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sábado, 7 de novembro de 2009

O IMPÉRIO E A CRUZ: REFLEXOS DA TEOLOGIA IMPERIAL ROMANA NA CRISTOLOGIA DA IGREJA PRIMITIVA

Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de História das Religiões, v. 2, p. 259-276, 2009.
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O IMPÉRIO E A CRUZ: REFLEXOS DA TEOLOGIA IMPERIAL ROMANA NA CRISTOLOGIA DA IGREJA PRIMITIVA (parte 02)
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Prof. Vieira Lima Jr.
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Assimilação intercultural e os evangelhos bíblicos
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Os documentos cristãos cuja autoria tradicional tem sido atribuída a certo “Lucas” e que compõem quase a metade do Novo Testamento, se caracteriza de forma bastante peculiar. São documentos diferentes de qualquer outro encontrado dentro ou foram do cânon. Sua principal marca é a personalidade distinta, culta e cativante do autor, bem como sua preocupação com a informação e com a ordem dos acontecimentos narrados, fazendo-o, de acordo com diversos comentaristas, equiparar-se a outros escritores talentosos da época clássica, inclusive com historiadores como Josefo, Tácito e Tucídides.
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A preocupação desse evangelista com a missão gentílica e diversos aspectos do mundo mediterrâneo faz de seu evangelho o “Evangelho dos Gentios”, e de seu Atos dos Apóstolos a primeira tentativa de se criar uma “historia das origens cristas” de que temos noticia – ambos constituindo uma unidade documental que, no presente trabalho, será tratada dessa maneira.
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É nesse contexto que começam a surgir dentro de sua narrativa evangélica paralelos entre Jesus e outros personagens importantes da historia pagã, principalmente os imperadores romanos.
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O Jesus que o “Evangelho dos Gentios” apresenta é um Jesus helenizado, elaborado de acordo com as ideologias e imperativos da igreja primitiva e de acordo com as intenções literárias desse evangelista. Os elementos helênicos existentes nesse evangelho são gritantes, todos revelando o antagonismo existente contra o império romano e as atribuições lendárias à memória cristã decorrentes desse antagonismo.
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A infância de Jesus, relatada por Lucas, corresponde a um período, do ponto de vista histórico, bastante problemático, mas também bastante rico em atribuições do imaginário.
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Meier (1993, p. 208, grifo nosso) comenta que:
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Pouco ou nada se pode dizer com certeza ou alto grau de probabilidade sobre o nascimento, a infância e os primeiros anos da vasta maioria das figuras históricas do antigo mundo mediterrâneo. Em casos excepcionais de personagens proeminentes, como Alexandre, o Grande, ou o Imperador Otávio Augusto, alguns fatos foram preservados, embora frequentemente entremeados de elementos míticos e lendários. O mesmo padrão é encontrado no Antigo Testamento [...] A tendência à expansão desses elementos “midráshicos[1]” continua para além das Escrituras Canônicas e em várias “recontagens” das narrativas do Antigo Testamento, como por exemplo em Antiguidades Judaicas, de Josefo, e na Vida de Moisés, de Fílon, assim como nos midrashim posteriores rabínicos. Considerando-se este fenômeno de histórias de nascimentos ou infância prodigiosas, compostas para celebrar antigos heróis, judeus e pagãos igualmente, devemos encarar com cautela as Narrativas da Infância de Jesus incluídas nos Capítulos 1 e 2 de Mateus e Lucas.
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De fato, no que se refere às narrativas da infância de Jesus não se pode identificar quaisquer traço de historicidade que possa oferecer informações confiáveis (MEIER, 1993, p. 211). A criação de ficções e a assimilação de elementos lendários são comuns nesse tipo de relato. Isso porque a existência de lacunas nas tradições de Jesus que precisavam ser preenchidas era imensa. Existem lacunas em praticamente todas as dimensões do conhecimento histórico sobre Jesus, transmitidas pelas fontes antigas: nos ensinamentos, relatos, mensagem, atos, ditos, infância, puberdade, nascimento, caráter, personalidade, etc.
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Um dos diversos exemplos que podem ser tomados para ilustrar esse fato se consiste nas estórias bíblicas sobre o nascimento e infância de Jesus. Segundo Brown (2005), toda a tradição herdada sobre Jesus se limita ao tempo de duração de seu ministério[2], o que significa que não existiram materiais tradicionais antigos sobre a infância de Jesus.
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Essa ausência de materiais antigos sobre a infância de Jesus possibilitou a elaboração de materiais que foram assimilados pela tradição e passaram a fazer parte da memória de Jesus. A criação dessas lacunas ajudou no processo de metamorfose da imagem de Jesus, a qual começou antes desses documentos terem sido escritos:
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Não se deve perder de vista que a redação final dos evangelhos não foi feita sem antes ter passado por um complexo período oral, havendo, portanto, uma seleção natural dos relatos que estavam sendo redigidos. Esse processo, longo e gradual, influenciou o rumo teológico que estava em formação nas comunidades cristãs (SCARDELAI, 1998, p. 299).
