autor era um judeu helenizado ou mesmo um grego com boa educação – ou até mesmo um magistrado[1].
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Segundo, a data de composição de ambos os escritos não pode ser estabelecida com certeza. Sendo que a narrativa de Atos dos Apóstolos termina com o cativeiro de Paulo em Roma (61-63 d.C.) e que utiliza o Evangelho de Marcos como fonte principal (70 d.C.), é bastante provável que a data correta de sua composição corresponda às décadas de 80 e de 90 d.C.
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Terceiro, suas relações com outras fontes canônicas e não-canônicas (em especial o Evangelho de Marcos e Evangelho das Fontes de Dito Q) são bastante peculiares e problemáticas. As transposições, omissões e alterações que o autor lucano cria em relação ao material marcano deixa óbvia a liberdade com que utilizava suas fontes.
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Quarto, as intenções do autor lucano não são, ao todo, definidas. À primeira vista, parece que seu objetivo é meramente informativo e historiográfico. Os Atos dos Apóstolos, por exemplo, compõe uma narrativa sobre a expansão cristã no mediterrâneo em meados do século I d.C., relatando diversos episódios situados em variegadas áreas do mediterrâneo. No entanto, diversos aspectos retóricos, criativos e ideológicos podem ser identificados com clareza no decorrer de toda a narrativa.
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De fato, não sabemos o quanto de seu envolvimento ideológico afetou não somente a construção da narrativa, mas também a forma como selecionou e modificou as tradições e materiais que lhe serviram como fonte ao escrever sua “historia das origens cristãs”. Atualmente, os pesquisadores reconhecem que o cristianismo primitivo não era tão homogêneo quanto o autor lucano gostaria que fosse, muito menos tão centralizado. O historiador Paul Johnson (2001, p. 45), ao comentar sobre o inicio do cristianismo, afirma que:
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Infelizmente, o conhecimento que [do movimento de Jesus no início] temos é limitado e distorcido pela inabilidade da parte inicial dos Atos dos Apóstolos. Lucas, imaginando-se que ele tenha escrito esse documento, não se encontrava em Jerusalém na época. Não era uma testemunha ocular. Era membro da missão aos gentios e produto do movimento da diáspora. Não nutria simpatia cultural nem, na verdade, doutrinal para com os apóstolos pentecostais; nesse contexto, não só era um forasteiro como estava mal-informado.
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Além disso, o autor lucano se silencia sobre as diversas frentes cristãs missionárias que se espalharam pelo mundo afora. Nem sequer o apóstolo Pedro escapa, pois sua narrativa é interrompida para narrar a vida de outro (e talvez maior) herói do cristianismo primitivo: o ex-perseguidor do cristianismo e apóstolo Paulo de Tarso.
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O cristianismo que Lucas[2] descreve é o proto-cristianismo romano e, por isso, longe está de constituir um relato abrangente e imparcial das origens cristãs, pois se limita apenas a narrar a trajetória do pequeno (se comparado aos demais) e restrito cristianismo histórico de Paulo. Outros tipos de cristianismo, como a Comunidade Q (cujo evangelho foi perdido, mas ainda assim foi usado como fonte por Lucas), o cristianismo egípcio, o cristianismo judaico, etc. são simplesmente omitidos[3].
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Por isso, seu relato se caracteriza muito mais como uma narrativa de confirmação e legitimação de um tipo de cristianismo já oficializado do que um verdadeiro testemunho histórico das origens do cristianismo em termos gerais. Trata-se não somente de um relato informativo-descrito, mas de um instrumento de criação de opinião e fundamentação de crença. Resumindo, o objetivo básico de Lucas é fazer apologia e propaganda de um tipo de proto-ortodoxo de cristianismo, não de relatar abrangentemente as origens do cristianismo.
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No entanto, tal observação sobre o caráter geral da obra lucana tem sido posta em guerra por proponentes da idéia de que Lucas tenha tentado compor uma verdadeira obra de historiografia comparável as de Tucídides, Heródoto, Políbio, Tácito ou Josefo.
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Isso porque em Atos dos Apóstolos, que compõe a primeira narrativa que temos conhecimento sobre a expansão do cristianismo no mediterrâneo em meados do século I d.C., Lucas se apresenta, pelo menos na aparência, como um acurado conhecedor da realidade cultural, geográfica, social e política de sua época ao relatar episódios situados em variegadas áreas do mediterrâneo – muitas das vezes fazendo alusão a detalhes específicos desconhecidos pela literatura clássica, mas confirmados pelas descobertas arqueológicas.
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Os relatos das viagens de Paulo, por exemplo, refletem com certa exatidão e amplitude o mundo mediterrâneo – em especial a parte oriental – do primeiro século cristão, principalmente no que se refere aos aspectos da administração romana e de cidades gregas, sobre cultos, rotas, geografia política e topografia local.
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F. F. Bruce (1999, p. 105-119), nos apresenta alguns exemplos de seu acurado conhecimento que fez Lucas ser considerado um “exímio historiador”:
· A alusão em Atos 13.7 a Sérgio Paulo, procônsul de Chipre, inexistente na historiografia romana, mas supostamente confirmada por uma inscrição;
· A menção a Gálio, em Atos 18.12, como procônsul da Acaia, confirmada por uma inscrição de Delphos;
· As passagens de Atos 17.6,9 fazem alusão a “politarcas”, título não encontrado na literatura clássica, mas confirmado por uma inscrição em Tessalônica;
· Em Atos 14.1-6, Lucas coloca Listra e Derbe no território da Licaônia, deixando implícito que Icônio pertencia a outro território. Escritores romanos como Cícero referiram-se a Icônio como sendo parte do território de Licaônia. No entanto, certo monumento descoberto em 1910 mostra que Icônio era considerada como sendo uma cidade da Frígia, ao invés de da Licaônia;
· a referência a Públio como o “homem de destaque” (pró·tos) de Malta (At 28:7) emprega o título exato a ser usado, conforme indicado pela sua ocorrência em duas inscrições maltesas, uma em latim e a outra em grego, etc.
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Tal conhecimento levou William Ramsey (apud BRUCE, 1999, p. 118), da escola histórica germânica do inicio do século XX, a afirmar que “Lucas é um historiador de primeira grandeza [...] este autor deveria de ser colocado junto dos maiores historiadores”.
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No entanto, diversas dessas supostas confirmações não possuem qualquer fundamento ou a relevância pretendida. O caso do suposto procônsul Sérgio Paulo, por exemplo, é um dos mais peculiares. Apesar das suposições levantadas por Ramsey e tomadas com entusiasmo por Bruce, arqueólogos contemporâneos como Richard Horsley e Neil Asher Silberman (1999, p. 141) afirmaram que “não se encontrou nenhuma prova conclusiva para a presença em Chipre de um procônsul chamado Sérgio Paulo por ocasião da visita de Paulo (At 13,7)”. O próprio F. F. Bruce utiliza uma linguagem bastante vaga ao citar o caso da confirmação externa desse procônsul ao texto lucano (cf. BRUCE, 1999, p. 108).
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Sobre a questão de Lucas colocar Listra e Derbe, e não Icônio, no território da Licaônia, não deve ser de surpreender. Cícero foi um escritor romano que viveu quase cem anos antes de Lucas, em uma situação geopolítica diferente. Além disso, se por um lado Lucas existem evidências arqueológicas que mostram que Lucas foi correto em situar Icônio fora do território de Licaônia, por outro lado, inexiste qualquer evidência sobre uma comunidade judaica em Icônio tal como relatada por Lucas: “em Icônio, Paulo e Barnabé entraram juntos na sinagoga judaica e falaram de tal modo, que veio a crer grande multidão, tanto de judeus como de gregos” (At 14.1). De acordo com Horsley e Silberman (1999, p. 141), ao contrário do que Lucas relata, “faltam provas arqueológicas diretas da presença de comunidades judaicas em Antioquia da Pisídia e em Icônio antes do século II ou III d.C.”.
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De fato, o que de fato fez Lucas ser considerado um apurado historiador não foi tanto seu conhecimento abrangente do mediterrâneo, mas o efeito de admiração causado pela reversão de expectativas nas mentes de pesquisadores como Ramsey. Iluministas e críticos liberais do século XIX haviam argumentado, com base no conhecimento existente na época, que a narrativa de Lucas era historicamente imprecisa. Com o fim de responderem a essas objeções, inúmeros pesquisadores e arqueólogos vinculados ideologicamente à fé cristã dedicaram suas carreiras e vidas a fornecerem respostas positivas a essas e outras objeções sobre a inexatidão histórica dos escritos que compõem o Antigo e o Novo Testamento judaico-cristão.