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Essa fase de metamorfoses da imagem de Jesus anterior aos escritos bíblicos é denominada de “fase oral” das tradições cristãs primitivas. Foi nessa fase que criaram diversas concepções e estórias sobre Jesus – muitas das quais oriundas da imaginação popular e não da memória recebida.
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Tradições populares são elementos constantes de todas as culturas, caracterizadas pela “oralidade” e se metamorfoseiam de acordo com a imaginação individual ou coletiva. São características básicas e bastantes presentes na história da cultura de todas as civilizações.
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A redação dos Evangelhos bíblicos se deu uma etapa mais avançada da história do cristianismo primitivo, cujo intuito foi “oficializar” as tradições recebidas “populares” que mais tarde se tornaram o núcleo da fé cristã ocidental.
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Tradições orais possuem características bastante específicas. De acordo com Arens (2007, p. 71-72), “pelo fato mesmo da comunicação ao longo do tempo, em toda comunicação oral se produz uma série de alterações”.
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De fato, o período oral das tradições de Jesus foi o bastante para que várias lendas e acréscimos se desenvolvessem na tradição popular sobre a imagem de Jesus – a qual acabou se tornando uma “imagem de culto” elaborada pela imaginação coletiva. Por isso, Meier (1998, p. 150), de forma honesta, comenta que: “É preciso levar em conta a criação de lendas na tradição do evangelho”.
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A influência da cultura helenística e romana na formação da identidade cristã
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Duas das mais importantes matrizes para a criação e assimilação de material a tradição de Jesus foi a cultura helenística e a romana. Sendo que: “[...] os camponeses judeus, inspirados por esperanças apocalípticas, não admitiam ser privados da sua liberdade do domínio opressivo estrangeiro e nacional” (HORSLEY, HANSON 1995, p. 63), era inevitável que houvesse antagonismos ao poder imperial regente na Judéia, muitos dos quais se deu através da violência armada, e que se cristalizaram sob a forma de “movimentos messiânicos” cujos principais objetivos era “a restauração da justiça socioeconômica” (HORSLEY, HANSON, 1995, p. 115).
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O próprio Jesus de Nazaré, fundador do movimento que deu origem ao cristianismo, foi violentamente perseguido e sumariamente executado através da crucificação porque as suas reivindicações sob a forma de pregação também negavam enfaticamente os poderes imperiais romanos e os poderes oligárquicos judaicos como legítimos.
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Desse modo, alguns judeus e cristãos poderiam adotar uma política de luta agressiva e direta contra os romanos, enquanto outros judeus e cristãos poderiam adotar outras estratégias, talvez menos explícitas.
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O “culto ao imperador” é um exemplo básico. Tão logo que o império disseminasse esse por todo o território subjugado (incluindo a Palestina judaica), culto este que concebia o imperador como “divino”, “senhor”, “salvador” e “conquistador do universo”, protestos vindo de vários movimentos messiânicos judaicos foram se tornando cada vez mais comuns, pois para os judeus seria impossível reverenciar outra divindade senão Yahweh (Deus).
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Uma das formas usadas pelo cristianismo primitivo para protestar contra o império foi equiparar (ou sobrepujar) Jesus a César como o “Senhor do Universo”. Pelo fato desse protesto ter se dado somente nos âmbitos da mentalidade e do discurso (pois não havia formas de se concretizar na realidade, mas apenas na crença), pode-se encontrar vestígios desse protesto em vários textos bíblicos e principalmente nos Evangelhos.
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Desse modo, um sincretismo religioso, em que elementos helênicos e atribuições lendárias romanos foram assimilados pela memória cristã primitiva, foi motivado pelo do antagonismo existente contra o Império Romano.
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Termos como “evangelho”, “salvador”, “fé”, “senhor”, “assembléias” (igrejas), foram termos cunhados pelo culto imperial e tomados pelo cristianismo primitivo como termos de praxe. De fato, vários atributos de César foram relacionados à figura de Jesus Cristo nas comunidades cristãs primitivas por causa da influência negativa que a visão imperial do mundo romano exerceu na mente dos primeiros cristãos. Era uma forma de “desafiar” o poder imperial romano.
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Continuando, Horsley (ibid., p. 29) lembra que:
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As cidades erigiam monumentos com inscrições que expressavam o credo do florescente culto ao imperador. Uma inscrição procedente da Assembléia Provincial da Ásia (Ásia Menor ocidental) datada do ano 9 a.C. oferece uma expressão vívida das honras divinas e do culto dedicado ao imperador como o salvador que trouxera paz e realizações:
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“Ó diviníssimo César... devemos considerá-lo igual ao Princípio de todas as coisas...; pois quando tudo caía [na desordem] e pendia para dissolução, ele restabeleceu a ordem e deu ao mundo inteiro uma nova aura; César... a boa fortuna comum de todos... O início da vida e da vitalidade... Todas as cidades adotam unanimemente o aniversário do divino César como o novo início do ano... Enquanto a Providência, que regulou toda a nossa existência... levou a nossa vida ao ápice da perfeição ao nos dar [o imperador] Augusto, a quem ela [Providência] encheu de força para o bem-estar dos homens, e que sendo enviado a nós e a nossos descendentes como Salvador, pôs fim à guerra e colocou todas as coisas em ordem; e [por isso,] tendo se tornado [deus] manifesto (phaneis), César realizou todas as esperanças de tempos anteriores... ao superar todos os benfeitores que o precederam..., e enquanto, finalmente, o aniversário do deus [Augusto] se tornou para o mundo inteiro o começo de boas-novas (euangelion) com relação a ele [portanto, que uma nova era comece a partir de seu nascimento]. (OGIS 2.#458)”.

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Crossan (2004, p. 450) afirma que: “Isso não é, já se vê, apenas uma série de coincidências acidentais”, e complementa: “Esse paralelismo fundamental é, portanto, antagonismo profundo: dois programas escatológicos que se chocam um com o outro. O cristianismo sabia disso desde o início e de maneira clara. Roma sabia disso desde o início, mas de maneira obscura” (CROSSAN, 2004, p. 451).
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O simbolismo do discurso antiimperialista nos anúncios sobre o nascimento de Jesus no Evangelho de Lucas
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De acordo com alguns pesquisadores, essa relação de antagonismo entre o Cristianismo e o Império Romano encarnou-se em narrativas simbólicas nos relatos da infância de Jesus nos evangelhos bíblicos – principalmente no Evangelho de Lucas.
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De fato, como a obra lucana é dupla – o terceiro evangelho e o Atos dos Apóstolos – podemos também perceber um duplo objetivo que vez por hora se entrelaçam em todas as narrativas: descrever a expansão do cristianismo como acontecimento de importância cósmica, pondo-a na estrutura cronológica do mundo, da historia e dos governantes seculares, os quais, todos, serão afetados por eles.
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Desse modo, Lucas tentou traçar a rota que mudaria o curso do mundo mediterrâneo – a rota do cristianismo. Por isso, coloriu suas narrativas com detalhes exatos – ou melhor, “vivos” – do mundo mediterrâneo, na medida em que narrava o processo de expansão missionária crista.
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O discurso de Paulo no Areópago, em Atenas, narrado em Atos 17, ilustra muito bem isso: era o cristianismo entrando e agitando o mundo secular dominado pelo Império Romano. Em Atos dos Apóstolos, Lucas dedica em atenção especial em citar, apuradamente, governantes e instituições políticas de varias polis e regiões da Ásia Menor e do Mediterrâneo, incluindo Instituições religiosas: Os “Neokoros” (Guardiões do Templo de Ártemis), os ouvires de Efeso, o procônsul Sergio Paulo, Gálio o procônsul da Acaia, os procônsules da Ásia, os “litores”, os “politarcas”, o Areópago (onde se faziam discursos políticos), o “homem principal de Malta”, “estratopedarca”, os tetrarcas, Quirino, etc.
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Um exemplo desse sincronismo artificial lucano entre o cristianismo e o mundo greco-romano pode ser ilustrado quando o autor do Evangelho de Lucas (3.1,22) introduz sua narrativa sobre o ministério terreno de Jesus da seguinte forma:
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No ano décimo quinto do império de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judéia, Herodes tetrarca da Galiléia, seu irmão Filipe tetrarca da Ituréia e da Traconítide, e Lisânias tetrarca de Abilene, sob o pontificado de Anás e Caifás, [...] o Espírito Santo desceu sobre [Jesus] em forma corporal, como pomba. E do céu veio uma voz: “Tu és o meu Filho; eu, hoje, te gerei”.
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A atenção enfática dada por esse evangelista aos governantes locais – e principalmente romanos – é ressaltada no relato sobre o nascimento de Jesus, que se deu, segundo o autor lucano, nos dias em que Quirino era governador da Síria, quando César Augusto promulgou um edito determinando que todo o mundo sob o jugo romano fosse recenseado (Lucas 2.1,2).
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Scardelai (1998, p. 131), ao observar o encadeamento existente no Evangelho de Lucas entre os acontecimentos que envolvem Jesus e os acontecimentos imperiais, como o recenseamento, exclama: “Não se sabe qual teria sido o interesse particular de Lucas em ligar o nascimento de Jesus ao censo”.
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Brown (2005, p. 496), por outro lado, afirma que o interesse particular de Lucas em ligar o nascimento de Jesus a esses acontecimentos romanos não é de todo desconhecido, e que não somente o nascimento, mas também seu ministério é colocado em uma consonância cronológica com o tempo romano, numa forma deliberada de justapor Jesus ao império:
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Lc 3,1-2 descreve o início do ministério [de Jesus] como acontecimento de importância cósmica, pondo-o na estrutura cronológica do mundo e dos governantes locais que, em última instância, serão afetados por ele. Do lado romano da lista de governantes, há Tibério César, o imperador, e depois Pôncio Pilatos, o governador local da Judéia – Lucas e seus leitores sabem que as ondas provocadas pela imersão de Jesus no Jordão vão finalmente começar a mudar o curso do Tibre[3]. E, assim, não é surpreendente que, quando retrocede o momento cristológico para a concepção e o nascimento de Jesus, Lucas dê ao nascimento também um lugar na estrutura cronológica dos governantes mundiais e locais, ao mencionar Augusto César, o imperador romano, e, em seguida, Quirino, o legado local da Síria. Ironicamente, o imperador romano, a figura mais poderosa do mundo, serve ao plano de Deus, promulgando um edito para o recenseamento de toda a terra. Ele proporciona o cenário apropriado para o nascimento de Jesus, o Salvador de todas aquelas pessoas que estão sendo registradas.