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Foi a partir de tal iniciativa, no final do século XIX e adentrando no decorrer do século XX até os anos 90, que o “romance da veracidade histórica da Bíblia” se desenvolveu, constituindo-se uma tendência religiosa – embora disfarçada de acadêmica e científica – caracterizada pela busca arqueológica e historiográfica por evidências confirmativas do relato bíblico e, por conseguinte, da fé cristã. O resultado dessa grande empreitada patrocinada pelas igrejas católicas e protestantes de todo o mundo (principalmente dos Estados Unidos) foi a interpretação parcial e tendenciosa de várias descobertas arqueológicas que iam sendo encontradas, de modo que as mesmas passassem a corroborar os textos bíblicos e consequentemente fundamentar a fé cristã.
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Desse modo, a ideologia religiosa comandou os resultados da pesquisa científica no século XX, fazendo com que até mesmo a atual disciplina de Arqueologia do Oriente Médio nascesse vinculada ao compromisso religioso de confirmar e testificar os documentos oficiais da Igreja.
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Por isso, até os anos de 1950, e indo, no máximo, ao inicio dos anos de 1990, a concepção “romântica” da arqueologia em face à Bíblia Sagrada era predominante. Não eram poucas afirmações como a seguinte:
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[...] a arqueologia confirmou inúmeras passagens que tinham sido rejeitadas por críticos como não-históricas ou contraditórias a fatos conhecidos. No entanto descobertas arqueológicas mostraram que estas acusações críticas [...] estão erradas e que a Bíblia é confiável justamente nas afirmações pelas quais foi deixada de lado por não ser confiável. Não sabemos de nenhum caso no qual a Bíblia foi provada errada (FREE, 1950, p. 134, tradução nossa).
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Desse modo, foram supostamente confirmados diversos detalhes dos escritos bíblicos, e a “investigação apurada” que o evangelista lucano atribui a sua obra se transformou em um “ícone” dessa nova tendência. Lucas passa, então, a ser considerado como o escritor cristão que mais se aproxima de um historiador antigo, cheio de credibilidade e veracidade.
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Porém, felizmente, essa “era do romance” entre a arqueologia e a Bíblia já teve seu término. Análises mais rigorosas e mais fundamentadas sobre diversas descobertas arqueológicas colocaram em xeque esse “Romance da Arqueologia Bíblica”, trazendo uma ruptura que, apesar de ter transformado por completo a visão acadêmica sobre as narrativas bíblicas, ainda não foi sentida pelo mundo evangélico. No início do século XXI, Israel Finkelstein e Neil A. Silberman (2003, p. 16) comentaram sobre a mudança no consenso sobre a confirmação externa das narrativas dos documentos bíblicos em geral da seguinte forma:
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O consenso arqueológico, pelo menos até o ano de 1990, era de que a Bíblia poderia ser lida basicamente como um documento histórico confiável. [...] Agora, é evidente que muitos eventos da história bíblica não aconteceram numa determinada era ou da maneira como foram escritos. Alguns eventos famosos da Bíblia jamais aconteceram inteiramente.
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Desse modo, a visão da arqueologia como disciplina legitimadora e confirmatória da confiabilidade histórica das Escrituras Sagrada – cuja tendência consistiu em colocar a Bíblia como “chave” para interpretar os achados arqueológicos – foi perdendo espaço, o que vez com que essa disciplina ganhasse mais independência e objetividade: “Estamos vivendo um processo de liberação da arqueologia de uma leitura muito conservadora e ingênua do texto bíblico” (FINKELSTEIN apud A HEBRAICA (2005 [on line]).
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No entanto, deve-se enfatizar que enquanto o Romance da Arqueologia Bíblica subsistia, informações erradas, omitidas e até mesmo fraudulentas foram difundidas entre o público leigo e especialmente entre o público cristão, fomentando assim o mito de que a arqueologia realmente confirmava a Bíblia (FOX, 1993).
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A mídia e a indústria editorial exerceram um papel fundamental nesse ínterim – principalmente a indústria editorial cristã protestante, que publicavam (e ainda continuam a publicar) apenas os livros que “edificam a fé dos leitores” – não dando a devida importância aos erros e defasamento dessas obras. A mídia, por sua vez, simplesmente cuidou de selecionar informações distorcidas ao divulgar notícias sensacionalistas que supostamente confirmavam a narrativa Bíblica, e assim ajudando a disseminar a idéia ao público amplo.