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Desse modo, os relatos lucanos seria uma resposta à propaganda imperial romana e a sua ideologia imperial e cultual.
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De acordo com Bonz (apud Koester, 2005, p. 55), o autor do Evangelho de Lucas (que foi o mesmo autor de Atos dos Apóstolos) não estava alheio aos meios propagandísticos do culto imperial: “o modelo literário da obra de Lucas foi a antiga epopéia grega recriada na obra latina de Eneida, de Virgilio”. A Eneida, de fato, trata sobre as origens de Roma e realiza elogios publicitários a César Augusto.
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Desse modo, o Evangelho de Lucas apresenta justaposições explícitas entre Jesus e César Augusto, em um jogo claro de contraposições em que a figura de Jesus Cristo não apenas assimila atributos e designações augustianas, mas também é colocado em um nível superior ao imperador romano.
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Em Lucas 2.1,9-11 (grifo nosso) consta o seguinte:
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Naqueles dias [do nascimento de Jesus], apareceu um edito de César Augusto [Καίσαρος Αὐγούστου], ordenando o recenseamento de todo o mundo habitado. [...] O anjo do Senhor apareceu-lhes [a José, Maria e aos pastores] e a glória do Senhor envolveu-os de luz; e ficaram tomados de grande temor. O anjo, porém, disse-lhe: “Não temais! Eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor, na cidade de Davi”.
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De acordo com Brown (2005), a intenção de Lucas, nessa passagem, é proporcionar ao nascimento de Jesus um lugar na estrutura cronológica de governantes mundiais e locais, ao mencionar Augusto César, o imperador, e em seguida, Quirino, o legado local da Síria.
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Na referida passagem, o autor do Evangelho de Lucas usa a palavra Αὐγούστου [Augoustou] para designar o César Augusto. Esse uso específico, que se caracteriza pela transliteração grega de um nome latim (e não em grego), não é comum. Em Atos 25.21-25, o autor usa a palavra grega Sebastos, equivalente grego do latim, como título. Desse modo, o autor de Lucas usa o nome individual de César com o objetivo de contrapô-lo ao nome de Jesus, também apresentado de forma individual (BROWN, 2005, p. 793).
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Essa contraposição entre Jesus Cristo e César Augusto é ainda mais acentuada pelo uso lucano do termo “hoje” (“Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor”), que denota o nascimento de Jesus e o contrasta às celebrações do dia do nascimento de César Augusto:
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A hipótese de que “neste dia, nasceu [...] um Salvador”, de Lucas (2,11) é alegação cristã contrária à propaganda imperial associada à celebração do aniversário de Augusto é realçada pelas descobertas em Roma que mostram o cuidado empregado na observância do dia do imperador: os cálculos da direção dos raios do Sol naquele dia tinham um papel importante no alinhamento dos monumentos relacionados a Augusto na cidade, a saber, o obelisco em Montecitorio, o Ara Pacis e o mausoléu (BROWN, 2005, p. 793).
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De acordo com Brown (2005, p. 497), a asserção na inscrição Priene de Augusto – “O nascimento do deus marcou o início da Boa-Nova para o mundo” – é reinterpretada por um anjo do Senhor com o brado heráldico: “[...] eu vos anuncio a Boa-Nova de uma grande alegria que será para o povo todo: Para vós, neste dia, nasceu na cidade de Davi um Salvador, que é Messias e Senhor” (Lc 2,10-11). De fato, essa passagem deixa clara a contraposição deliberada efetuada pelo autor do Evangelho de Lucas entre o César Augusto e Jesus Cristo.
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Desse modo, podemos afirmar que a narração lucana do nascimento de Jesus apresenta um “desafio implícito a essa propaganda imperial, não negando os ideais imperiais, mas proclamando que a verdadeira paz do mundo foi trazida por Jesus” (BROWN, 2005, p. 497).
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Brown (2005, p. 497) também comenta que as alusões lucanas a “paz” (cf. Lc 1.79; 2.14) também se enquadram nesse quadro de antagonismos fomentado pelo cristianismo antigo em relação ao culto imperial, pois enquanto os exércitos romanos proclamavam a “pax Augusta”, os exércitos celestiais proclamavam a “paz Christi”.
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A demonstração de extrema sabedoria precoce de Jesus enquanto ainda menino também faz parte do modelo bastante comum do imaginário da época de colocar o herói ou imperador romano como portador da sabedoria divina desde a infância:
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É criação comum em muitas culturas e literaturas fazer do menino o pai do homem, criando histórias da meninice de grandes figuras, que antecipam a grandeza do protagonista. Com freqüência, essas histórias caracterizam um conhecimento surpreendente demonstrado em uma idade entre dez e quatorze anos; por exemplo, histórias de Buda na índia, de Osíris no Egito, de Ciro, o Grande, na Pérsia, de Alexandre Magno na Grécia e de Augusto em Roma. [...] O propósito dessas histórias é mostrar a grandeza do protagonista desde o início de sua maturidade (BROWN, 2005, p. 576).
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De fato, nem César Augusto e nem Jesus de Nazaré escaparam de serem caracterizados como “prodígios” em suas infâncias: o primeiro motivado pela propaganda imperial que rondava em todo o império romano; o segundo motivado pela oposição à teologia imperial, pelo desejo de equiparar (ou mesmo superar) Jesus a César e pelo intento de mostrar a grandeza e a ascendência divina do messias desde o início de sua infância.
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Considerações finais
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Desse modo, torna-se clara a existência de um forte conflito ideológico entre primeiros cristãos e o culto imperial romano, mais especificamente do primeiro em relação ao segundo. Apesar da atitude anti-beligerante do cristianismo primordial em relação ao Império Romano, os cristãos primitivos não aceitaram de bom grado as propostas teológicas do culto que os dominadores traziam, e não se calaram diante da exigência de se prestar reverência e adoração a imagem do imperador.
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O marco desse trabalho foi demonstrar que discursos antiimperialistas estão presentes, ainda que de forma simbólica e camuflada, nos escritos do Novo Testamento cristão, que se constituem os primeiros escritos da religião cristã.
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As influências extra-cristãs na formação do imaginário cristão primitivo foram marcantes, sendo que, enquanto os cristãos primitivos não aceitavam as propostas teológicas do culto a imagem do imperador, utilizavam os elementos desse mesmo culto imperial para construir a imagem de culto a Jesus Cristo. Por isso, podemos concluir que a teologia imperial exerceu um importante papel na construção da cristologia e teologia cristã.
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Referências bibliográficas
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BROWN, Raymond E. O Nascimento do Messias: comentário das narrativas da infância nos evangelhos de Mateus e Lucas. São Paulo: Paulinas, 2005 (Coleção bíblia e história).
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_____________. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: Milagres. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Vol. II, livro III.
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SCARDELAI, Donizete. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus: Jesus e outros messias. São Paulo: Paulus, 1998.

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Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de História das Religiões, v. 2, p. 259-276, 2009.
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[1] Midrash, ou Midraxe, é o termo usado para se designar um gênero literário bastante comum entre os judeus na época de Jesus, em que passagens do Antigo Testamento são usadas em um novo contexto com um novo sentido. Através do Midrash, pode-se criar narrativas fictícias e tomá-las como verdadeiras, sendo que sempre se poderá alegar que a correspondente passagem no Antigo Testamento foi “profética” (Brown, 2005, p. 663).
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[2] O ministério de Jesus durou 1 (um) ano, segundo os Evangelhos sinópticos, e 3 (três) anos, segundo o Evangelho de João, do ano 29 d.C. a 31 d. (Meier, 1993).
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[3] O Tibre é um rio no território italiano, com nascente na Toscana, cujas margens passam por Roma (cf. GIORDANI, 1985).

O IMPÉRIO E A CRUZ: REFLEXOS DA TEOLOGIA IMPERIAL ROMANA NA CRISTOLOGIA DA IGREJA PRIMITIVA

Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de História das Religiões, v. 2, p. 259-276, 2009.
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O IMPÉRIO E A CRUZ: REFLEXOS DA TEOLOGIA IMPERIAL ROMANA NA CRISTOLOGIA DA IGREJA PRIMITIVA (parte 01)
Prof. Vieira Lima Jr.
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Considerações iniciais
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O presente trabalho propõe a existência de um forte antagonismo cristão ao Império Romano no primeiro século e de um conflito ideológico em relação ao culto imperial romano que pode ser rastreado nos textos do Novo Testamento a partir de novas abordagens hermenêuticas e histórico-exegética, revelando que o cristianismo começou como uma religião de protesto e resistência ideológica, essencialmente de cunho antiimperialista e consolidou diversas formas de protesto em seus discursos. Porém, foi um protesto velado: simbolismos que degradavam o imperador na mesma medida em que elevava a figura de Jesus, declarações de que Jesus era o “Senhor” do mundo, que implicava ser ele o verdadeiro imperador e não César, narrativas parabólicas sobre a expulsão dos romanos das terras judaicas, e a criação do epíteto “Besta” para designar todo o Império.
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No entanto, para que se possa analisar tal realidade histórica, é necessário que comecemos a partir da situação dos judeus da Palestina do século I. Subjugados por um império estrangeiro (Roma) e possuindo uma rica tradição político-religiosa e nacional, os judeus lembravam-se amargamente da época em que foram subjugados e deportados pelo Império Babilônico, no século VII a.C., até que um rei libertador (Ciro, o Grande, da Pérsia) concedeu-lhes a liberdade que tanto aspiravam, sendo proclamado “ungido” (messias) (SCARDELAI, 1998).
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A memória do chamado “Cativeiro Babilônico” ficou gravada para sempre nas tradições judaicas como símbolo da opressão, da desgraça e da vergonha. Por isso, era inevitável que tais lembranças se associassem a situação presente, e que o povo judeu visse no Império Romano uma nova “Babilônia” , um novo símbolo da opressão, da desgraça e da vergonha.