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Robin Lane Fox (1993) logo no início dos anos 90 do século XX, apontou um dos grandes divulgadores da idéia de que a arqueologia corroborava a Bíblia – um livro que se tornou um grande Best Seller no Brasil e no mundo e que ainda hoje é um dos livros mais lidos no meio cristão: “E a Bíblia Tinha Razão”, de Werner Keller:
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Em 1956, um jornalista alemão, Werner Keller, demonstrou a força da crença do público na ligação entre as escrituras, as escavações e as viagens. Seu livro, A Bíblia como História, foi inicialmente publicado com o título A Bíblia está de fato correta, e o seguinte subtítulo: “A arqueologia confirma o Livro dos Livros”[4]. [...] seu livro foi adotado em escolas e traduzido em 24 línguas, tendo vendido mais de 10 milhões de exemplares nos vinte anos seguintes [...] o mais estranho em relação a seu sucesso é que, se o lermos cuidadosamente, veremos que nada do que afirma emerge diretamente de qualquer indício arqueológico que confirme qualquer aspecto significativo do Livro dos Livros (FOX, 1993, p. 203, 204).
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Algum tempo depois, Wolfgang Hinker e Kurt Speidel publicaram uma réplica, intitulada “Se a Bíblia Tivesse Razão”, que poderia nivelar o debate, mas que, no entanto, não teve igual disseminação (cf. ARENS, 2007, p. 227).
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Muitas das supostas confirmações arqueológicas sobre o texto bíblico partiram de excessos do tipo apresentados na obra de Ramsey e de Keller, que decorriam muito mais de uma interpretação exagerada sobre os fatos (meta-factual) do que dos próprios fatos em si.
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Até mesmo o próprio F. F. Bruce, que ainda hoje é um pesquisador muito popular nos círculos apologéticos, admite que a ênfase de Ramsey no estabelecimento da historicidade de diversas narrativas bíblicas (incluindo as lucanas) era exagerada, pois estava tão ansioso para provar a historicidade da Bíblica que “imprudentemente danificou sua bem-fundada reputação como um grande estudioso” (GIER, 1987 [online], tradução nossa).
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Do mesmo modo, as descobertas arqueológicas que confirmam alguns detalhes citados da narrativa de Atos dos Apóstolos foram e continuam sendo interpretadas erroneamente, como se fossem capazes de estabelecer, genericamente, a fidelidade, confiabilidade e a veracidade de toda a obra lucana.
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O próprio alarde em rotular Lucas de historiador por causa das confirmações arqueológicas sobre lugares e detalhes políticos e administrativos do mundo mediterrâneo no final do século I d.C. pode ser visto como um truque emocional: se existem um pouco mais que meia dúzia de detalhes sobre o contexto social e político das províncias romanas mencionados Lucas, mas silenciosos em toda a literatura da época, isso se deve a um conjunto de fatos que, com efeito, não possuem qualquer relação com a credibilidade de Lucas como historiador, pelas seguintes razões:
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1) Não possuímos toda a literatura escrita no final do século I e século II d.C.. A maior parte foi destruída por cristãos piedosos na Idade Medieval que queriam purificar o mundo cristão dos supostos perigos do paganismo. Somente os escritos cristãos legitimados pela Igreja (como as obras lucanas) e os escritos que poderiam trazer algo de positivo para fé eram preservados. Apenas uma pequena parcela das milhares de obras literárias e historiográficas escritas entre os anos 60 d.C. e 325 d.C. chegaram até nós;
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2) A realidade histórica sempre é muito mais complexa que qualquer reconstrução e narrativa do passado. Por isso, não é de se admirar que um autor antigo faça alusão a um detalhe enquanto outro o omita deliberadamente ou mesmo por desconhecê-lo – sendo que nenhum escritor ou historiador é onisciente e pode saber de todos os dados administrativos e topográficos da região que narra;
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3) O status elevado com que representam Lucas é fruto de uma racionalização anacrônica de nosso tempo. Para qualquer habitante do antigo mundo Mediterrâneo do final do século I d.C., – principalmente para os bem versados nas áreas de conhecimento disponíveis da época – nenhum dos detalhes lucanos confirmados pela arqueologia nos dias de hoje constituiria algo digno de admiração. Era comum até mesmo para autores trágicos (como Sófocles, Eurípides, Cícero, etc.) e ficcionistas (como Petrônio) respaldarem suas narrativas com detalhes históricos legítimos;