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De acordo com Horsley e Hanson (1995, p. 43):
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Depois do governo duramente opressivo dos reis dependentes de Roma (Herodes e seus filhos), seguiu o governo direto dos governadores do império estrangeiro, algo que os judeus não tinham experimentado desde a conquista babilônica e persa inicial.
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A presença romana representou um choque na mente dos judeus da Palestina da época de Jesus, pois simbolizava não somente a escravidão, mas também a distância do povo em relação a Deus.
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O presente trabalho, ao propor a existência de um forte antagonismo cristão ao Império Romano no primeiro século e de um conflito ideológico em relação aos primeiros cristãos com o culto imperial romano que pode ser rastreado nos textos do Novo Testamento, começa, contraditoriamente, enfatizando a impossibilidade de tal idéia.
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Novas abordagens hermenêuticas e histórico-exegéticas tem revelado que o cristianismo começou como uma religião antiimperialista e consolidou diversas formas de protesto em seus discursos. Porém, foi um protesto velado: simbolismos que degradavam o imperador na mesma medida em que elevava a figura de Jesus, declarações de que Jesus era o “Senhor” do mundo, que implicava ser ele o verdadeiro imperador e não César, narrativas parabólicas sobre a expulsão dos romanos das terras judaicas, e a criação do epíteto “Besta” para designar todo o Império.
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O objetivo do presente trabalho é apresentar indícios, ainda que indiretos (mas nem por isso inconclusivos) da existência de um discurso antiimperialista nas narrativas dos Evangelhos bíblicos e de outros escritos neotestamentários.
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A partir da constatação desses indícios, propomos que a influência da ideologia e propaganda imperiais romanas foi decisiva para a formação da imagem de culto a Jesus Cristo, que se moldou na medida em que os escritos do Novo Testamento eram escritos.
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O trabalho parte de uma abordagem historiográfica e comparativa, onde se analisa o material bibliográfico contemporâneo e se faz uma análise na documentação textual antiga, principalmente de antigos documentos cristãos e romanos. Esperamos com isso trazer novas luzes sobre as origens do cristianismo e seu lugar no mundo mediterrâneo e judaico do qual nasceu e floresceu.
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Cristianismo, circularidade cultural e o conceito de transformação intercultural
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Carlo Ginzburg (2006, p. 10), ao fazer alusão a “circularidade” da cultura na Europa pré-industrial, afirma que: “Entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas [...] [existe] um relacionamento circular feito de influencias recíprocas, que se move de baixo para cima, bem como de cima para baixo”.
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Uma das formas de circularidade da cultura reside no processo de transformação de determinado elemento cultural sofre no decorrer das influencias recíprocas. De fato, pode-se observar que diversos elementos culturais, mesmo aqueles que sofrem resistência e rejeição, não são ao todo “abandonados”, mas, ao invés disso, são transformados e assim penetram no âmago cultural de diferentes classes, sejam elas dominantes ou subalternas, constituindo um jogo de metamorfoses dialéticas.
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Uma forma de transformação é realizada no processo de sincretismo religioso, como acontece com a religião cristã. De fato, é notório que o imaginário mágico-taumaturgico do cristianismo traz consigo diversos paralelos com outras formas de manifestação do imaginário mágico em geral, principalmente o pagão. Principalmente em nível popular, se observa que diversos elementos pertencentes ao âmbito extra-cristão, ao invés de serem eliminados, são simplesmente transformados, absorvidos e assimilados as formas de culto populares, influenciando até mesmo as formas normativas da religião cristã – constituindo um “sincretismo religioso”.
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O antiimperialismo no livro de Apocalipse de João
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O Apocalipse de João descreve, de modo metafórico, as experiências de perseguição, opressão e violência que as comunidades cristãs sofreram no último quarto do primeiro século, exercidas pelo império opressor. A referência ao sangue dos mártires e do cordeiro degolado (Apoc. 1.5,7; 5.6,9,12; 7.14; 12.11; 19.7,9,13), do qual Deus “toma vingança” (6.10; 19.2), o testemunho do próprio autor, denominado João, que havia sofrido perseguição, razão para ter sido exilado na ilha do Patmos (1.9), sendo que um de seus companheiros, chamado “Antipas”, havia sofrido destino pior, sendo martirizado (2.13), mostra como as perseguições aos cristãos eram comuns no final do primeiro século e quanto a comunidade cristã ansiava por denunciar esses crimes do império.
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Na ocasião da abertura do quinto selo, são vistas debaixo do altar as almas de pessoas degoladas por causa do testemunho dado a Cristo (6.9-11). Do mesmo modo, as duas testemunhas de Deus são assassinadas em Jerusalém, em peleja contra a “Besta” (Roma) (11.7-8). O “dragão”, símbolo do império romano, guerreia injustamente contra os filhos da mulher (a igreja) (12.17). Apocalipse 13 realiza uma descrição detalhada acerca dos mecanismos econômicos de opressão e violência que caracterizaram ao império romano (13.16-17). Os capítulos 17.18 descrevem em detalhe a riqueza obscena da “Babilônia” (Roma), a “grande prostituta” que se conluia com os reis da terra.