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4) Grande parte dos detalhes lucanos “confirmados” pela arqueologia não são capazes de contribuir para estabelecer a veracidade da narrativa. Muitas vezes, o detalhe de confirmação é citado em Atos apenas “de passagem”, como em Atos 18.12, por exemplo, que ao relatar que os judeus se levantaram contra Paulo e o levaram ao tribunal, afirma que isso se deu “quando Gálio era procônsul da Acaia”. A narrativa de Atos 17 também se enquadra nesse perfil: trata-se de uma narrativa vaga, a qual apresenta apenas três termos específicos: Tessalônica, Casa de Jasom e poliarcas. Se retirássemos os dois últimos termos, e substituíssemos “Tessalônica” por qualquer outra cidade, a narrativa continuaria a ser coerente, como se fosse um molde aplicável a qualquer contexto narrativo e histórico;
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5) Não é porque um escritor acerta com precisão detalhes históricos e topográficos que sua narrativa deverá ser considerada histórica. Diversas obras de ficção da antiguidade não apenas apresentam uma riqueza de detalhes históricos e topográficos autênticos sobre a época narrada, mas também estão cheios de minúcias capazes de tornar o relato coerente;
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6) Deve-se ressaltar também que Lucas, embora demonstre ser apurado em topografia, geografia, política e outras características genéricas do mundo mediterrâneo, apresenta-se como um pesquisador inepto, confuso e ignorante em relação a historia, geografia e características genéricas da Palestina judaica da época de Jesus – região que, diferente do Mediterrâneo, provavelmente nunca conheceu.
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Por exemplo, de acordo com o Evangelho de Lucas 9.10b, “[Jesus e seus discípulos] retiram-se à parte para uma cidade chamada Betsaida [eis pólin bêthsaida]”, seguidos por uma multidão. De acordo com o arqueólogo Rami Arav (2006), a definição que Lucas faz de Betsaida como “Pólis” está correta, pois no ano de 30 d.C. Filipe honrou a cidade de Betsaida proclamando-a “pólis”. No entanto, Arav (2006, p. 149) também afirma que a descrição oferecida por Lucas da cidade de Betsaida está simplesmente errada: “Lucas refere-se à Betsaida como uma polis (Lc 9.10), e parece que ele não foi cuidadoso na sua definição do local”.
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Isso porque, a despeito do uso desse termo, a narrativa de Lucas, contraditoriamente, apresenta Betsaida não como uma verdadeira pólis, mas como um lugar deserto e rupestre. Lucas 9.12 afirma que os apóstolos pediram a Jesus que despachem a multidão, para que “fossem as aldeias e campos vizinhos, se hospedassem e comprassem alimentos” – o que significa que, na Betsaida descrita por Lucas, não havia alimentos nem moradia. Por isso, não poderia se tratar de uma pólis, cuja caracterização dada por Arav (2004, p. 147) admite a existência de “ginásio, prédios governamentais, teatro” e, com certeza (e principalmente) áreas urbanas e moradias, hospedarias e casas de refeições (desjejum e ceia).
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Lucas faz o mesmo ao chamar todas as demais aldeias – como Nazaré, Belém, Cafarnaum, etc. – de “polis”. Nisso, Lucas não foi um escritor cuidadoso, já que faz generalizações inadequadas sobre aspectos regionais que ele não buscou conhecer com mais detalhes (REED, 2000, p. 169).
Além disso, Lucas foi anacrônico em sua descrição de Cafarnaum ao narrar, em Lucas 5.19, o episódio em que um paralítico é descido pelo “telhado” (keramon) de uma casa para que Jesus pudesse curá-lo. No entanto, a arqueologia demonstrou que os tetos das casas de Cafarnaum não possuíam telhado de cerâmica; eram feitos com madeira e palha (cf. HORSLEY; SILBERMAN, 1999, p. 55, e REED, 2000, p. 159).
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A descrição lucana, em Lucas 4.15-20, sobre uma sinagoga muito bem estruturada administrativamente em Nazaré é um anacronismo. Nazaré era um pequeno e pobre povoado, sem condições de apresentar uma sinagoga tão suntuosa e bem estruturada como Lucas desejou que fosse (REED, op. cit.).
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A confusão com que Lucas realiza suas descrições fica ainda mais evidente quando se lê a passagem de Lucas 17.11, onde se diz que Jesus “de caminho para Jerusalém, passava pelo meio de Samaria e da Galiléia” (diercheto dia meson Samareias kai Galilaias = [literalmente:] “passava através do meio de...”). Meier (1998, p. 237, 289) afirma que “não faz sentido dizer que Jesus estava passando através do meio de Samaria e da Galiléia em sua subida para Jerusalém” e que Lucas apresenta uma “geografia confusa”.
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Os descuidos de Lucas são bastante evidentes. Lucas também afirma que, quando Maria Madalena e as outras mulheres voltam do sepulcro para contar aos demais que o mesmo estava vazio, Pedro “levantou-se e correu ao sepulcro. Abaixando-se, viu as faixas de linho e nada mais; afastou-se e voltou para sua casa [pros eauton], admirado com o que acontecera”. (Lc 24.12).
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A palavra grega heautou é usada para se referir a casa da pessoa ativa em uma narrativa, como Lucas atesta em 11.21, ao usar essa palavra para denotar “palácio”, e Paulo em 1Co 16.2, ao denotar “casa”. Xenofonte, entre outros escritores do período clássico, também usa a expressão “pros heautou” com o sentido de “para sua casa” (BLUE LETTER BIBLE, 2009 [online]).
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De acordo com Lucas 4.31,38, a casa de Pedro ficava em Cafarnaum, cidade da Galiléia distante aproximadamente 150 quilômetros de Jerusalém. Segundo Gênesis 31.23, uma jornada de um dia equivale de 30 a 40 quilômetros, de modo que Pedro levaria no mínimo 3 (três) dias para ir a sua casa e mais 3 (três) dias para voltar. No entanto, a mesma narrativa de Lucas coloca Pedro, algumas horas mais tarde, de volta a Jerusalém – como se fosse capaz de percorrer quase 300 quilômetros em poucas horas.
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Por outro lado, esse erro (ou desleixo) geográfico se deve pela forma como Lucas usa, recorta e manipula o material de suas fontes e por seu programa teológico. Por exemplo, sobre essa mesma narrativa, deve-se notar que, de uma forma bastante estranha, Lucas se limita a dizer somente que Jesus havia aparecido a Pedro no versículo 34, omitindo uma descrição cristofânica de suma importância para seus leitores. Mas por que Lucas não narra como se deu tal aparição?
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De acordo com Raymond Brown, Joseph Fitzmyer e J. P. Meier (1998, p. 457) Lucas narra, sim, tal aparição, mas a desloca para o começo de seu evangelho, no relato da chamada de Pedro narrado em Lucas 5.1-11, que na realidade constitui um relato de cristofania pós-ressurreição a qual Lucas tratou de retroceder ao início do ministério público de Jesus. Desse modo, ao se deparar com duas tradições diferentes de epifania, uma que narrava a aparição do Jesus ressuscitado na Galiléia e outra que narrava a aparição do Jesus ressuscitado em Jerusalém, Lucas escolhe mutilar as tradições, retrojetando a aparição de Jesus a Pedro na Galiléia, mas deixando um resquício dessa tradição na frase “Pedro voltou para sua casa”.
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O recenseamento de toda a Judéia e Galiléia pelo governador da Síria Quirino na época de Augusto constitui a imperícia histórica de Lucas mais conhecida. Tanto Raymond Brown (2005, p. 792) como Geza Vermes (2006, p. 225) afirmam que além de não existir qualquer prova ou registro de qualquer censo geral na época de Augusto, o primeiro recenseamento realizado de fato por Quirino como governador da Síria não abrangia a Galiléia, mas somente a província romana da Judéiam, e que isso aconteceu apenas em 6 d.C. ou seja, cerca de dez anos depois da morte de Herodes Magno. Além disso, mesmo que tenha havido um censo na época do nascimento de Jesus, José não seria obrigado pelas leias romanas a viajar para a terra ancestral da sua tribo, e tampouco Maria teria sido obrigada a acompanhá-lo. O censo seria realizado no próprio local de moradia. Desse modo, Lucas realiza uma confusão que, certamente, lhe serviu para o desenvolvimento de seu roteiro teológico.

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