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Desse modo, o tema do martírio cristão imposto pelo Império Romano e sua denuncia é central para o autor desse livro.
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Na época em que o livro de Apocalipse de João foi escrito, o imperador Domiciano se conclamava “Senhor e Deus” (dominus et deus) (KOESTER, 2005, p. 269), e portanto foi o principal inspirador da repulsa ao culto imperial apresentado de forma explícita porém simbólica ao longo de todo o livro de Apocalipse.
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No ano 112 d.C., Plínio II, governador romano da Bitínia, província da Ásia Menor, envia uma carta ao imperador Trajano a respeito dos “cristãos”, os quais estavam sendo acusados de vários crimes: negavam-se a dar culto ao imperador, mas somente cantavam hinos a “Cristo como único Deus” e observavam certos preceitos como não furtar, não roubar, não cometer adultério e não enganar. Desse modo, fica claro que a repulsa cristã ao culto imperial era constante no começo do século II d.C. e no final do primeiro século.
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Inúmeras são as referências antiimperialistas no livro de Apocalipse. No entanto, nos concentraremos em somente uma: o simbolismo da besta. De acordo com Koester (2005, p. 271), da época em que o Apocalipse de João foi escrito “era necessário encontrar uma resposta que desse sentido à experiência da igreja cristã aflita e temerosa. O profeta João se propõe a dar essa resposta e a fortalecer a visão de que Cristo e não César era o governante predestinado do mundo”.
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Koester (2005, p. 274, 275) comenta que, para o autor do livro de Apocalipse, o Estado romano (13.1-10) e seu governante (13.11-18) são os verdadeiros inimigos do reino divino na terra, como um poder oposto a Deus:
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Este inimigo de Deus exerce seu poder maléfico por meio da adoração, o culto ao imperador, que perverte e destrói todas as nações (13.6-10,15-17). A única alternativa é fidelidade ao Cordeiro (14.1,5). João não censura o mal no mundo em geral, mas atribui esse mal a uma única causa: o culto ao imperador. [...] Nas afirmações sobre Roma, e especialmente na lamentação dos mercadores depois da queda de Roma, a crítica ao poder econômico que domina o mundo, consubstanciado em Roma, é o ponto central.
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A justaposição entre Cristo e a Besta e seu falso profeta por João reflete claramente a oposição do cristianismo e de seu Messias ao poder imperial personificado na figura de César. Segundo Koester (2005, p. 275), a simbologia numérica do Apocalipse retrata César Nero, que seria concebido pelos seus adoradores como “um messias pagão”:
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É admissível que o número 666 (13,18), o número 8 (17,11) e também a interpretação do animal (13,3;17,10-12) se refiram ao retorno esperado do imperador Nero, o Nero Redvivus. 1 + 2 + 3 +...+ 8 = 36 e 1 + 2 + 3 +...+ 36 = 666, o que é o equivalente das letras CAESAR NERON no sistema numérico grego. O Nero Redvivus, que é rejeitado por João, não é o perseguidor cruel dos cristãos , mas a figura amada de crenças populares disseminadas, uma espécie de figura messiânica pagã.
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Já Knohl (2001, p. 46) afirma que o simbolismo da Besta é anterior a Cesár Nero, remontando a Augusto César, sendo que a descrição da narrativa apocalíptica se enquadra de forma mais adequada no contexto desse imperador romano:
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Ao longo da história do cristianismo, todos os tipos de interpretações foram sugeridos para a visão das duas bestas, mas ao que consta até agora nenhuma explicação realmente convincente foi dada. Em minha opinião, a chave para o entendimento da visão é nos conscientizarmos de que João, que parece ter escrito o livro da Revelação (ou Apocalipse) por volta de 80 E.C., se valeu de uma composição mais antiga, redigida no início do século I E.C., durante o reinado de Augusto.
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Para demonstrar que o simbolismo apocalíptico da Besta remonta a Augusto César, Knohl (KNHOL, 2001, p. 46. Cf. SUETÔNIO, 2006, p. 135) afirma que existe uma relação muito próxima entre as características da Besta de dois chifres e o símbolo imperial de Augusto, a saber, o signo de Capricórnio:
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A segunda besta é descrita com dois chifres como os de um cordeiro e com fala de dragão. Essa estranha combinação de dragão com chifres de cordeiro pode ser devidamente explicada pela propaganda com relação à origem divina de Augusto. A figura de um cabrito ou um bode com dois chifres – o Capricórnio – ocupava um lugar destacado no mito da divindade de Augusto, pois era o signo do mês de sua concepção.
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De fato, a figura de um Capricórnio, um tipo de bode com corpo de peixe e dois chifres sustentando o globo do mundo, aparece em moedas romanas da época sob a inscrição “Augustus” (CRAWFORD, 1983, p. 52).
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Já a alusão apocalíptica ao dragão pode também remontar ao imperador Augusto. De acordo com Suetônio e Cássio Dion (CASSIO DIONE, 1998. cf. 45.1,2), a Átia, mãe de Augusto, afirmou ter mantido relações sexuais com um dragão (serpente, segundo outras versões), enquanto dormia no templo de Apolo e que naquele momento concebia Augusto, que nasceria nove meses depois.
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O dragão simbolizava o deus Apolo (o deus protetor ou o “pai”, segundo o imaginário da época, de Augusto), cujo título “Apolo Pítico” havia recebido depois que matou Píton, um terrível dragão que vivia na caverna de Delfos (Cf. COLLINS, 2001) . Por isso, Augusto também foi representado como Apolo, como um dragão.
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Desse modo, o simbolismo da besta de dois chifres que falava como um dragão representava o imperador Augusto. Os dons proféticos de Apolo, que inspirada os oráculos de Delfos, foram atribuídos a Augusto, sendo que:
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O autor da visão do Apocalipse argumentava contra a propaganda de Augusto, sustentando que este não era um verdadeiro, mas sim um falso profeta, que falava como um dragão. [...]. Enquanto Augusto usava o mito de Apolo com o fim de conferir a divindade deste a si mesmo, o autor da visão usou o mesmo mito para representá-lo como um terrível dragão (KNHOL, 2001, p. 48).
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Desse modo, ao associar a figura do imperador com um dragão e uma besta selvagem (principalmente com a besta de Daniel) o autor de Apocalipse contrapõe, de modo simbólico, o cristianismo e seu messias ao império romano e seu imperador, numa forma de protesto ao culto e a hegemonia romano do mundo – cujo verdadeiro imperador não é outro senão Jesus Cristo.
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A imagem da primeira besta, por sua vez, que foi adorada pelos habitantes da terra a mando do falso profeta (13.12), representa Roma, cuja uma das cabeças foi “ferida mortalmente” por um golpe desferido contra ela. De acordo com Knhol (2001, p. 48, 49):
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O golpe na cabeça foi desferido pelos conspiradores que assassinaram Júlio César, mas o império romano se recuperou e continuou a dominar o mundo. Portanto, a imagem da primeira besta, que o falso profeta havia convencido todos os habitantes da terra a adorar, era a estátua representando o Império Romano. O fato é explicado por Suetônio, que registra a ordem de Augusto para a colocação de uma estátua da deusa Roma, símbolo do Império Romano, junto à estátua do imperador nos templos erigidos em sua honra. Augusto era o falso profeta do culto imperial à estátua de Roma.
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Para Knohl (2001, p. 52), o indício mais certo de que Augusto e seu culto imperial é o foco no capítulo 11, 12 e 13 de Apocalipse consiste na declaração sobre o átrio externo do templo de Jerusalém: “Foi-me dada uma vara semelhante a uma vara de agrimensor, e disseram-me: Levanta-te! Mede o templo de Deus e o altar com seus adoradores. O átrio fora do templo, porém, deixa-o de lado e não o meças: foi dado aos gentios” (Apocalipse 11.2,3).
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Na ocasião da Guerra Judaica contra Roma, que se deu entre os anos 66 e 70 d.C., os romanos capturaram tanto o átrio quanto o templo. Por isso, a descrição apocalíptica não se enquadra com estes eventos. No entanto, durante a revolta dirigida pelos judeus contra o sucessor de Herodes Magno, Arquelau, no ano 4 a.C., os soldados romanos entraram no átrio do Templo e saquearam o tesouro, ateando fogo às câmaras externas do pátio, mas não entrando nos recintos interiores do Templo. De acordo com Knohl (2001, p. 52, 53), a realidade histórica do ano 4 a.C. se enquadra na passagem de Apocalipse 11.1-2 bem mais que a realidade histórica do ano 70 a.C.:
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A revolta de 4 a.C, foi brutalmente esmagada por Quintílio Varo, legado de Augusto para a Síria. Varo chegou da Síria com duas legiões e outras forças. Os soldados de seu exercito semeavam a destruição por onde passavam e violavam as mulheres; Varo crucificou dois mil dos rebeldes e outros foram feitos prisioneiros e vendidos como escravos. Os judeus consideraram Augusto, o César romano, responsável pela brutal repressão da revolta e pelo incêndio do pátio do Templo. [...] Aos olhos dos judeus, ele foi responsável pelas ações de seu legado Varo e seus soldados. À luz desse pano de fundo, podemos entender por que Augusto é pintado com tanto ódio nas fontes que temos examinado.
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Portanto, de uma forma ou de outra, fica claro o lugar central de Roma na crítica antiimperial do Apocalipse de João. Por isso, a contraposição acalorada para com Roma a transforma, nesse apocalipse, em uma Babilônia, a mãe das prostitutas, embriagada com o sangue dos santos e mártires (17.5-6). É a partir desse viés que João espera nada menos que sua destruição total e a restituição do reino da terra para seu verdadeiro senhor: “O sétimo anjo tocou a trombeta. Ressoaram então no céu altas vozes que diziam: O império de nosso Senhor e de seu Cristo estabeleceu-se sobre o mundo, e ele reinará pelos séculos dos séculos” (Apocalipse 11.15).

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Continua...
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